Trabalho à moda da câmara

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Se o Congresso Nacional fosse um restaurante seria daquele tipo que tenta fazer de tudo e não foca em nada. Trocando em miúdos, é como se o chef precisasse desenvolver 1,2 mil receitas de pratos por ano para que só 49 entrem no cardápio.

Mesmo aqueles que nunca leram O Processo, de Franz Kafka (1883-1924), conseguem entender o que é uma posição kafkiana. O dicionário Houaiss, por exemplo, define como uma situação que “evoca uma atmosfera de pesadelo, de absurdo, especialmente em um contexto burocrático que escapa a qualquer lógica ou racionalidade”. É como trabalha o Poder Legislativo brasileiro. O Parlamento por aqui deveria ser o espaço para discussões amplas e profundas, mas se tornou um moedor de carne. O volume de projetos tramitando apenas na Câmara supera os 7 mil anuais, sendo mais de 1 mil apenas para tratar da economia. Isso significa, em uma conta simples, que para discutir apenas os caminhos apontados como importantes para a economia brasileira os senhores deputados precisariam avaliar cinco propostas por dia de trabalho.

O problema é que entre a apresentação da proposta e a aprovação do texto há um caminho, ou melhor, um grande Processo. Existem pelo menos 47 variáveis que podem emperrar o texto. E elas vão desde um pedido de vista até uma obstrução de parlamentares opositores em uma das pelo menos cinco Comissões pelaqs quais o projeto deve passar. O resultado disso? Uma eficiência pífia.

Para se ter uma ideia, de janeiro de 2019 a março de 2022 foram apresentadas 3,1 mil propostas de Projetos de Lei, Medidas Provisórias, Proposta de Emenda à Constituição, Projeto de Lei Complementar, Projeto de Reversão de Lei, projeto de criação de CPI e outras variações apenas para a economia. Desse montante apenas 116 (ou 3,6%) foram devidamente aprovadas na Câmara. Quando se pensa nas próximas duas etapas (Senado Federal e sanção presidencial) a aprovação cai para apenas 49 textos, ou 1,5% de conversão de ideias em novas regras para beneficiar a economia. O resultado disso tudo: uma produtividade parlamentar deprimente.

E o problema filosófico que poderia ter inspirado Kafka começa justamente nesse momento. Se o Brasil já tem tantas leis e obrigações, aprovar poucas leis é algo bom para o País. Certo? Errado. Pelo menos 30% dos textos apresentados se propõem a diminuir a burocracia, facilitar a tributação ou simplificar operações para setores e cadeias específicas. O problema é que para chegar nesses 30% relevantes há uma imensidão de projetos absurdos que vão desde a suspensão da Bolsa de Valores até confisco de 10% do lucro das empresas em situações de calamidade pública. Para um Congresso dito liberal, isso prova que ler teoria político-econômica não é o forte de nossos parlamentares.

Há ainda um volume imenso de projetos muito específicos que estão mascarados de econômicos, mas têm relevância mínima. São deputados pedindo para que tal cidade se torne a “capital do frango com polenta”, que os jogos violentos sejam proibidos e a escolha seja feita por religiosos e outro em que motoristas de transporte privado sejam passíveis de multa por carregar passageiros embriagados. E todas essas idiotices foram protocoladas nos últimos meses “Eu passei anos no Parlamento e sei como é difícil o dever dos deputados, mas precisamos aprender a nos comunicar melhor”, afirmou o presidente da República, Jair Bolsonaro, em janeiro passado, ao apresentar uma agenda econômica ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Como tudo o que sai dessa dupla significa quase sempre o oposto, o resumo será: nada vai mudar.

PELO MUNDO 

O cenário nacional se complica enquanto o mundo já percebeu que o Estado moderno precisa atualizar seus sistemas para acompanhar a evolução da sociedade. Na Alemanha, por exemplo, pesquisadores como Heinz Klandt, que faz parte do corpo de análise do Federal Ministry of Education and Research, é dos que têm se debruçado no tema. Junto de um corpo técnico ele estuda o desenvolvimento de sistemas automatizados capazes de refinar tanto a apresentação de projetos quanto antecipar inconsistências que podem derrubar a proposta no futuro. “É evidente que o universo privado andou milhas, enquanto o público andou centímetros na otimização e eficiência da própria gestão”, disse em palestra na comissão de tecnologia da União Europeia em 7 de março.

De alguma forma, no Brasil, talvez o Parlamento tenha andado metros, mas para trás. Entre 2015 e 2019, a média de aprovação era de 6,4%, o dobro da média atual, de 3,2%. E o cenário fica ainda mais digno de um livro de terror quando ampliamos esta conta em duas direções. A primeira delas para os Estados Unidos, que possuem um sistema político similar ao brasileiro. Por lá, na Casa dos Representantes, ou o equivalente à Câmara dos Deputados do Brasil, foram protocoladas 86 pautas econômicas em 2021. Destas, 45 foram votadas e rejeitadas, 21 ainda estão em tramitação interna e 20 se tornaram leis. É um aproveitamento de 23,5%. Muito longe dos 1.108 projetos apresentados e 37 convertidos em lei que o Brasil recebeu no mesmo ano.

O segundo cenário se complica quando olhamos o Brasil profundo. Além do Congresso Nacional, deputados estaduais e distritais de 27 entes e vereadores de quase 6 mil cidades legislam. E muitas vezes com normativas contraditórias ou que se sobrepõem. O Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação dá a dimensão do buraco. Em 2021, por dia útil foram criadas 813 novas normas. A cada 24 horas de expediente bancário 53 novas leis tributárias foram implementadas. Isso significa que temos uma lei para cada 31 habitantes. Há 33 anos essa proporção era de uma lei para cada 300 habitantes. Como define o Houaiss, “uma atmosfera de pesadelo, de absurdo, especialmente em um contexto burocrático que escapa a qualquer lógica ou racionalidade”. A perfeita definição de uma situação kafkiana.

Crédito: Paula Cristina / IstoÉ Dinheiro – @Disponível na internet 28/03/2022

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