Acostumados a valorizar o formalismo das leis apenas no que atende a seus interesses e conveniências, os senadores Renan Calheiros e Eunício Oliveira não falam a mesma linguagem dos meios jurídicos e forenses quando tratam de questões de Direito. Nas últimas semanas, o primeiro defendeu para a vaga aberta no Supremo Tribunal Federal (STF) um nome que “protegesse a Constituição para fazer valer as garantias”. Já o segundo rebateu as delações premiadas de empreiteiros corruptos nas quais é citado, alegando que “as pessoas, em hora de desespero, falam e ninguém pode impedir”. O primeiro também patrocina o Projeto de Lei do Senado n.º 280/16, que tipifica o crime de abuso de autoridade, uma forma de induzir os juízes a interpretar as leis apenas em seu sentido literal, desestimulando-os de levar em conta as transformações sociais e a própria vontade do legislador.
O que esses dois senadores tentaram dizer ao certo? De que ameaça fala um deles, quando se propõe a “proteger a Constituição”? Garantias contra quem? É plausível no Estado de Direito que as pessoas “falem”, confessando ilícitos, apenas na “hora de desespero”? Por que os políticos têm procurado controlar as indicações de membros para o Conselho Nacional de Justiça e sugerir operadores jurídicos medíocres, mas fiéis, para o STF? Por que querem punir a magistratura pelo modo como entendem a lei? Por que desejam responsabilizar criminalmente juízes que não se subordinam aos significados dos textos legais conforme padrões impostos por políticos profissionais?
Por trás de tanta desfaçatez e pragmatismo há algo que os políticos percebem, ainda que não compreendam inteiramente: o sentido de uma norma jurídica não se esgota no seu valor léxico, dependendo também das implicações semânticas aduzidas pelo grupo social em que ela foi concebida e está sendo aplicada. As percepções éticas e os valores morais prevalecentes nesse grupo estão na base do chamado clamor das ruas. Não é por acaso que, nos últimos anos, a fundamentação das decisões jurídicas ganhou visibilidade, uma vez que os argumentos apresentados pelos juízes com base em princípios tendem a ter mais importância do que as próprias leis. No cotidiano forense, a argumentação e a justificação jurídicas constituem um processo com base no qual as soluções dadas a litígios são resultantes das interações no interior dos grupos sociais e dos valores de cada magistrado. Quando um juiz interpreta regras e princípios para prolatar uma sentença, seus argumentos, por mais que invoque convicções doutrinárias, refletem a cultura social e política em que vive e em que se formou.
Isso ajuda a entender o temor de parlamentares envolvidos nas apurações da Lava Jato com relação à discricionariedade dos juízes. Graças aos princípios, cuja textura é mais aberta que a das normas, os juízes podem ter uma atuação mais alargada. Com base nas normas, cuja textura é fechada, o campo hermenêutico dos juízes é mais estrito. Durante muito tempo se entendeu que no Direito codificado haveria uma forma própria de compreensão das atividades jurídicas em suas diferentes dimensões, a dos operadores jurídicos e a dos cidadãos comuns a elas submetidos. Com a crescente complexidade social, econômica e política na transição do século 20 para o 21, o problema hermenêutico ganhou novos contornos e o desafio não é mais procurar e descobrir soluções nos textos legais, mas justificá-las. Daí a importância dos princípios, pois facultam aos magistrados, mediante fundamentação, optar pelas interpretações que melhor se ajustarem às circunstâncias dos fatos. Por seu potencial argumentativo, princípios são objeto de ponderação, o que permite aos juízes levar em conta mais os fatos e suas repercussões políticas e sociais do que o texto das normas que os disciplinam.
As propostas de tipificação penal do chamado abuso de autoridade configuram, assim, uma estratégia para limitar a discricionariedade dos juízes. Criminalizar interpretações judiciais é haurir as garantias mínimas do exercício da jurisdição. Isso esvazia a autonomia do Judiciário. Ameaça um importante avanço institucional, que é a imunidade dos juízes contra retaliações e intimidações advindas de quem saiu derrotado num julgamento. E cria situações esdrúxulas, como a descrita por um site jurídico, chamando a atenção para o artigo 9.º do PLS 280/16. Em seu § único, esse artigo prevê penas de detenção para o magistrado que não “conceder ao preso liberdade provisória, quando assim admitir a lei e estiverem inequivocamente presentes seus requisitos”. Assim, caso negue liberdade provisória a um réu autuado e preso, por entender que não tem condição de sociabilidade, apesar de preencher os requisitos formais para ser solto, um juiz de primeira instância poderá responder criminalmente por essa decisão. Se o réu entrar com recurso num tribunal de segunda instância e a decisão for mantida, o mesmo poderá ocorrer com o relator. Se o caso subir a um tribunal superior e as decisões anteriores forem mantidas, o que acontecerá a seus membros? E se, acionado, o STF mudar o entendimento e libertar o réu, o juiz, os desembargadores e ministros que atuaram no caso responderão criminalmente por suas decisões e seus votos? Como proceder nos casos de voto divergente e dos ministros vencidos no STF?
É preciso cuidado para não se deixar levar pela tendência de sacralizar o idealismo moral da magistratura e canonizar qualquer iniciativa da Justiça como conquista civilizatória. Juízes podem exorbitar na interpretação de princípios, principalmente quando recorrem a eles para se apresentarem como reformadores sociais. Mas isso não justifica as propostas de criminalização da atividade jurisdicional, convertendo o Judiciário numa instituição servil aos interesses de políticos venais que controlam o Legislativo.
Crédito: Artigo publicado no jornal O Estado de S.Paulo – disponível na web 09/02/2017
Nota: O presente artigo não traduz a opinião do ASMETRO-SN. Sua publicação tem o propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.