Primeiro latino-americano à frente da Igreja Católica foi ao mesmo tempo pastor e pontífice, conservador e não convencional. Mas não conseguiu cumprir as expectativas de reformas.
O papa Francisco morreu na manhã desta segunda-feira (21/04) às 7h35 (2h35 em Brasília), segundo anunciado pelo Vaticano em comunicado.
Por tradição, o funeral do líder da Igreja Católica começa na Basílica de São Pedro, com o corpo do religioso sendo exposto para visitação e oração dos fiéis. Ele, entretanto, desejou que sua cerimônia fúnebre seja simples, sem pompas.
Neste domingo, o pontífice, de 88 anos, tinjha aparecido na sacada da galeria central da Basílica de São Pedro para a bênção Urbi et Orbi após a missa do Domingo de Páscoa e depois saudou os fiéis circulando a Praça de São Pedro a bordo do papamóvel, usando o veículo pela primeira vez após deixar hospital.
Com voz ainda fraca, ele desejou a todos, da sacada, uma “feliz Páscoa” e pediu ao mestre de cerimônias para fazer a leitura de sua tradicional bênção “Urbi et Orbi” (“à cidade e ao mundo”) para as cerca de 35 mil pessoas reunidas na Praça São Pedro.
Francisco não participou de nenhum dos ritos da Semana Santa, pois ainda estava se recuperando após passar 38 dias no hospital Agostino Gemelli com pneumonia bilateral e receber alta em 23 de março.
Entretanto, o sumo pontífice fez algumas aparições, após sair da clínica – contrariando recomendações médicas, que previam ao menos dois meses de convalescença – como, por exemplo, ao visitar uma prisão perto do Vaticano na tarde da Quinta-feira Santa, para cumprimentar os presos, como vinha fazendo desde o início de seu pontificado.
Primeiro papa latino-americano
Foi o primeiro papa da América Latina, o primeiro jesuíta à frente da Igreja Católica. E nunca antes um líder da Igreja escolhera este nome tão programático, porque evoca Francisco de Assis (1182-1226).
Francisco de Assis, filho de um comerciante que renunciou a todas as riquezas, seguiu o chamado de Jesus por uma vida na pobreza radical e fundou a ordem franciscana com este espírito. O nome papal Francisco não soa como o esplendor dos palácios do Vaticano, não lembra um chefe da Igreja e de Estado.
O argentino Jorge Mario Bergoglio, eleito papa em 2013, não escolheu esse nome sem motivo: como nenhum Santo Padre antes dele, defendeu os refugiados e os sem-teto e lutou pela proteção da Criação e do clima. Com isso, impressionou o mundo. Nos últimos tempos vinha sofrendo visivelmente com a diminuição de suas forças.

Pronunciamento incendiário
Quando o papa Bento 16 surpreendentemente renunciou em fevereiro de 2013, afloraram as especulações no Vaticano, também sobre o sucessor. Bergoglio, então com 76 anos, era pouco citado como candidato, muito menos como favorito.
O arcebispo de Buenos Aires, descendente de imigrantes italianos, já fora um dos candidatos no conclave de 2005, ao lado do alemão Joseph Ratzinger. Antes de sua escolha como sumo pontífice em 2013, porém, Bergoglio tomara a palavra num “pré-conclave”, o primeiro de seu tipo, no qual os cardeais queriam trocar opiniões sobre a situação da Igreja.
Esse “discurso incendiário” tornou-se conhecido semanas depois. Nele, o argentino apelara por uma “liberdade de expressão ousada” na Igreja, que teria que sair de si mesma e expandir-se “para as margens”. Segundo ele, a Igreja não devia girar em torno de si mesma.
Eram palavras inusitadas, vidas de um cardeal, sobretudo um que se tornaria papa. O poder desse discurso ainda pode ser sentido no documentário de Wim Wenders Papa Francisco: Um homem de palavra (2018). Também aqui, o chefe da Igreja Católica prega, num discurso acessível, um novo começo para a Igreja e a proximidade com os marginalizados.
Sua conduta foi coerente com essas propostas. Ao contrário de seus predecessores, por séculos, Francisco não se mudou para o Palácio Apostólico, que se ergue no alto da Praça de São Pedro, como a residência de um soberano, e transpira passado. Em vez disso, ficou alojado em dois quartos da Casa de Hóspedes do Vaticano durante todo o seu pontificado. E fazia as refeições na mesma sala onde os funcionários ou convidados eram servidos com um simples buffet.
Em muitos aspectos, Francisco agiu de modo totalmente oposto ao de Bento 16, que muitas vezes parecia pouco sociável. Quase dez anos mais velho que seu sucessor, o alemão costumava comparar Francisco a um avô, a quem visitava e simplesmente escutava.
O papa que andava a pé
Francisco abraçava as pessoas, ria. Quando viajava, andava em carros pequenos, ia para as reuniões a pé, sozinho, com uma velha pasta na mão. De vez em quando, telefonava para totais desconhecidos que estavam de luto ou desesperados, conversava com os surpresos interlocutores, oferecendo-lhes consolação.
Desde o início, o papa “do fim do mundo”, como se apresentou em sua primeira aparição, encerrava sua saudação dominical aos fiéis reunidos na Praça de São Pedro dizendo: “Não se esqueçam de rezar por mim. Bom apetite!”
Sua primeira viagem o levou ao sul da Itália. Ali, Francisco celebrou a missa, recordou os muitos refugiados que se afogaram na costa da ilha mediterrânea de Lampedusa, a caminho da Europa. “A cultura de afluência que nos faz pensar em nós mesmos nos torna insensíveis aos gritos dos outros”, disse, e lamentou – numa citação que marcou seu pontificado − a “globalização da indiferença” neste “mundo da globalização”.
Francisco criticou repetidamente a globalização, e muitas vezes também o capitalismo: “Criamos novos ídolos. A adoração do antigo Bezerro de Ouro […] encontrou uma forma nova e impiedosa no fetichismo do dinheiro e na ditadura de uma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano”, escreveu em novembro de 2013, em sua primeira carta didática.
Advertências ao mundo
Em seus primeiros anos, Francisco fez seus discursos políticos mais fortes, atuando como defensor dos pobres e do Sul global: em 2014, perante o Parlamento Europeu em Estrasburgo, em 2015 perante o Congresso dos Estados Unidos, em Washington, e as Nações Unidas, em Nova York. Ele falou de uma “Europa um tanto envelhecida e oprimida”, uma “cultura descartável” e um “consumismo desenfreado”. A Europa deveria envolver-se novamente em prol da paz e da dignidade humana de todos.
O papa também reclamou na ONU sobre a “cultura do descarte” que atinge mais duramente os mais pobres, e instou a comunidade internacional a implementar reformas rápidas e fazer mais na ajuda ao desenvolvimento e na proteção do clima. Mas também foi o chefe da Igreja em tempos em que se espalhavam o nacionalismo e a rejeição do multilateralismo e do diálogo, quando o populismo ganhava força na política mundial. Em geral, fazia suas advertências sorridente.
Talvez por razões políticas, muitos governantes queriam uma foto com o clérigo, mas ignoravam suas palavras. Francisco sentiu o mesmo com sua encíclica Laudato si, de 2015. Este grande ensinamento para a integridade da Criação parece uma acusação política − mas raramente foi escutado.

Visitas aos pobres
Entre suas dezenas de viagens ao exterior, as mais importantes foram para a Ásia, África e América Latina, e para tal também correu riscos pessoais. Como na visita a Bangui, na República Centro-Africana, em 2015, onde milícias cristãs e muçulmanas se combatiam.
Francisco sempre buscou a proximidade com os pobres, parava nas favelas, convidava os cidadãos. Na Europa, seus destinos ficavam mais nos limites do continente rico, como a Albânia ou a Romênia, por exemplo. China e Rússia permaneceram sendo países jamais visitados por um líder da Igreja Católica.

Porém o papa recebeu o presidente russo três vezes, em 2013, 2015 e 2019. Em 2016, conheceu em Havana o patriarca ortodoxo russo Cirilo. Quando a Rússia invadiu a Ucrânia em fevereiro de 2022, matando milhares de civis, chamou líder ortodoxo de “clérigo do Estado”, mas ainda esperava conquistá-lo como aliado contra a guerra e o ódio.
Excesso de expectativas não cumpridas
No âmbito da Igreja, o papa jesuíta era alvo de enormes expectativas, pois antes dele a liderança católica seguira por décadas um curso conservador e fortalecera a centralização. Muitas esperanças depositadas em Francisco foram frustradas, mas ao menos ele voltou a permitir o debate. Antes dele, os sínodos de duas semanas de duração no Vaticano eram em grande parte tediosas sessões de leitura de manuscritos prontos.
Com Francisco, houve debates abertos e polêmicos sobre temas como família (2014, 2015) e juventude (2018). O Sínodo para a Amazônia, de 2019, tornou-se uma denúncia de exploração da natureza e desrespeito aos povos indígenas. Seu grande projeto, no entanto, foi a consulta global sobre uma Igreja sinodal capaz de diálogo.

Quanto a mudanças na doutrina eclesiástica. Francisco falou com mulheres que se sentiam excluídas de sua Igreja, encontrou homossexuais que sofriam na instituição. Ele sempre se apresentou como um padre espiritual, o pastor supremo do mundo, e desempenhou esse papel de forma impressionante. Mas mudanças em tópicos como o celibato e a ordenação de mulheres nunca foram discutidas seriamente. Pelo menos o papel dos leigos foi fortalecido significativamente por Francisco. Isso também fez parte da grande reforma da Cúria, o aparato do Vaticano, que basicamente reorganizou o governo do papa.
Ao longo de seu pontificado, o argentino teve que se defrontar com casos de abuso sexual em grande parte da Igreja, e também com as panelinhas e intrigas do Vaticano. O que não ficou claro foi o que o próprio Francisco sabia dos abusos cometidos por clérigos em sua Argentina natal. Apesar de proclamar “tolerância zero” para abusos e seu encobrimento, e a investigação sistemática em várias dioceses ter revelado a culpa de bispos, o pontífice raramente decretou consequências contra os responsáveis.
Aproximação com judeus e muçulmanos
Um legado que certamente permanecerá, são suas relações com judeus e muçulmanos. Mesmo como papa, Francisco gostava de se apresentar como “irmão bispo”. De seu círculo de amigos íntimos, constava o rabino de Buenos Aires, e Francisco também conheceu representantes de outras religiões monoteístas, sendo o primeiro papa a visitar a Península Arábica, berço do Islã.
Na capital dos Emirados Árabes Unidos, assinou com lideranças muçulmanas e de outras Igrejas a histórica Declaração de Abu Dhabi, um documento que evoca a fraternidade humana. Em março de 2021, viajou para o Iraque e fez campanha pelo diálogo e fraternidade de religiões entre os xiitas. Quanto mais tempo estava no cargo, mais intensos se mostravam seus esforços para estabelecer contatos com o Islã.

A pandemia de covid-19 e as especulações sobre o fim do pontificado frearam suas ambições. Aos 84 anos, uma cirurgia intestinal o afastou do cargo por um tempo. A partir de 2022 ficaram visíveis seus problemas no joelho e dores intensas. Cada vez mais o pontífice cumpria os compromissos oficiais de cadeira de rodas, e teve que adiar uma viagem à África, com paradas no Congo e no Sudão do Sul, longamente planejada e muito importante para ele.
Quanto mais velho ele ficava e quanto mais perceptíveis se tornavam as consequências da pandemia, mais Francisco se tornava admoestador. Francisco sozinho na escura e chuvosa Praça de São Pedro, implorando a Deus diante do sofrimento global, antes da Páscoa de 2020: esta cena permanece uma das mais impressionantes de seu pontificado.
Crédito: Christoph Strack / Deutsche Welle -disponível na internet 21/4/2025