Juiz aplica nova LIA de forma retroativa e absolve ex-subsecretária do DF
As alterações da nova Lei de Improbidade Administrativa (Lei 14.230/2021) sobre normas de direito material que sejam benéficas ao réu devem ser aplicadas imediatamente, mesmo sobre fatos ocorridos antes de seu advento.
Com esse entendimento, o juiz Roque Fabrício Antônio de Oliveira Viel, da 4ª Vara da Fazenda Pública do Distrito Federal, absolveu uma ex-subsecretária do Distrito Federal acusada por atos de improbidade administrativa.
De acordo com a denúncia, a ré, no cargo de Subsecretária de Relações do Trabalho e do Terceiro Setor da Secretaria de Relações Institucionais e Sociais do Distrito Federal, teria praticado atos de assédio moral sobre subordinados diversas vezes, incorrendo em violação aos princípios da administração pública, agindo com abuso de poder, desvio de finalidade e quebra da impessoalidade.
O Ministério Público também acusou a ex-subsecretária de usar servidores públicos para proveito particular próprio e de familiares, durante e fora do expediente, com desvio de função, além de omissão quanto ao exercício de função fiscalizatória sobre folha de ponto de servidor. O MP atribuiu à ré a prática de atos de improbidade previstos nos artigos 10, XIII, e 11, caput e inciso II, da Lei 8.429/1992.
A ré, representada por Rafael Carneiro, negou violação a princípios da administração pública, e disse que agiu para obter o máximo de resultados com o corpo técnico disponível. Segundo ela, haveria servidores que se insubordinaram, praticando boicote a sua gestão. Em alegações finais, a defesa invocou a aplicação das novas regras introduzidas na Lei 8.429/1992 pela nova LIA.
Ao avaliar a questão, o magistrado ressaltou que o sistema de improbidade administrativa, embora constitua esfera autônoma de responsabilidade, integra o ramo do direito administrativo sancionador, o que está previsto, agora, expressamente no artigo 1º, § 4º, da Lei 8.429/1992, introduzido pela nova LIA.
“Contudo, independente da nova redação do artigo 1º, § 4º, da Lei 8.429/1992, a compreensão de que o sistema de improbidade administrativa se submetia às garantias constitucionais penais, em razão de sua natureza sancionatória, já prevalecia antes da Lei 14.230/2021”, afirmou.
Segundo o juiz, a partir da compreensão de que o sistema de responsabilidade de improbidade administrativa constitui ramo do direito sancionador, impõe-se o reconhecimento de que se sujeita às garantias constitucionais de defesa dos acusados em geral, com especial destaque, neste caso, ao que prevê o artigo 5º, XL, da Constituição Federal.
“Os fundamentos para justificar a aplicação desse princípio decorrem, sinteticamente, da necessidade de se conferir aos acusados em geral o mesmo regime jurídico a fatos idênticos, independente da época em que praticados, bem como a necessidade de se estabelecer prioridade e isonomia na tutela sobre determinado bem jurídico”, completou.
Com isso, explicou Viel, se um bem jurídico é relevante para a sociedade a ponto de justificar uma tutela sancionadora, mas deixa de sê-lo a partir de um determinado momento, a despenalização do fato deve beneficiar todos aqueles que o cometeram, independentemente do momento, sob pena de se contrariar a justificação lógico-jurídica da imposição de sanções.
“Assim, a expressão ‘lei penal’ contida no artigo 5º, XL, da CF, deve ser compreendida como se referindo não apenas às leis de natureza estritamente penal, mas às leis sancionadoras em geral, incluídas as do âmbito administrativo e, aqui, de improbidade administrativa. Isso significa que as alterações da Lei 14.230/2021 sobre normas de direito material que sejam benéficas ao réu devem ser aplicadas imediatamente, mesmo sobre fatos ocorridos antes de seu advento”, frisou.
Ou seja: a conclusão do magistrado foi pela retroatividade da nova LIA. Sendo assim, as mudanças se aplicam ao caso da ex-subsecretária, mesmo que a denúncia tenha sido recebida antes da vigência da Lei 14.230/2021.
Mudanças no artigo 11
O magistrado afirmou que, na redação anterior, havia tipificação aberta dos atos de improbidade, com definição do ato no caput do artigo 11, com rol exemplificativo nos incisos. Com a Lei 14.230/2021, houve modificação do tipo, passando-se a adotar rol taxativo de casos de improbidade administrativa.
“Sendo assim, observa-se que se operou situação similar a uma abolitio criminis, visto que a tipificação dos atos de improbidade por ofensa a princípios da administração foi restringida, deixando de abarcar determinadas condutas. Essa retração da aplicação da lei de improbidade, inegavelmente, mostra-se mais benéfica aos réus, devendo ser aplicada retroativamente”, afirmou Viel.
No caso dos autos, o juiz considerou que a nova redação atua em favor da acusada, visto que as condutas de assédio moral e omissão sobre o controle de folha de ponto de subordinado foram enquadradas no caput e no inciso II do artigo 11.
“Considerando que o inciso II foi expressamente revogado pela lei nova e a vinculação ao caput, isoladamente, segundo o novo regime, não é mais suficiente para a configuração do ato de improbidade, impõe-se o reconhecimento da inviabilidade de enquadramento dessas condutas na nova versão do artigo 11”, disse.
Para Viel, as condutas imputadas à ré não se inserem em nenhuma das hipóteses descritas nos novos incisos da LIA, pelo que, nessa parte, é inviável sua condenação por ato de improbidade, em razão da superveniência de lei nova mais benéfica que eliminou o tipo legal.
Uso de servidores para atividades particulares
Dessa forma, permaneceu apenas a imputação de uso de servidores para satisfação de interesses pessoais, enquadrada no artigo 10, XIII, da Lei 8.429/1992. Com relação à prescrição suscitada pela defesa, o juiz afirmou que a nova LIA passou a definir o prazo de forma unificada, fixado em oito anos para todos os agentes, independentemente da natureza do vínculo com a administração.
Porém, em caso de interrupção do prazo, que pode ocorrer em diversas situações, como no momento da ajuizamento da ação, o § 5º do artigo 23 estabelece que o prazo passará a ser contado pela metade, ou seja, quatro anos. Para Viel, é esse prazo que deve ser aplicado ao caso da ex-subsecretária, por ser mais benéfico à ré.
“No caso, embora o prazo prescricional tenha sido alongado, passando de cinco para oito anos, a possibilidade de interrupção do prazo com o ajuizamento da demanda e reinício da contagem pela metade se apresenta como regra mais benéfica ao acusado. Logo, pela lógica estabelecida pelo princípio da retroatividade da lei mais benéfica ao réu, impõe-se sua aplicação ao caso concreto”, afirmou.
A conduta atribuída à ré teria ocorrido no ano de 2015, sendo a ação proposta em 2017. Assim, conforme o magistrado, com o ajuizamento da ação, operou-se a interrupção da prescrição: “Considerando que após interrompido o prazo se reinicia a contar pela metade, quatro anos, verifica-se que já se encontra esgotado, o que torna inafastável o reconhecimento da prescrição retroativa”.
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Crédito: Consultor Jurídico – @disponível na internet 14/03/2022