A imagem clássica está irremediavelmente ultrapassada. Esvaziou-se o estereótipo do administrador como um generalista de paletó e planilha, um faz-tudo sem especialidade. Nos corredores das faculdades, nas startups e, até mesmo, nas grandes corporações, uma nova espécie de profissional está sendo forjada, e sua matéria-prima é a complexidade. Os números do Censo da Educação Superior de 2023 são um testemunho eloquente dessa metamorfose: 2.099.058 milhões de alunos matriculados em cursos superiores na área de administração ou ligados à gestão — como finanças, recursos humanos, turismo e agronegócio — não representam uma massa de indecisos, mas um exército de aspirantes a gestores do futuro.
Esse não é um fenômeno de curta duração. É uma tendência histórica que se consolida nos 60 anos da profissão, celebrados neste ano. Entre 2013 e 2023, a administração permaneceu entre os três cursos com maior número de ingressantes, totalizando 3.212.124 calouros nessa década. Mais do que indicar popularidade, esses dados sinalizam um reconhecimento estrutural: a ciência da gestão tornou-se o sistema operacional indispensável para qualquer organização que almeje eficiência, transparência e sustentabilidade, seja uma multinacional, uma ONG ou um órgão público.
O fim do generalista
A pergunta que ecoa é direta: o curso para indecisos finalmente encontrou sua vocação? Para a doutora e mestra em administração Bárbara Novaes Medeiros, professora da Universidade de Brasília (UnB), a resposta é um definitivo sim.
“A administração deixou de ser um curso para indecisos por sua ‘popularidade’ no mercado, tornando-se essencial por sua formação multidisciplinar, que proporciona o desenvolvimento da capacidade de resolução de desafios estratégicos organizacionais”, analisa. Bárbara destaca que a valorização da profissão agora vem de seu potencial para integrar áreas antes vistas como periféricas, como “proteção do meio ambiente, cuidado com as pessoas e a forma como a empresa é administrada em termos de governança”.
Na visão dos que estão na linha de frente da formação, como o universitário Nathan Mattana, 22 anos, a mudança é ainda mais profunda. “No Brasil, vivemos uma certa degradação do curso — o que muitos chamam de ‘sucateamento’. Mas, quando olhamos para fora, em países como EUA, Espanha ou Reino Unido, percebemos a dimensão e o prestígio que a formação em administração ainda tem”. Para o estudante do IBMEC, ingressar no curso por indecisão é um caminho para o fracasso. “Quem entra sem clareza se perde no meio do caminho. O perfil atual é de um administrador por vocação, por excelência”, defende.
Mas o que atrai tantos jovens para um campo tão disputado? A resposta reside na sua quase ilimitada plasticidade. A administração contemporânea não oferece uma carreira, mas um leque de possibilidades. “Há abertura no mercado na área de gestão geral, nas áreas funcionais (marketing, gestão de pessoas, finanças, produção, logística), em consultorias, projetos, processos e empreendedorismo”, enumera a professora Bárbara Medeiros.
Na prática, esse leque se abre em leques ainda maiores. O universitário Nathan visualiza essa multiplicidade como o principal atrativo. “As possibilidades de crescimento são inúmeras. E existe quase um ‘concurso ideal’ para o administrador: o trainee”. Essa visão é corroborada pela experiência de Ruan Vitório, 27, egresso da UnB e gestor no Serviço Social da Indústria (Sesi). “A multidisciplinaridade se mostra como um dos principais desafios. Saber que apesar da especialização ter sua alta importância para as diferentes demandas do mercado, àqueles que conseguem dar um passo atrás e enxergar o todo sob diferente óticas, são capazes de criar novas conexões para mudar o status quo na atuação administrativa. Para quem acessa o campo da administração, o grande desafio é conseguir achar seu campo de paixão, mas não se limitar por ele”, argumenta.
Gestão com propósito e longevidade
O presidente do Conselho Federal de Administração (CFA), Leonardo Macedo, enxerga sob a ótica macroeconômica: a administração é um “vetor de geração de emprego e renda” e uma arma crucial para combater o que ele chama de “custo social da má gestão”, que avalia ser, “possivelmente maior até do que a corrupção”. “É nosso papel mostrar para a sociedade o valor que os profissionais da administração têm. A ciência da gestão e do controle é fundamental para qualquer empreendimento que queira ter longevidade. Deixou de ser um curso para ‘indecisos’. Hoje, ela é preparada para os processos decisórios. Estamos em um projeto de fiscalização para defender as prerrogativas da profissão e, com isso, garantir direitos e sonhos”, explicou Macedo.
“Vemos, por exemplo, as empresas familiares se transformando em holdings e precisando de um CEO profissional. O CFA possui 470 mil profissionais registrados e atuamos para anunciar à sociedade a existência dessa profissão normatizada. Queremos que os administradores ocupem esses cargos, inclusive, na gestão pública. Isso diminui a taxa de fechamento de empresas que não se planejam”, disse o presidente da entidade, enfatizando a importância de planos de negócios e estratégicos.
Resposta acadêmica
A academia não está alheia a essa transformação. Uma mudança fundamental ocorreu nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs), que enterram de vez um modelo puramente teórico. Agora, há a obrigatoriedade de práticas profissionais supervisionadas (estágios supervisionados), especialmente no último semestre, integrando a prática ao longo de toda a graduação.
O currículo moderno é desenhado para desenvolver um portfólio de competências híbridas: abordagem sistêmica de problemas e oportunidades; análise e resolução de problemas com técnicas analíticas e quantitativas; prontidão tecnológica e pensamento computacional; gerenciamento de recursos; relacionamento interpessoal e comunicação eficaz; e autonomia no aprendizado.
Nathan Mattana vivencia essa transição. “Tive o privilégio de unir prática, teoria e dados. Logo no início, tive contato com programação e tecnologia… quando vi a aplicabilidade e o ganho de resultados, me apaixonei”. No entanto, ele aponta uma dissonância que ainda persiste: o gap entre a sala de aula e a realidade do mercado. “Muitos professores ainda estão apegados demais à base ou a métodos ultrapassados. Faz sentido parar para calcular logística na mão, quando existem softwares que otimizam isso em segundos? O ideal seria termos mais docentes com vivência real de mercado”, pondera.
Soft skills e IA
Em um cenário de ascensão avassaladora da inteligência artificial (IA) e da automação, qual é a habilidade definitiva do administrador? O consenso entre acadêmicos e profissionais é esmagador: a técnica é tablatura, mas a música é comportamental.
A professora Bárbara Medeiros é taxativa: “Com toda a certeza, não é a técnica, e sim, as habilidades humanas e comportamentais, que envolvem as nossas ações, o nosso modo de ser e agir nos espaços de trabalho”. Ela observa nas salas de aula um “‘spoiler’ das atitudes dos alunos” que prenuncia seu sucesso ou fracasso futuro. “O reflexo disso, provavelmente, ecoará na presença ou ausência do ‘brilho’ no ambiente de trabalho. Aqui, ‘brilho’ não vem apenas do estrelismo, mas sim, do brilho que nos encanta na educação, na empatia, na comunicação e na humanização”, argumenta a docente. “A maior riqueza das organizações não está na lucratividade alcançada, mas nas relações humanas construídas com afeto”.
De acordo com Ruan Vitório, não é à toa que o profissional de administração do futuro, para além das competências técnicas inerentes à profissão, precisa muito mais de atenção nos aspectos comportamentais para prosperar no ambiente de trabalho. “Espero que os futuros profissionais sejam capazes de entender que seu papel é ser um grande maestro do impacto positivo por meio da sua atuação profissional na vida das pessoas. Ferramentas e recursos não nos faltam, mas a criatividade e autenticidade que cada um de nós tem para sermos agentes de mudança vai nos levar a voos mais altos”, avalia o gestor.
Nathan concorda, mas introduz um conceito crucial: a garra. “Talvez soe polêmico, mas vou dizer: entre hard e soft skills, o que realmente diferencia é o grit — a garra, a resiliência. O administrador do futuro precisa ser um polímata por excelência: dominar a técnica, mas sobretudo ter um comportamento tão bem desenvolvido que nada o paralise”.
Engajamento
A nova geração de administradores não busca apenas empregos; busca causas. A pauta ESG (Environmental, Social, Governance) deixou de ser um apêndice de marketing para se tornar o cerne da estratégia empresarial, e os egressos são os principais agentes dessa mudança.
Ruan Vitório vive essa realidade no Sesi. “Todos os dias sou desafiado como gestor no cuidado com as temáticas. Para além de um discurso, as práticas ESG, diversidade, inclusão e responsabilidade social corporativa fundamentam qualquer projeto ou programa que fazemos”. Ele exemplifica com o Programa Ambiente Positivo de Aprendizagem, que ajudou a desenvolver e que impacta a saúde mental de mais de 170 mil estudantes da rede de educação do Sesi espalhada pelo país. “É um projeto que possui baixo custo e impacto social”, pontua.
Para Ruan, esse engajamento é mais forte na nova geração, “não por uma motivação intrínseca da pessoa que se forma, mas sim pela realidade e urgência que é colocada pelo próprio curso na formação desses profissionais”. Ele acredita que essas questões são agora “critérios de paridade no mercado profissional”.
Se o engajamento com causas é uma marca da nova geração, é no empreendedorismo que esse propósito encontra sua expressão mais concreta. Segundo a professora Bárbara, o fortalecimento do curso se encontra também no estímulo às pessoas que desejam empreender, criar o seu próprio negócio, com a possibilidade de administrar o tempo com mais flexibilidade e faturar mais com ideias inovadoras. “Inclusive, o empreendedorismo tem sido uma possibilidade real durante o próprio curso — não é algo que fica apenas como uma ideia a seguir após a formação. As instituições de ensino superior criam laboratórios de startups, fazem parcerias com agências de fomento, entre outras ações, a fim de impulsionar a carreira empreendedora desde o processo de formação. É uma grande oportunidade”, orienta a docente.
A trajetória de Rafaela Santana, 33, gestora de carreiras e proprietária da Iarhas Consultoria, é um exemplo vivo dessa nova genética. Para ela, a escolha pelo curso foi movida por uma vocação clara para a liderança e organização coletiva, exercitada desde a adolescência.
“A administração, nesse sentido, me parecia a formação que mais ampliava horizontes: oferecia uma visão generalista e sistêmica, mas com possibilidade de mergulhar em áreas específicas”, afirma. Sua vocação se materializou na criação da Iarhas, consultoria que fundou há um ano para fortalecer carreiras e negócios de profissionais negros. Rafaela passou sete anos como gerente de recursos humanos de uma multinacional e isso mostrou a ela distância que profissionais negros como ela estão para conseguir bons empregos e postos de trabalho. “Essa construções de referência dentro do mercado privado era um incentivo e um incômodo de chegar lá, mas ser uma das únicas”, defende ela, que, agora, aplica diariamente a combinação da sua formação acadêmica, da trajetória corporativa e da convicção de que gestão também é um instrumento de transformação de negócio, empregabilidade e geração de renda.
Sobre a pressão do mercado, Rafaela vê o equilíbrio como chave. “O administrador precisa desenvolver inteligência emocional, adaptabilidade e visão crítica para não apenas ‘aplicar teorias’, mas para traduzi-las de acordo com o ambiente, preservando resultados, mas também pessoas”. Esse equilíbrio é central para integrar produtividade e humanidade. “O erro é enxergar esses aspectos como opostos. Produtividade não se alcança apesar das pessoas, mas por meio delas”, defende a especialista em gestão de pessoas e liderança e mestranda em psicologia social, do trabalho e das organizações na UnB.
Sobre o ESG, a administradora-empreendedora é enfática: é impossível falar de gestão hoje sem falar do tema. No entanto, vai além do discurso: “Contratar pessoas diversas é só o primeiro passo; garantir pertencimento, condições de crescimento e impacto é o verdadeiro desafio”. É nesse gap que sua atuação na Iarhas se insere, materializando a visão do administrador como um agente de transformação positiva que a nova geração almeja ser. “Não se formem apenas para ter um emprego, mas para serem agentes de transformação positiva”, afirma.
Para Ruan, um dos principais fatores que promovem a inovação no contexto público e privado é justamente a diversidade das pessoas que fazem parte desses ambientes que, ao trazer diferentes formas de enxergar os desafios propostos no mundo em que vivemos, conseguem formas de garantir entregas que gerem valor ao passo que otimizam recursos. “Esse equilíbrio só é garantido se formos capazes de proporcionar o aprendizado que queremos para as pessoas que estão nessas organizações, na implementação efetiva de incentivos de entrada e permanência de pessoas diversas e no repensar a cultura das instituições de modo a direcioná-las a horizontes mais diversos. E isso só vai acontecer quando a alta gestão desses espaços forem capazes de enxergar a necessidade de entendimento e apoio constante dessas questões”, salienta o jovem administrador.
Impacto positivo
O desafio de conectar a academia ao mercado de trabalho é grande. Presidente do CFA, Leonardo Macedo ressaltou a interlocução da entidade com a Associação Nacional dos Cursos de Administração e eventos que reúnem mantenedores, reitores e coordenadores para estreitar esses laços. “O futuro está aí, com mais de 2 milhões de estudantes. É para eles que estamos trabalhando, promovendo a arte da gestão e do planejamento”, destacou.
Os estudantes que hoje se preparam nas universidades brasileiras são a materialização dessa nova esperança. Eles herdam uma profissão que, longe de se esvaziar, reconfigurou-se como uma das mais críticas para o futuro. Como prevê Ruan Vitório, seu papel é “ser um grande maestro do impacto positivo”. E isso reflete a missão do administrador do século 21. Sua arena é multidisciplinar, seu desafio é a adaptabilidade constante e seu objetivo final é gerar valor que seja, simultaneamente, financeiro e social.
Crédito: Patrick Selvatti / Correio Braziliense – @ disponível na internet 22/9/2025