Redução de cobertura dos planos de saúde; aumento da retenção do valor pago pelo comprador em caso de devolução do imóvel; franquia na banda larga fixa; mudança nas regras de rotulagem de alimentos transgênicos; queda drásticas das indenizações por dano moral. Em meio às crises econômica e política, os direitos dos consumidores andam para trás nas discussões no Congresso, nas mesas dos juízes e no atendimento das empresas. Essa é a avaliação de dez especialistas de diferentes segmentos ouvidos pelo GLOBO.
— Trata-se de um retrocesso que atinge a democracia, tão penosamente conquistada com a Constituição de 1988. Direitos sociais dos trabalhadores entraram na pauta dos cortes. Muitas outras formas de exercício da cidadania estão sendo deliberadamente desidratadas. Os direitos do consumidor estão entre elas — diz Maria Lúcia Werneck, cientista política, professora associada da UFRJ, que destaca as regras para uso cartão de crédito e saúde suplementar entre setores que deram um passo atrás.
No contexto atual, o juiz Flávio Citro, do Tribunal de Justiça do Rio (TJ-RJ), defende o chamado “efeito clique” — termo que tem origem no alpinismo — usado em âmbito jurídico, com histórico no direito francês, que reconhece o princípio da vedação de retrocesso. Assim como o setback in consumer law, do direito americano, que funciona da mesma forma.
— A crise econômica fará com que os juristas deixem de ver o direito como um fim, para reconhecê-lo como um instrumento que precisa moldar a realidade para regular a convivência em sociedade — diz o magistrado, que aponta entre outros retrocessos a indenização tarifada em caso de perda ou extravio de malas em viagens aéreas e o cadastro positivo feito à revelia do consumidor.
A promotora Christiane Cavassa, coordenadora das Promotorias do Consumidor do Ministério Público do Estado do Rio (MP-RJ) concorda que a crise econômica vem sendo usada como pano de fundo para reduzir ou propor a diminuição de direitos:
— Cobrança pelas bagagens, franquia da internet fixa, planos de saúde “acessíveis”, mudança nas regras dos distratos no setor imobiliário, entre outras propostas, estão gerando uma série de embates. O direito dos consumidores, como garantia constitucional, se insere na vedação ao retrocesso. Os consumidores, já duramente afetados pela crise, não devem ser penalizados com novos ônus que em nada contribuem para a manutenção de um mercado de consumo equilibrado — ressalta.
O DIREITO PASSA A SER VISTO COMO PROBLEMA
Para Bruno Miragem, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o direito do consumidor é vítima de seu próprio êxito. Ao facilitar o acesso à Justiça para os cidadãos em geral, diz Miragem, aumentou o número de ações e passou a ser visto como “o problema”:
— O direito do consumidor passou a ser interpretado como sendo um problema para a Justiça brasileira, quando, na verdade, o número de ações está relacionado à pouca efetividade do direito e ao descumprimento contínuo, muitas vezes como estratégia negocial — afirma o professor.
Marta Aur, assessora técnica do Procon-SP, diz perceber no atendimento os efeitos da crise.
— A alçada dos prepostos das empresas para fazer um acordo com o consumidor foi reduzida. Também observamos a volta de queixas básicas, o que mostra que a solução dos problemas internamente pelas companhias está diminuindo. Problemas com emissão de boleto, tarifas bancárias, por exemplo, que ficaram tempos sem ser registrados, voltaram. É uma involução — afirma Marta Aur.
— Não reconhecer a insuperável vulnerabilidade do consumidor nesse contexto de crise para nós é um retrocesso — completa Renata Reis, coordenadora das áreas técnicas do Procon-SP, citando também o setor bancário.
Claudia Lima Marques, professora titular da UFRGS e vice-presidente da Comissão de Direito do Consumidor do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB), também observa uma onda de propostas que podem levar a perdas de direito. E exemplifica:
— Um dos pontos chaves do direito do consumidor na atualidade diz respeito às cláusulas referentes aos desfazimentos de contratos, sobretudo ligados à compra de imóveis na planta. Com o pretexto do momento de crise do setor imobiliário, tem sido defendida a edição de medida provisória para tratar do tema. A medida, caso aprovada, representaria um dos maiores retrocessos no direito do consumidor. A proposta altera a jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que, aplicando corretamente o artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor, determina a retenção de 10% a 25% dos valores pagos pelo comprador.
Para Vidal Serrano Nunes Júnior, procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), as entidades de defesa do consumidor têm um papel decisivo neste momento.
— Sem a supervisão ativa da máquina pública pelas organizações não governamentais, não há como pensarmos em avanços — avalia o procurador.
Marilena Lazarinni, presidente do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), chama a atenção para a necessidade da participação do cidadão.
— Temos que atuar para que essa catarse que estamos assistindo com os escândalos de corrupção nos ensine que, para mudar, temos que ser protagonistas desse processo. Fui presidente da Consumers International (organização que congrega mais de 200 entidades mundo afora) e pude conhecer uma enorme diversidade de experiências e modelos de associativismo, e todas têm aspectos positivos. A participação do cidadão junto às entidades de defesa do consumidor é decisiva — destaca Marilena.
A IMPORTÂNCIA DA PRESSÃO SOCIAL
Para o professor de direito do consumidor Ricardo Morishita, é preciso incluir no conceito de consumidor responsável, o de eleitor responsável.
— Não se pode, por questões econômicas, fazer mudanças que não se mostrem boas decisões ao longo do tempo. Por isso, é necessário o controle social no processo legislativo. Não se pode votar num deputado que não expresse o que você acredita . É preciso cobrar dos políticos coerência — recomenda Morishita.
Maria Lúcia, cientista política da UFRJ, reforça a importância da pressão social:
— É isso que ocorre em países onde as organizações sociais representam efetivamente os diferentes segmentos da população. O que diferencia o Brasil são as imensas desigualdades que caracterizam a sociedade brasileira e se reproduzem na diferenciada capacidade de mobilização em defesa de direitos, o que dificulta que alguns cidadãos até a se reconhecerem como consumidores.
Crédito: Luciana Casemiro/Ione Luques/Defesa do consumidor do Jornal O globo – disponível na internet 04/09/2017