A brasileira premiada com “Nobel da Agricultura” por trabalho que mantém Brasil como “celeiro do mundo”

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Mariangela Hungria @World Food Prize

A engenheira agrônoma e pesquisadora brasileira Mariangela Hungria foi agraciada nesta terça-feira (12/5) com o Prêmio Mundial da Alimentação por seu trabalho com insumos biológicos que revolucionaram a agricultura no Brasil.

O prêmio é conhecido como ‘Nobel da Agricultura’ e homenageia indivíduos que melhoraram a qualidade, a quantidade ou a disponibilidade de alimentos em todo o mundo.

As pesquisas comandadas por Hungria deram origem a dezenas de tratamentos biológicos para sementes que aumentaram significativamente a produtividade das principais culturas e reduziram a necessidade de fertilizantes químicos.

Estima-se que os produtos desenvolvidos pela engenheira agrônoma associada à Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) tenham sido utilizados em mais de 40 milhões de hectares no Brasil, gerando aos agricultores uma economia de até US$ 25 bilhões (R$127,5 bilhões) por ano em custos de insumos.

Os desenvolvimentos possibilitados pela pesquisa também evitaram a emissão de mais de 230 milhões de toneladas métricas de CO₂ equivalente por ano.

Autora de mais de 500 artigos, capítulos e publicações acadêmicas, ela também produziu o primeiro manual em português para métodos de microbiologia do solo adaptados aos trópicos.

Por seu trabalho, Mariangela Hungria é considerada ‘mãe da microbiologia’ no Brasil.

“É uma emoção incrível receber esse prêmio”, disse a pesquisadora de 67 anos à BBC Brasil. “Acho que o diferencial que me destacou foi a persistência: mais de 40 anos acreditando que os biológicos poderiam ser uma solução viável economicamente e de alto rendimento.”

O Prêmio Mundial da Alimentação foi criado em 1986 e já condecorou outros três brasileiros além de Hungria.

Em 2006, os agrônomos Edson Lobato e Alysson Paolinelli foram homenageados, juntamente com o cientista americano Andrew Colin McClung, por seus papéis fundamentais na transformação do Cerrado brasileiro. E em 2011, o então ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva recebeu o prêmio ao lado do ex-presidente ganês John Agyekum Kufuor por sua atuação no combate à fome.

O anúncio do Prêmio Mundial da Alimentação deste ano foi feito na sede internacional da organização, em Des Moines, Iowa, Estados Unidos.

“Como pioneira industrial e mãe, a Dra. Hungria serve como um exemplo inspirador para mulheres pesquisadoras que buscam incorporar ambos os papéis. Suas descobertas e desenvolvimentos lançaram o Brasil para se tornar um celeiro global”, disse a governadora de Iowa, Kim Reynolds, que presidiu a cerimônia.

Cultura de soja no Brasil
Brasil é considerado o “celeiro do mundo”: país produz alimentos suficientes para necessidades calóricas de aproximadamente 900 milhões de pessoas @getty images

Uma nova ‘Revolução Verde’

O prêmio foi fundado por Norman Ernest Borlaug, que recebeu o Nobel da Paz em 1970 pelo seu papel na Revolução Verde. O movimento foi um marco histórico que transformou profundamente a agricultura e a economia mundial, possibilitando a produção em larga escala de grãos e alimentos essenciais.

O modelo se baseou, entre outras coisas, na intensiva utilização de sementes geneticamente alteradas, fertilizantes e agrotóxicos.

Já o trabalho de Mariangela Hungria foi bem-sucedido em justamente buscar alternativas biológicas para os fertilizantes químicos.

“Muita gente dizia que isso não teria futuro, que biológicos não dariam altos rendimentos para a agricultura. Mas eu nunca desisti”, disse à BBC.

Os inoculantes, que são um de seus focos de pesquisa há pelo menos três décadas, são produtos não químicos que ajudam as plantas na absorção dos nutrientes. Podem conter microrganismos benéficos para o desenvolvimento vegetativo, como bactérias e fungos.

Hungria foi uma das primeiras proponentes da fixação biológica de nitrogênio. O método desenvolvido pela pesquisadora e seus colegas usa bactérias fixadoras para converter o nitrogênio do ar, que é abundante mas inacessível para plantas e animais, em formas que as plantas conseguem absorver e utilizar para seu crescimento.

“Se não fosse esse processo natural, teríamos que usar fertilizantes químicos que consomem muita energia — cerca de seis barris de petróleo por tonelada de nitrogênio produzido”, explica Hungria.

“O nitrogênio fertilizante é o mais poluente de todos os nutrientes. Segundo o IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas], cada 1 kg de nitrogênio equivale a 10 kg de CO₂.”

‘Bactérias do bem’

A pesquisadora começou estudando rizóbios, um tipo de bactéria que interage com as raízes de leguminosas para fornecer nitrogênio em troca de energia. Ela descobriu que a aplicação dessa cepa à soja por meio de um inoculante anualmente poderia aumentar a produtividade em até 8% em comparação com o uso de fertilizantes sintéticos.

A brasileira também foi a primeira a lançar cepas comerciais da bactéria Azospirillum brasilense. Sua pesquisa mostrou que a combinação e a aplicação de Azospirillum brasilense e rizóbios poderia dobrar o aumento da produtividade em feijão e soja.

“O Brasil é o maior produtor e exportador de soja do mundo graças ao uso dessas bactérias. Sem elas, seria inviável economicamente”, diz Hungria.

Segundo a microbiologista, ainda que o uso de fertilizantes químicos predomine no Brasil hoje, os inoculantes são importantes porque podem ser produzidos nacionalmente, enquanto a grande maioria dos fertilizantes utilizados em solo brasileiro são importados.

Atualmente, o país importa cerca de 85% de todos os fertilizantes químicos necessários para a agricultura nacional.

Mas graças aos insumos biológicos, o país conseguiu economizar no ano passado quase R$ 130 bilhões em apenas uma safra de soja, por não precisar buscar alternativas no exterior.

Mariangela Hungria mostra cultura de bactérias no laboratório
Mariangela Hungria mostra cultura de bactérias no laboratório @ World Food Prize

O estímulo ao uso de fertilizantes biológicos também se tornou ainda mais relevante no Brasil com a guerra na Ucrânia e a aplicação de sanções contra a Rússia, já que cerca de 23% das importações de insumos químicos necessários para a agricultura nacional vinham dos russos.

“A guerra na Ucrânia e a pandemia escancararam nossa dependência de fertilizantes importados — e abriram espaço para os biológicos”, diz a pesquisadora.

Mariangela Hungria afirma, porém, que o Brasil – e o mundo – ainda têm um longo caminho a percorrer na área de fertilizantes biológicos.

“O Brasil é líder no uso de bio insumos, mas eles ainda representam só 10% em relação aos químicos”, diz.

“Falta investir mais em pesquisa e em indústrias para diminuir nossa dependência e o Brasil alcançar a agricultura que a gente sonha: de alta produtividade, mas cada vez mais sustentável.”

A pesquisadora defende ainda uma abordagem ampla para que os avanços possibilitados pela ciência tenham um efeito democrático na distribuição de alimentos.

“A produção de alimentos sozinha não acaba com a fome. É preciso uma abordagem multidisciplinar: educação, economia, comunicação, apoio à agricultura familiar”, diz.

“O Brasil produz comida para quase 1 bilhão de pessoas, mas já tivemos há alguns anos 33 milhões em insegurança alimentar. Isso é inaceitável.”

Paixão que vem da infância

A paixão de Mariangela Hungria pela microbiologia e pelo meio ambiente nasceram ainda na infância. Aos 8 anos, a paulistana natural de Itapetininga ganhou de presente da avó o livro Caçadores de Micróbios e soube que gostaria de seguir a carreira no futuro.

“Minha avó era professora de Ciências na escola pública e percebeu meu interesse pelo tema. Ela sempre fazia experimentos comigo no jardim, explicando fatos sobre o ar, a fotossíntese ou os organismos que não conseguimos ver a olho nu”, conta Hungria.

“Mas eu logo percebi que não queria ser da área da saúde, queria trabalhar com produção de alimentos, para contribuir com a luta contra a fome.”

Após a escola, Hungria começou sua trajetória na área com uma formação em Engenharia Agronômica na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ-USP). Foi nesse período, diz, que se interessou pela pesquisa sobre processos biológicos para avançar a agricultura.

Após a graduação, Hungria continuou os estudos com mestrado, doutorado e pós-doutorado, com passagens por universidades nos Estados Unidos e Espanha.

A microbiologista é ainda comendadora da Ordem Nacional do Mérito Científico e membro titular da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Brasileira de Ciência Agronômica.

Professora na Universidade Estadual de Londrina, Hungria é atualmente bolsista de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e foi bolsista da entidade por grande parte de sua trajetória.

Em março de 2025, ela foi agraciada com o Prêmio Mulheres e Ciência, promovido pelo Conselho.

Mariangela Hungria examina mudas de plantas
Mariangela Hungria examina mudas de plantas @ World Food Prize

‘A agricultura do futuro é feminina’

A pesquisadora não nega, porém, que seu percurso na área da agricultura e microbiologia foi cheio de percalços.

“Quando decidi fazer agronomia, esse era um mundo extremamente masculino”, diz Mariangela Hungria, que deu à luz à primeira filha quando ainda estava na graduação.

“Enfrentei muitos preconceitos por ser mulher, mãe jovem, e ainda mais por ter uma segunda filha com necessidades especiais.”

A brasileira celebra o fato da área estar mais diversificada em 2025, mas afirma que ainda há muito a melhorar.

Questionada sobre os conselhos que daria a jovens pesquisadoras, cita “persistência, competência e resultados científicos robustos” como a melhor forma de enfrentar o preconceito.

“Às vezes temos que engolir seco e chorar em casa, mas ninguém pode agir contra argumentos e resultados científicos”, diz.

Mariangela Hungria argumenta ainda que a agricultura precisa das mulheres para crescer. “A agricultura sustentável do futuro traz uma visão muito feminina — de cuidado com o solo, o meio ambiente e as pessoas.”

Crédito: Julia Braun / BBC Brasil @ disponível na internet 15/5/2025

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