Quando pegou o avião para o o Rio de Janeiro, no dia 1º, o juiz federal Sérgio Moro já tinha tomado a decisão de aceitar o posto de ministro da Justiça do futuro governo de Jair Bolsonaro (PSL), com quem se encontraria minutos depois apenas para sacramentar o enlace. Com isso, ele tenta se espelhar em um de seus inspiradores, o magistrado italiano Giovanni Falcone, que mandou para a cadeia 360 mafiosos e depois trocou a toga por um cargo no ministério da Justiça de seu país. Na aeronave, o juiz da Lava Jato folheou e se fez filmar com um livro cujo título – ‘Novas medidas contra a corrupção’ – cumpria a dupla função de dar a partida às suas justificativas para a adesão à rede bolsonarista e anunciar uma carta de intenções para a futura gestão.
O livro foi lançado em junho e é um bem estruturado relatório contendo 70 propostas de iniciativas anticorrupção – incluindo anteprojetos de lei prontos para uso – elaboradas por cerca de um ano em debate coordenado pela FGV Direito e a organização Transparência Internacional (TI).
O projeto das ‘Novas medidas’ nasceu depois do naufrágio das chamadas ‘Dez medidas contra a corrupção’, que, propostas pelo Ministério Público e amplamente criticadas por setores do Judiciário, acabaram desfiguradas no Congresso, para desgosto do relator da matéria, o hoje ministro da Transição Onyx Lorenzoni (DEM-RS). O livro deverá ser uma espécie de cartilha de Moro, que em sua primeira entrevista coletiva, disse que pretende enviar ao Congresso um pacote de medidas que sejam “simples e possam ser aprovadas em breve tempo, mas sem prejuízo para que propostas mais complexas possam ser apresentadas depois ou paralelamente”.
Entre as 70 medidas do plano de voo da FGV e da TI, muitas podem ser implantadas a partir da iniciativa do Executivo, outras tantas dependem do Legislativo e de instituições estatais diversas, além do setor privado. E algumas, certamente, caso sua implantação venha a ser tentada pelo futuro superministro, encontrarão resistência entre os bolsonaristas ‘de raiz’, já que vão de encontro ao discurso e mesmo ao programa de governo do presidente eleito. Talvez esse seja o principal obstáculo que as pretensões de Moro enfrentarão a partir de 1º de janeiro.
UM SISTEMA CONTRA A CORRUPÇÃO
O primeiro capítulo das ‘Novas medidas…’ procura dar forma a um órgão responsável por uma política integrada de combate à corrupção. Para isso, propõe a instituição do chamado Sistema Nacional de Controle Social e Integridade Pública (SNCSI). O órgão seria formado pelas esferas municipal, estadual e federal de governo e por entidades da sociedade civil. O gestor, a nível federal, seria o Ministério da Transparência (cuja continuidade ainda não foi confirmada pela futura gestão).
A ideia é criar conselhos regionalizados e planos de combate à corrupção, que seriam acompanhados permanentemente por esses novos órgãos. Caso o futuro ministro Sérgio Moro queira implantar mecanismos como o que é proposto no projeto, a grande dificuldade deverá ser a interlocução com grupos organizados da sociedade civil, à qual o presidente eleito Jair Bolsonaro e seu entorno são avessos, o que foi expresso, logo após a vitória nas urnas pela frase: “Vamos botar um ponto final em todos os ativismos do Brasil”.
AVANÇOS REPUBLICANOS
As propostas da ‘cartilha’ são de grande amplitude. Outras boas ideias que poderiam colaborar para a luta contra a corrupção se transformadas em lei são:
Agentes públicos de qualidade: A proposta inclui aplicar maior transparência na seleção dos ministros do STF, inclusive com a adoção de ‘quarentena’. A adoção de processo seletivo para cargos de confiança e comissionados também é citada como condição para melhorar a qualidade dos agentes públicos. Nesse processo, o fortalecimento da CGU, com acesso pleno a informações bancárias e fiscais de todos os funcionários públicos, cumpriria papel fundamental.
Varas da corrupção: Os especialistas propõem a criação de varas especializadas em lavagem de dinheiro e crimes contra o sistema financeiro, tendo em vista que ações de improbidade administrativ, usaadas para punir delitos de agentes públicossão difíceis e demoradas “em razão de suas complexidades jurídicas e factuais”.
Confisco alargado: A ideia é não apenas punir o crime com penas como a de prisão, mas também evitar que, como foi autorizado pelo próprio Sérgio Moro no caso do doleiro e colaborador Alberto Youssef, o criminoso não fique com o produto financeiro dos seus delitos.
FAXINA NO PROCESSO ELEITORAL
No capítulo dedicado à relação entre corrupção e eleições, o plano afirma que muitos partidos no Brasil se tornaram “negócios de família”, sem transparência e controle social. A proposta é submetê-los à Lei de Acesso à Informação e à Lei Anticorrupção.
O livro propõe a limitação do autofinanciamento para os candidatos milionários (10% dos rendimentos anuais) e a extinção do Fundo Eleitoral, que distribuiu R$ 1,7 bilhão aos partidos em 2018, como forma de “compensação” pela proibição de doações empresariais, que eram o principal de corrupção nas eleições até serem proibidas em 2016.
O capítulo separa em item específico a questão do Caixa 2, defendendo a criminalização da prática de “arrecadar, receber, manter, movimentar ou utilizar qualquer valor, recurso, bens ou serviços estimáveis em dinheiro, paralelamente à contabilidade exigida pela legislação eleitoral” e propõe pena de reclusão de 2 a 5 anos para os envolvidos. A prática atualmente é enquadrada em outras categorias penais, como “abuso de poder econômico”.
De tão frequente no país, o Caixa 2 é visto como mal menor por políticos brasileiros e até por setores do Judicário, mas, para os pesquisadores, “coloca em risco a democracia”. Entre os que já incorreram na prática está o futuro ministro da Casa Civil Onyx Lorenzoni (DEM-RS), que admitiu ter recebido R$ 100 mil da JBS, em 2014. Há indícios de outro recebimento, em 2012, a qual ele negou, afirmando ser “um combatente da corrupção”.
Outra proposta que se destaca é a que estende aos partidos e coligações as sanções – como a suspensão de repasses de recursos públicos, que atingirem os candidatos condenados por delitos eleitorais – que atingirem os candidatos condenados por delitos eleitorais. Hoje, de modo geral, partidos lavam as mãos diante das irregularidades de seus filiados.
Por fim, há a sugestão de que a não aprovação das contas de campanha gere, de fato, efeitos em eleições futuras, o que raramente acontece hoje.
PREVENIR DESDE A ESCOLA
Em seu terceiro capítulo, o plano afirma que a corrupção “é vírus que se prolifera no comportamento de quase todos”. Assim, há propostas de prevenção da ‘doença’ no bojo da obra. A desburocratização do Estado é abordada como uma política com potencial de reduzir as oportunidades de agentes públicos se corromperem por meio de pedidos de propinas para superar entraves nos escaninhos de repartições públicas.
Outra ideia é proibir a circulação de dinheiro em espécie, de difícil rastreamento, ao limite de R$ 10 mil para transações comerciais.
O capítulo inclui, ainda, uma inovadora proposta de inclusão no currículo dos ensinos fundamental e médio de “conteúdos relacionados à formação ética, à cidadania solidária, à participação na gestão pública e ao controle dos gastos públicos”, o que seria impossível em caso de evolução das propostas do tipo ‘Escola sem Partido’, que dificultam ao professor exercer visão crítica da realidade em sala de aula.
MAIS PUNIÇÃO PARA OS CORRUPTOS
O endurecimento das punições de agentes públicos que incorrem em corrupção é um dos cernes das ‘Novas medidas’. O foro privilegiado é reduzido para apenas 16 autoridades, ante as cerca de 50 mil atuais – proposta que depende da aprovação de dois terços das duas casas do Congresso. Como os congressistas seriam prejudicados, a proposta é de difícil aplicação. O mesmo vale para a autorização da prisão preventiva de parlamentares por ordem judicial “em casos extremos e graves”. Hoje, isso só é possível com permissão prévia das Casas. No texto, tal regra é considerada “verdadeiro abrigo para criminosos, que usam de tal prerrogativa para sabotar investigações criminais e instruções processuais em curso”.
O texto também cita uma regra que tem ampla rejeição da opinião pública: a pena de aposentadoria compulsória remunerada oara juízes que cometem crimes, uma espécie de “premiação para os condenados”. A proposta é suprimir esse instituto, que tem custo anual de R$ 16 milhões.