Ao celebrar os 35 anos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), somos convidados a realizar um exercício duplo: olhar para trás, reconhecendo uma trajetória de êxitos institucionais e impacto social profundo; e olhar para frente, com visão estratégica diante dos desafios que se impõem ao Brasil e ao mundo do trabalho nas próximas décadas. O FAT foi, certamente, uma importante inovação institucional da redemocratização brasileira ao criar um fundo público de natureza trabalhista, com finalidades claras, estáveis e estratégicas, de proteger o trabalhador no desemprego, financiar a qualificação profissional e apoiar o desenvolvimento econômico com geração de emprego e renda.
Graças ao FAT, milhões de trabalhadores tiveram acesso ao seguro-desemprego, ao abono salarial, à formação e requalificação profissional, à proteção dos empregos em períodos de crise ou diante de catástrofes, ao microcrédito produtivo e ao financiamento do investimento em inovação e em atividades produtivas de caráter regional ou setorial. Uma parte significativa do financiamento de longo prazo da economia brasileira, especialmente via BNDES, só foi possível porque o país constituiu, com o FAT, uma verdadeira poupança social do trabalho. Um mecanismo virtuoso de organização do desenvolvimento, onde o fruto do trabalho retorna para o próprio trabalhador, fortalecendo o emprego, a renda e a capacidade produtiva nacional.
Essa é a concepção política e conceitual central e, por isso, o FAT não deve ser tratado como caixa auxiliar do Tesouro. Ele é uma poupança coletiva constituída pelo trabalho, para servir aos trabalhadores e para estruturar o desenvolvimento.
O novo mundo do trabalho e as transições em curso
Estamos em um momento histórico no qual o passado já não explica o futuro. O mundo do trabalho está sendo reconfigurado por um conjunto de transições simultâneas, profundas e aceleradas, que deslocam estruturas produtivas, remodelam ocupações e redesenham relações sociais. Essas transições podem ser agrupadas em cinco grandes dimensões
Vivemos um ciclo de transformação impulsionado pela automação, pela inteligência artificial, pelas plataformas digitais e pela uberização. Novas ocupações surgem enquanto empregos tradicionais desaparecem. A velocidade dessa mudança exige, além de regulações inovadoras e específicas, uma capacidade contínua de qualificação e requalificação da força de trabalho, sob risco de ampliação das desigualdades e da precarização.
A economia global caminha para a descarbonização, a expansão da indústria verde, as cadeias de energia renovável e a bioeconomia. Essa transição exige reconversão produtiva, redução ou adaptação de atividades intensivas em carbono, novos padrões tecnológicos e mudanças nos processos de trabalho. Além disso, o país precisa de sistemas adequados de adaptação, mitigação e resposta às tragédias ambientais que infelizmente já fazem parte do cotidiano. Tudo isso amplia a demanda por investimentos em infraestrutura econômica e social, por novas competências e por uma formação contínua, inclusive para garantir que empregos verdes sejam também empregos decentes.
O envelhecimento da população e as mudanças no perfil etário exigem inovar nas trajetórias profissionais, menor jornada de trabalho e sistemas eficientes de aprendizagem ao longo da vida. O Brasil precisa planejar essa transição agora, não quando seus efeitos forem irreversíveis.
As cadeias globais de valor estão se reorganizando. Há disputas por investimentos, processos de reindustrialização seletiva, proteção estratégica de setores e realocação de capacidades produtivas. Países que possuem sistemas sólidos de proteção social, formação profissional e instituições de apoio ao desenvolvimento produtivo, industrial e à inovação têm mais capacidade de atrair investimentos e criar valor agregado.
As relações de trabalho vivem profunda recomposição. Mudam as formas de contratação, aumenta a importância da negociação coletiva, das estruturas de representação sindical e dos mecanismos institucionais de proteção. Nesse ambiente fluido, cresce a necessidade de instrumentos públicos capazes de oferecer segurança econômica, proteção social e inclusão produtiva, bem como fortalecer e valorizar a negociação coletiva.
Em todas essas transições a variável central é o trabalho, sua quantidade e qualidade, sua remuneração e grau de proteção. Por isso, o FAT deixa de ser um fundo “do passado” e precisa ser permanentemente reposicionado como pilar estratégico do futuro do trabalho no Brasil, no processo de transformações disruptivas em curso.
O papel estratégico do FAT: proteção, formação, inclusão produtiva
Proteção dos empregos e estabilização social
O seguro-desemprego é o papel mais conhecido do FAT. Mas, em um contexto de transições aceleradas, ele é muito mais que uma política social, é um estabilizador macroeconômico. Em momentos de crise setorial, ruptura tecnológica ou impacto ambiental, cabe ao FAT e ao Ministério do Trabalho e Emprego desenvolver um Programa de Proteção do Emprego, à semelhança do que se estruturou no passado, de caráter permanente, com objetivo de proteger a renda das famílias, sustentar a demanda e dar tempo para a reorganização produtiva.
O desafio é ainda maior. Precisamos avançar para um sistema ampliado de proteção dos empregos e dos trabalhadores em transição, não só para crises cíclicas, mas para mudanças estruturais que atingirão milhões de ocupações. Projetar a proteção de uma força de trabalho de 110 milhões de pessoas, quase metade delas sem cobertura formal, é tarefa de Estado — e o FAT pode ser seu alicerce.
Formação, requalificação e aprendizagem ao longo da vida
A transição tecnológica e ecológica impactará a vida trabalhadores ao longo de toda a sua trajetória ocupacional, exigindo atualização permanente. Isso só será possível se o país construir um verdadeiro sistema de formação profissional que esteja alinhado à estratégia de desenvolvimento produtivo, hoje conduzida pela Nova Indústria Brasil (NIB), à política de ciência, tecnologia e inovação, à agenda da economia verde e da bioeconomia, à política de emprego e de desenvolvimento regional.
O FAT é a fonte natural de financiamento dessa engrenagem que deve se constituir em sistema(s). E esse(s) sistema(s) precisa articular universidades, Institutos Federais, escolas técnicas estaduais, Senai, Senac e o conjunto do Sistema S, garantindo capilaridade, qualidade e pertinência às demandas produtivas emergentes e às necessidades de formação profissional da classe trabalhadora.
Inclusão produtiva e desenvolvimento regional
O FAT também é instrumento fundamental para inclusão produtiva e dinamização dos territórios. Por meio do microcrédito, de linhas de financiamento e de apoio a arranjos produtivos locais, ele atua onde mais se precisa de trabalho de qualidade.
O Fundo pode ser a infraestrutura financeira da transição justa apoiando a reorientação e qualificação de cadeias produtivas poluentes; oferecendo crédito para pequenas empresas inovarem e se digitalizarem; fomentando a economia solidária, cooperativas e empreendimentos de base comunitária e popular.
Um desenvolvimento regional inclusivo exige financiamento de longo prazo, estável e orientado por objetivos sociais, exatamente a vocação do FAT.
As ameaças à sustentabilidade do FAT
Apesar de sua natureza trabalhista e finalidades específicas, a Emenda Constitucional 103/2019 permitiu o uso de recursos do FAT para financiar a Previdência Social, o que vem sendo aplicado desde 2021. Com isso, uma poupança destinada à proteção do trabalhador, à formação profissional e ao desenvolvimento vem sendo consumida para corrigir déficits gerados por pejotização, terceirização desenfreada e informalidade.
O FAT não deve ser tratado como “caixa auxiliar” do orçamento, o que representa uma distorção grave. É fundamental rever o dispositivo constitucional que permite essa utilização e blindar o FAT como fundo de proteção ao trabalhador e como base financeira da transição justa e da nova industrialização.
Pejotização e erosão da base de financiamento
O FAT depende da contribuição sobre a massa salarial formal. A pejotização, frequentemente fraudulenta, reduz essa base. MEIs precarizados, PJs individuais, contratos atípicos e plataformas digitais multiplicam formas de trabalho que não contribuem proporcionalmente para a proteção social.
Surge a contradição central do nosso tempo: quanto mais profundas as transições, maior a necessidade de FAT. Quanto mais avançam a pejotização e a informalidade, menor a receita do FAT.
Se essa erosão continuar, o país verá o Fundo ser asfixiado. Sem FAT sustentável, o Brasil perde seu principal instrumento para organizar uma transição justa. Por isso, é preciso enfrentar o problema adequando e inovando em termos de legislação trabalhista e tributária, distinguindo empreendedorismo real de fraude, e assegurando contribuição adequada de todas as formas de trabalho por parte das empresas, dos contratantes dos serviços e dos trabalhadores. Trata-se de um debate estrutural sobre sustentabilidade do modelo de proteção social.
O FAT e o BNDES: financiar o desenvolvimento com emprego
Clemente Ganz Lúcio – 15/12/2025














