O poder não respeita o espaço vazio, nem a fragilidade. Gilmar Mendes e o STF estão descontrolados

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“Fizemos tudo dentro da legalidade”, diz o ministro Gilmar Mendes.

Logo, não haveria motivo para um impeachment.

E, não havendo, estes 81 pedidos que andam em alguma gaveta, no Senado, não passariam de abuso. Ótima síntese do que se tornou nossa República, nos anos recentes. O ministro se põe, ele mesmo, como instância de autocontrole.

Neste plano, para que mesmo o controle externo? O ministro fala em “impeachments abusivos” e “retaliação política”. Tradução: dado que há uma chance de uma mudança no Senado, pelo voto, e a partir daí algum controle sobre o STF (inclusive um processo de impeachment), é melhor ir logo ajustando a regra do jogo, para evitar alguma incomodação.

A decisão não diz apenas respeito à Lei do Impeachment, de 1950. Ela atinge diretamente a Constituição, que atribui ao Senado a competência privativa de “processar e julgar” ministros do STF.

Se a nova regra valer, restaria aos senadores demandar a PGR que movesse um eventual processo. A PGR passa a funcionar como filtro originário do processo. Na prática, o exercício da competência privativa do Senado passa a depender da vontade da PGR – um tipo de competência compartilhada, jamais prevista pela Constituição.

O que temos é a opinião de um ministro “ajustando” um comando Constitucional. Extraindo não apenas uma prerrogativa dos cidadãos, mas uma competência do Poder Legislativo.

Com um agravante: o órgão controlado definindo os limites do próprio controle. Exatamente o oposto do que o constituinte definiu, em respeito ao sistema de freios e contrapesos, que define muito do que chamamos de república.

Isso não começou agora. Quando os ministros abriram o primeiro inquérito sobre fake news, em 2019, não havia lei alguma que amparasse aquela decisão. E a maioria silenciou. Quando uma avalanche de censura prévia foi praticada no País, à revelia do que diz a Constituição, a maioria silenciou.

Quando cidadãos sem foro foram julgados diretamente pelo STF, contrariando nosso ordenamento legal, a maioria silenciou. Foi por isso que chegamos até aqui. Porque era o “outro lado”, porque havia alguma urgência política e porque estamos no Brasil “e não na Inglaterra”, como me definiu um colega, melancólico.

Sob este ângulo, entendo perfeitamente a decisão do ministro. O poder não respeita o vazio. Se o Senado até agora não exerceu seu papel de controle, por que o faria agora?

Fernando Schüler
Cientista político, doutor em Filosofia (UFRGS) e professor do Insper.

O Supremo avança suas casas sobre os demais Poderes, como o fez com os direitos individuais, por uma velha e boa razão da política: porque pode. Porque entendeu que somos um país de instituições frágeis.

Porque o presidente da Câmara diz que é tudo uma questão de “polarização política”, porque boa parte do mundo jurídico silencia, dado que depende do próprio Supremo. E porque há medo no país.

E, vamos convir, muita pouca espinha dorsal republicana, na liderança do Congresso. Como vamos sair disso? Há bom tempo me faço esta pergunta. E confesso, ao menos por ora, que não encontro nenhuma resposta.

Crédito: Fernando Schüler / Opinião em O Estado de São Paulo – @ disponível na internet 8/12/2025


Gilmar Mendes e o STF estão descontrolados

Quando um integrante do Legislativo invade atribuições de outro Poder ou extrapola limites constitucionais, a questão muitas vezes vai parar no STF; o inverso não acontece

Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), está descontrolado. Não só ele. Outros integrantes da corte máxima do país também estão. Não se trata aqui de descontrole emocional, psicológico ou comportamental. O problema não é individual, mas, sim, institucional. O STF está fora de controle, e não é de agora.

A gota d’água foi a liminar concedida por Mendes, na quarta-feira passada, que revogou regras para pedidos de impeachment de ministros do Supremo previstas em lei há 75 anos. Com uma canetada, apenas o procurador-geral da República poderá apresentar uma denúncia para que se inicie o processo de afastamento de um ministro do STF.

O corporativismo da decisão foi escancarado em fala de outro ministro, Flávio Dino. Numa tentativa de justificar o ato do colega, Dino afirmou que há um número exagerado de pedidos de impeachment contra ministros do STF no Senado, mais precisamente 81, e que isso exigia uma revisão da lei, pois nenhum outro país do mundo enfrenta algo semelhante. E mais: que isso servisse para o Congresso Nacional se mobilizar para mudar a lei — como fica óbvio na fala de Dino, em prol da blindagem dos magistrados.

Há muitas razões para o descontrole institucional do STF. Uma delas foi gerada pela própria corte. Mudanças no regimento interno — ou interpretações criativas de suas regras — foram com o tempo aumentando o poder dos magistrados. Hoje, não se tem um Supremo, mas onze: são tantas as decisões monocráticas, aquelas feitas individualmente, sem passar pelo crivo do colegiado, que cada ministro torna-se um Supremo em si.

Não são decisões banais. Muitas vezes, elas têm implicações profundas para toda a sociedade ou para a política. Isso é um problemão, pois, no sistema jurídico brasileiro, o STF tem a palavra final, o que significa que, quando erra, não há nenhuma instância acima dele para consertar. O STF tem o direito de errar por último, e por isso mesmo as decisões deveriam ser conjuntas, para que o equívoco ou abuso de um ministro possa ser modulado pelo crivo dos outros. Errar sozinho é que não dá.

A decisão de Mendes sobre a Lei de Impeachment vai ser submetida à apreciação dos pares no plenário virtual. Isso não é suficiente para proteger os brasileiros do erro que está sendo cometido nesse caso. No plenário virtual não há deliberação entre os ministros, não se discute o contraditório. Cada um apenas deposita seus votos virtualmente.

O descontrole institucional do STF também é fruto da inércia do Senado, que deveria exercer a função de fiscalização e controle da corte máxima, mas não o faz. Entre os motivos para isso, está o bizarro poder do STF como tribunal penal para políticos. Mesmo quando um processo não tem relação direta com uma pessoa com foro por prerrogativa de função, um ministro pode “puxá-lo” para si, como fez na semana passada Dias Toffoli com a investigação sobre os crimes financeiros de Daniel Vorcaro, dono do Banco Master, apenas porque ele mantinha negócios com um deputado federal.

Diogo Schelp
Jornalista e comentarista político, foi editor executivo da Veja entre 2012 e 2018. Posteriormente, foi redator-chefe da Istoé, colunista de política do UOL e comentarista da Jovem Pan News. É mestre em Relações Internacionais pela USP

A reação dos senadores, que deveriam exercer o controle do STF, à liminar de Gilmar Mendes é inócua. Algumas propostas para mudar a forma de indicação dos ministros ou para limitar seus mandatos voltaram a emergir, mas qualquer lei que venha a ser aprovada nesse sentido poderá, vejam só, ser derrubada pelo próprio STF se forem consideradas inconstitucionais.

O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, por sua vez, enrolou-se em contradições. Disse que a liminar de Mendes “usurpa as prerrogativas do Poder Legislativo” — o que é verdade, pois não cabe a juízes modificar as leis. O curioso é que poucas semanas atrás o próprio Alcolumbre se dedicou a usurpar prerrogativas de outro Poder, no caso o Executivo, no episódio em que fez birra porque o seu preferido para ocupar uma vaga no STF não foi indicado pelo presidente Lula.

A diferença é que, quando um integrante do Legislativo invade atribuições de outro Poder ou extrapola limites constitucionais, a questão muitas vezes vai parar no STF. O inverso não acontece. Ministros do STF tomam decisões indevidas porque têm poder para isso e nada que possa contê-los. Mesmo em democracias, a inoperância de mecanismos de controle entre os poderes pode resultar em medidas autoritárias e arbitrárias. Não dá para confiar na possibilidade de que indivíduos vão impor limites ao próprio poder.

Crédito: Diogo Schelp / Opinião em O Estado de São Paulo – @ disponível na internet 8/12/2025

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