Como o jogo do bicho se tornou a maior loteria ilegal do mundo — e tema de séries de sucesso

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Poder escolher o animal fez o jogo muito mais interessante, segundo pesquisador @reprodução

O jogo do bicho saiu das esquinas e cadernetas clandestinas para as telas do streaming — e virou um fenômeno de audiência.

Os Donos do Jogo, lançado em outubro pela Netflix (e com segunda temporada já confirmada), alcançou o primeiro lugar entre as séries de língua não inglesa mais assistidas da plataforma ao trazer para a ficção a disputa entre famílias que detêm o comando dos jogos de azar no Rio de Janeiro.

As histórias das dinastias bicheiras já tinham ganhado o fascínio do público em 2024 com Vale o Escrito, que se consagrou como o documentário mais visto da Globoplay ao longo dos dez anos da plataforma.

A contravenção nunca esteve tão presente na cultura pop. Mas como uma antiga rifa de zoológico, proibida por lei, e que existe há 133 anos, se tornou uma das maiores loterias ilegais do mundo?

O tema foi objeto de estudo do cientista político Danilo Freire durante seu doutorado em Economia Política no King’s College de Londres.

Usando ferramentas da economia, ele chegou a conclusões inéditas sobre as regras informais e mecanismos de força que ajudaram essa bolsa ilegal de apostas a sobreviver a mais de 30 governos no Brasil, de ditaduras a democracias.

“Tentei analisar o jogo do bicho como uma empresa capitalista, pois, antes de tudo, é isso o que ele é. Foi criado para gerar lucro”, contou o pesquisador em entrevista para a BBC em 2017.

A teoria da escolha racional, uma das ferramentas da economia empregadas por Freire, assume que as pessoas pensam em termos de custo-benefício.

Elas tentam sempre melhorar seu bem-estar, embora não tomem as melhores decisões o tempo todo nem consigam prever o futuro. Mas fazem o possível para aumentar suas oportunidades.

“O jogo do bicho é um negócio, e me parece razoável que os bicheiros sejam racionais. Se não o fossem, é improvável que tivessem conseguido acumular a fortuna e influência que têm”, afirma.

“São pessoas com ótimas habilidades comerciais e pensamento estratégico para negociar, legalmente ou não, com políticos e policiais, entre outros”, acrescenta Freire, que hoje é professor assistente visitante no Departamento de Data Science and Decision da Emory University, nos Estados Unidos.

Circunstâncias históricas

O embrião do jogo do bicho surgiu em 1892, quando o barão João Batista Drummond teve uma ideia para atrair visitantes a seu zoológico em Vila Isabel, zona norte do Rio.

O local tinha espécies exóticas e belas vistas da cidade, mas faltava público. Entre as novas sugestões de entretenimento para o local, uma se destacou: uma rifa.

Pela manhã, o barão escolhia um animal em uma lista de 25 bichos e colocava sua imagem numa caixa de madeira na entrada no zoo. Quem participava ganhava um tíquete com uma estampa de algum desses 25 animais.

Imagem preta e branco de um tíquete de entrada para zoológico
Tíquete de entrada de 1896 no jardim zoológico do Rio que autorizava o visitante a participar de rifa @MIS-RJ
Ao final do dia o barão abria a caixa e mostrava a figura. O vencedor levava 20 vezes o valor da entrada, o que já superava, por exemplo, a renda mensal de um carpinteiro da época.

“Poder escolher o animal foi uma ótima ideia, pois tornou o jogo muito mais interessante. Eventualmente isso fez com que as pessoas passassem a interpretar sonhos, placas de carro e números, de maneiras muito divertidas também”, explica o pesquisador.

A loteria foi batizada de jogo de bicho e logo virou febre — bilhetes começaram a ser vendidos não apenas no zoológico, mas em lojas pela cidade. A repressão não demorou — autoridades criminalizaram a atividade ainda no final dos anos 1890, pelo bem da “segurança pública”.

Freire aponta quatro facetas do Brasil do final do século 19 que ajudam a explicar a emergência do jogo do bicho:

1) População urbana crescente e excluída do mercado de trabalho;

2) Fluxo de imigrantes com redes familiares que incentivavam a participação no comércio;

3) Aumento na circulação de capital, motivada por fatores como a abolição da escravatura e a industrialização nascente;

4) Sistema judicial fraco na repressão criminal.

“As cidades começaram a crescer, e o fim da escravidão e a entrada de imigrantes no país aumentou o contingente de pobres urbanos. O mercado ilegal era a única opção de renda para muita gente”, explica o cientista político.

“Além disso, embora o jogo fosse ilegal, a lei nunca foi aplicada com muito rigor. Até hoje o jogo é considerado apenas uma contravenção, um delito menor (prevê quatro meses a um ano de prisão). Assim, a punição não era forte o suficiente para amedrontar os bicheiros — os lucros compensavam o risco de ser detido.”

Modus operandi

No jogo do bicho, cada um dos 25 animais corresponde a quatro números: do avestruz (01 a 04) à vaca (97 a 00). Há diferentes opções de apostas, e o prêmio varia com a possibilidade de vitória.

Em geral, seu animal ganha se os dois últimos números do milhar anunciado na Loteria Federal correspondem ao número do bicho. Por exemplo: se a loteria sorteou o número 3350, o vencedor é o galo (49 a 52).

É possível também apostar no milhar (a chamada aposta “na cabeça”): escolher os quatro números e torcer para os quatro saírem no primeiro sorteio. É a jogada mais alta: costuma pagar R$ 4 mil por R$ 1 apostado.

“Os bicheiros tentam expandir seus negócios e oferecer algo que atraia os apostadores. Quando uma aposta dá certo em um lugar, provavelmente ela será copiada pelos vizinhos e testada em outros mercados”, afirma Freire.

A estrutura do jogo tem três níveis de hieraquia. Os bicheiros ou anotadores são a face mais visível do negócio: vendem as apostas com seus bloquinhos e carimbos. Os gerentes são contadores que cuidam dos bicheiros de determinada área, intermediando o contato e o fluxo de dinheiro aos banqueiros (também conhecidos como bicheiros), a elite financeira do jogo.

Um estudo da Fundação Getúlio Vargas estimou que o jogo do bicho tenha arrecadado de R$ 1,3 bilhão a R$ 2,8 bilhões no país em 2014 — número que alguns consideraram subestimado.

Nos anos 1990, empregaria 50 mil pessoas só na cidade do Rio de Janeiro – a Petrobras, por exemplo, tem 68 mil empregados.

Tudo para dar errado

Mas como esse negócio conseguiu se diferenciar de outros mercados ilegais e se tornar lucrativo a longo prazo?

Em tese, tudo conspirava para dar errado: quem iria dar dinheiro a um contraventor e esperar que ele pagasse de volta?

“Quem ganha e não recebe não pode reclamar no Procon, abrir um processo na Justiça ou chamar a polícia”, lembra Freire.

Além disso, sorteios eram realizados em locais escondidos (normalmente as “fortalezas”, os QGs dos banqueiros) e a prática tinha fama de vício moral e forte oposição da Igreja Católica.

O pesquisador identifica dois mecanismos que reduziram o estigma em torno do jogo: a construção de uma forte reputação de honestidade e a oferta de incentivos específicos para clientes e funcionários.

A confiança veio com medidas como a publicação dos resultados dos sorteios à vista de todos (em postes, por exemplo), pagamentos em dia e uma fórmula de multiplicador fixo para os prêmios – se um apostador ganhar o menor prêmio, por exemplo, receberá 18 vezes o investimento, independentemente do valor da aposta.

“Cada apostador já sabe de antemão o quanto pode ganhar. É mais fácil para as pessoas entenderem e deixa o bicheiro numa situação em que todos sabem o quanto ele tem que pagar”, afirma Freire.

Papel com resultado de sorteio do jogo
Exposição pública de resultados é estratégia para melhorar reputação e criar confiança em prática ilegal – @Coletivo Pandilla

Desde os anos 1950, quando os banqueiros do bicho transferiram suas operações para as “fortalezas”, os sorteios saíram dos olhos do público, o que poderia reduzir a confiança e os lucros da atividade.

O negócio, contudo, resolveu esse problema de “assimetria de informações” ao começar a usar os números vencedores da Loteria Federal em seus sorteios, pegando carona na credibilidade da bolsa oficial de apostas.

Outra estratégia para criar boa reputação, aponta Freire, foi o financiamento de atividades culturais, sobretudo as escolas de samba do Rio.

“Elas dão empregos a moradores, geram lucros para as comunidades, aumentam o turismo no Rio e, claro, acabaram virando símbolo nacional”, afirma o pesquisador, que cita ainda a fundação por banqueiros do bicho, em 1985, da Liesa (Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro).

“As escolas de samba começaram a receber apoio estatal em meados dos anos 1930. Mas o governo intervia em sambas e desfiles. O bicho deu certa liberdade às escolas, e permitiu desfiles mais elaborados e que as escolas se profissionalizassem”, completa.

Resolvendo problemas internos

O negócio ilegal teve que lidar ainda com problemas comuns a qualquer empresa: funcionários preguiçosos, patrões carrascos, falta de dinheiro em caixa.

Como garantir, por exemplo, que os empregados das bancas não embolsassem dinheiro de apostas?

Há, naturalmente, ameaça de retaliação violenta, mas não é algo comum.

Bloco com registro de apostas
Trapaça de funcionários é coibida com benefícios coletivos e individuais, e violência é recurso pouso usado @ Coletivo Pandilla

Uma tática mais frequente, diz Freire, é a oferta de “benefícios coletivos”, como a segurança privada proporcionada por pistoleiros e policiais corruptos, pequenos empréstimos sem juros para despesas inesperadas, como tratamento de saúde, e gorjetas de apostadores.

“Seria como se os banqueiros do bicho pagassem bônus e compartilhassem parte dos lucros para que os funcionários se esforcem. É algo que várias empresas também fazem”, aponta.

Há ainda o risco de “quebra da banca” — quando o negócio não consegue pagar os prêmios em caso, por exemplo, de uma aposta muito alta.

A solução para possíveis problemas de liquidez foi a “descarga”: bicheiros menores fazem um “seguro” ao pagar parte das apostas a um bicheiro maior, que garante apostas altas caso seja necessário.

“Bancos e empresas fazem a mesma coisa com contratos de risco compartilhados, operações de hedge e seguros. O mecanismo é o mesmo”, explica Freire – o mecanismo, porém, tende a enriquecer os bicheiros mais poderosos.

O jogo do bicho também cresceu na colaboração com autoridades públicas.

O cientista político diz que essas parcerias criminosas ganharam fôlego na ditadura e se mantiveram no atual período democrático.

Políticos, por exemplo, se beneficiam de doações via caixa 2 e do acesso dos bicheiros a comunidades pobres.

Legalização

Atualmente, tramita no Senado um projeto de lei para legalizar cassinos, jogo do bicho, bingos e caça-níqueis sob algumas condições.

O texto foi aprovado pela Câmara dos Deputados em 2022 e pela Constituição e Justiça (CCJ) em 2024.

A votação no Senado estava prevista para acontecer em julho, mas foi adiada diante da resistência de muitos parlamentares.

O texto prevê que poderia ser credenciada para explorar o jogo do bicho uma empresa a cada 700 mil habitantes em cada Estado e no Distrito Federal. Roraima, único Estado com população abaixo desse patamar, poderia ter só uma empresa.

O projeto regulamenta ainda o aluguel de máquinas caça-níqueis, com a condição de que haja registro oficial delas e auditorias periódicas.

A proposta prevê também a criação de dois impostos sobre o setor, cuja arrecadação seria dividida entre União, Estados e municípios.

O tema divide opiniões.

Defensores do projeto de lei dizem que não faz sentido o Brasil permitir jogos online, como apostas esportivas e cassinos, e abrir mão de atividades presenciais, que poderiam gerar mais empregos e arrecadação.

Sites de apostas esportivas foram autorizados pelo Congresso a funcionar em 2018, durante o governo Michel Temer (MDB).

Esses sites ficaram sem regulamentação por alguns anos, durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), que não pareceu querer mexer com o assunto.

No governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a regulamentação foi aprovada em 2023, com o objetivo de alavancar a arrecadação e criar regras para seu funcionamento. Foi nesse momento, com a aprovação da Lei das Bets, que também foram legalizados cassinos online.

Já críticos ao projeto dizem que legalizar mais atividades do ramo vai agravar problemas como vícios em jogos e endividamento, além de favorecer a lavagem de dinheiro pelo crime organizado.

Crédito: Thiago Guimarães / BBC News Brasil @ disponível na internet 18/11/2025

Jogo do bicho sobrevive há 133 anos e movimentaria bilhões por ano no Brasil -@coletivo padilla

Este texto foi publicado originalmente em junho de 2017 e atualizado em novembro de 2025.

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