A unificação dos planos de carreiras pela Reforma Administrativa: um novo leito de Procusto

0
111
Procusto ou Procrustes é um personagem da mitologia grega, que simboliza a negação da ciência e a relativização de vidas humanas. @reprodução internwet
Propostas do GT da Reforma Administrativa uniformizam indevidamente um serviço público complexo e plural
 
Não é difícil perceber que as propostas apresentadas pelo GT da Reforma Administrativa, em especial a PEC 38/2025 e o PL sobre o “marco legal da administração pública brasileira”, imprimem uma desnaturação da racionalidade do serviço público nacional no que diz respeito aos planos de carreiras, pois impõem um verdadeiro Leito de Procusto, em alusão ao mito grego do bandido que mutilava ou esticava suas vítimas para ajustá-las forçosamente a uma medida única.
Para compreender a profundidade do retrocesso proposto, é necessário revisitar a trajetória do funcionalismo sob a ótica constitucional. A Constituição de 1988, em sua redação original, ordenou a unicidade daquilo que era essencial para o exercício independente e republicano das funções públicas: o Regime Jurídico Único. Independentemente da atividade, o vínculo com o Estado deveria ser estatutário, garantindo proteção contra o arbítrio e ingerências indevidas, infelizmente verificáveis no regime aplicável à iniciativa privada. Contudo, a EC 19/1998, sob a égide de uma suposta eficiência gerencial, promoveu a primeira grande ruptura, desunificando o que o texto original ordenara ser único e fragmentando a base do funcionalismo.Agora, as propostas do GT da Reforma Administrativa buscam operar o inverso, mas de forma nociva, quando tentam unificar aquilo que, pela própria lógica da eficiência administrativa e da realidade fática, não poderia ser uniformizado: os planos de carreiras e as tabelas remuneratórias. A imposição de uma “Tabela Remuneratória Única”, aplicável a todos os servidores de todos os Poderes, foi chamada de “IVA da Reforma Administrativa” pelo seu mentor. Trata-se de uma tentativa artificial de enquadrar realidades funcionais completamente distintas em uma mesma régua linear de progressão e remuneração. Daí o paradoxo: a reforma mantém a desunificação dos regimes jurídicos (que retira direitos), mas impõe a unificação das tabelas salariais (que retira a especificidade e a valorização das carreiras).Essa “planificação” é viciada, a começar pela violação frontal às autonomias constitucionais. A Constituição Federal assegura ao Poder Judiciário, ao Ministério Público, às Casas Legislativas e a determinados outros órgãos a competência privativa para organizar seus quadros e propor suas políticas remuneratórias, respeitados os limites fiscais e orçamentários. No entanto, ao determinar que União, Estados e Municípios implementem, por lei específica, uma tabela única onde todos os agentes públicos deverão ser encaixados, a reforma submete a gestão de pessoas de todos os Poderes a uma lógica centralizada, quase sempre ditada pelo Poder Executivo. Isso esvazia a capacidade de auto-organização dos demais Poderes e órgãos autônomos, ferindo a cláusula pétrea da separação dos Poderes e transformando a autonomia administrativa em mera figura retórica, já que a estrutura de desenvolvimento funcional estará engessada por uma norma geral padronizadora.

Além da inconstitucionalidade orgânica, há uma incompatibilidade sistêmica interna na própria proposta. As minutas preservam a vigência dos incisos I, II e III do § 1º do art. 39 da Constituição, os quais determinam expressamente que a fixação dos padrões de vencimento deve observar a natureza, o grau de responsabilidade, a complexidade dos cargos e os requisitos para a investidura. O texto constitucional reconhece, portanto, que cargos diferentes exigem tratamentos remuneratórios e estruturas de carreira diferentes. Contudo, as minutas ignoram esse comando ao impor a mesma estrutura para todos: remuneração inicial travada em 50% do final da carreira e obrigatoriedade de, no mínimo, 20 níveis para se chegar ao topo. Como conciliar a exigência constitucional de remunerar conforme a complexidade se a reforma obriga que carreiras de Estado de alta complexidade sejam submetidas à mesma estrutura de progressão lenta e rebaixada de carreiras de menor complexidade? A uniformidade imposta viola o princípio da isonomia material vertido nos incisos I, II e III do § 1º do art. 39 da Constituição, tratando os desiguais como se fossem iguais, e anula a capacidade do Estado de desenhar incentivos específicos para funções estratégicas.

O prognóstico dessa distorção é o fim da atratividade do serviço público para talentos de alto nível. Ao impor que um servidor leve obrigatoriamente 20 anos para atingir o topo da carreira e que seu salário inicial seja cortado pela metade, a reforma cria um desincentivo estrutural. É bem verdade que as propostas tentam criar uma válvula de escape ao permitir o concurso para níveis acima do inicial para profissionais de maior especialização.

Contudo, essa exceção é inócua para resolver o problema sistêmico, pois está limitada a uma cota rígida de apenas 5% da força de trabalho, mantendo a regra de achatamento para a absoluta maioria dos cargos, sem falar na séria quebra da hierarquia temporal em relação aos servidores mais antigos. Assim, profissionais qualificados, essenciais para áreas como tecnologia da informação, regulação de mercados, controle externo e outros afins certamente não aceitarão ingressar em carreiras onde a remuneração condigna é uma promessa para dali a duas décadas. O resultado será a seleção adversa e a alta rotatividade: o Estado servirá apenas como “trampolim” para o setor privado, perdendo continuamente sua memória técnica e sua inteligência organizacional. A “economia” de curto prazo com a folha de pagamento se converterá no custo incalculável da ineficiência e da descontinuidade das políticas públicas.

Por fim, a proposta lança uma sombra de insegurança jurídica sobre os atuais servidores. Embora a jurisprudência indique que não há direito adquirido a regime jurídico, há direito à irredutibilidade de vencimentos e à segurança nas relações jurídicas. As regras de transição propostas são vagas e preocupantes. O Art. 3º do ADCT da PEC 38/2025 fala em “reestruturação do quadro de pessoal” e “eliminação de sobreposições”, enquanto o Art. 15, § 1º do PL menciona apenas que lei disporá sobre o “enquadramento” na nova tabela única. Não há garantias explícitas sobre como o tempo de serviço pregresso será considerado nesse novo “leito de Procusto” de 20 níveis. É real o risco de um decesso funcional disfarçado, onde, por exemplo, o servidor é reenquadrado em níveis inferiores ou tem sua progressão estagnada para se adequar à nova tabela.

Assim, a Reforma Administrativa, sob o pretexto de modernizar, opera outro desmonte quando desunifica direitos para fragilizar o vínculo, mas unifica tabelas para achatar salários, violando a Constituição, a autonomia dos Poderes e órgãos, assim como a eficiência administrativa.

Crédito: Robson Barbosa / JOTA – @ disponível na internet 11/12/2025

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui