Prisão e chaga narcísica

0
664

O mal provocado pelo mau uso da prisão cautelar deveria ser reparado por STF e STJ. Quanto à doença estudada por Freud, acometeu o ministro da Justiça.

  1. 1Prisãoad cautelamad poenam. No Brasil há sempre dificuldade na distinção entre dois institutos diversos, um de Direito Processual e outro de Direito Penal. Ou seja, a prisão processual cautelar (ad cautelam) e a prisão-pena decorrente de condenação definitiva (ad poenam). Trocar e aplicar a providência acautelatória no lugar da outra, como pena, resulta numa ilegítima antecipação de condenação, fora do momento apropriado.

A confusão é tamanha a ponto de, equivocadamente, atacar-se a prisão cautelar argumentando com a garantia constitucional da “presunção da não culpabilidade”, copiada pelo constituinte brasileiro da Constituição italiana de 1948: L’imputato non è considerato colpevole sino alla condanna definitiva (art.27).

Mais: nada a ver com a denominada “Presunção de inocência” da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1791:Tout homme étant presume innocent jusqu’à CE qu’il ait été declare coupable.

De se notar que essa garantia constitucional trata da negação da culpa (não é considerado culpado) e, em sede de prisão cautelar, não se leva em conta a culpa, mas a necessidade processual: evitar fuga, ameaçar testemunhas etc.

Na prisão cautelar preventiva, por exemplo, o juiz pode impô-la para a garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal. Quanto à prisão temporária, aplica-se quando esta for necessária às investigações do inquérito policial e ela veio, em 1989, para acabar com as arbitrárias prisões para averiguações feitas, às escondidas, pela polícia.

A prisão preventiva de ex-ministro Guido Mantega era uma providência desnecessária. Por outro lado, e por continuar a delinquir, dar sumiço em provas e esconder capitais suspeitos, a prisão cautelar de Marcelo Odebrecht representou necessária medida de segurança social. Em síntese, nos Estados Democráticos de Direito, a regra é a liberdade e a prisão cautelar, a exceção.

A propósito, o jurisconsulto Ulpiano, morto em 228 d.C., um dos maiores expoentes da doutrina jurídica romana, observou: “A prisão destina-se a reter os homens e não a puni-los”, numa referência à prisão cautelar. Vale recordar, ainda, o seu uso limitadíssimo no Direito Romano: só aplicável em caso de confissão.

A prisão provisória fundada no arbítrio difundiu-se pela Idade Média. Na França, a custódia provisória ficava ao alvedrio de reis, príncipes e funcionários régios. Era expedida a famosalettre de cachet (carta de prego), uma ordem para a custódia na Bastilha.

No ano de 1872, em Londres, por ocasião do Congresso Internacional para a Prevenção e Repressão ao Crime, o maior penalista europeu, Francesco Carrara, professor da Universidade de Lucca, apresentou e discorreu sobre o seu opúsculo intitulado “Imoralidade da Prisão Preventiva”, dada como a “lepra do direito penal”.

A verdade é que nem o humanista Beccaria, precursor do Direito Penal moderno, foi tão longe e prevaleceu, entre civilizados, a velha lição do italiano Gaetano Filangieri, morto em 1788, de representar a prisão cautelar um “mal necessário”, uma medida de segurança social. Com efeito, caberia ao Superior Tribunal da Justiça, também conhecido como Tribunal da Cidadania, e ao Supremo Tribunal Federal, garante da Constituição, recolocar o tema prisão nos binários da legitimidade e da legalidade. Numa síntese, aferir as balanças das Têmis nacionais.

  1. 2Chaga narcísica. Freud analisou profundamente a “chaga narcísica”. Aquele tipo de ferida que maltrata o ministro da Justiça,Alexandre de Moraes, e o converte em um exibicionista trapalhão no exercício de função pública.

Ao colocar o pé no ministério, Moraes já disparou contra o critério de escolha do procurador-geral de Justiça e passou a impressão de que ele e Temer estavam a jogar de mão, a fim de contar a controlar a Lava Jato. Temer, à época presidente em exercício, desautorizou o seu ministro. Sem controlar a tal “chaga narcísica”, Moraes convocou a imprensa para se mostrar cortando pés de maconha.

Mais ainda, na véspera da imposta prisão temporária de Antonio Palocci, ele esteve em Ribeirão Preto (terra natal do preso) e anunciou a Operação Omertà com sorriso nos lábios.Com isso, Moraes levantou séria suspeita de manipulação eleitoral. A operação, aliás, sem qualquer prejuízo, poderia ser adiada para depois da eleição. Em Ribeirão Preto, o ministro foi apoiar o candidato tucano em disputa com o candidato petista.

Temer manteve Moraes, detentor de padrinhos como Alckmin e Eduardo Cunha. O ministro da Justiça, que não esconde o desejo de ser ministro do STF (mas quer antes ser governador de São Paulo), terá de enfrentar, pela última trapalhada, o Conselho de Ética da Presidência e responder convocação do Parlamento. Pelo interesse em agudos casos de “chaga narcísica”, Freud deverá estar a acompanhar tudo da sua sepultura.

Crédito: artigo publicado dia 03/09/2016 na página da  internet da revista Carta Capital– disponível na web 07/10/2016

Nota: O presente artigo não traduz a opinião do ASMETRO-SN. Sua publicação tem o propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

DEIXE SEU COMENTÁRIO

Por favor, insira seu comentário!
Por favor, digite seu nome!

Moderação de comentário está ativada. Seu comentário pode demorar algum tempo para aparecer.