A inflação nas alturas e o aperto crescente no bolso abalam a fidelidade do brasileiro às marcas nos supermercados. Consumidores trocam o casamento com produtos favoritos por uma espécie de “relacionamento aberto”, no qual experimentam outras opções de uma mesma categoria de acordo com o preço, em segmentos como alimentos, higiene e limpeza. E esse match acontece em um novo canal de vendas: o atacarejo.
Segundo consultorias especializadas, esses hipermercados, cada vez mais procurados pela classe média ávida por descontos nas compras em quantidade, já somam 40% das vendas de alimentos. Neles a variedade é maior, o que dá mais chance ao flerte com produtos mais baratos.
— Há uma variável muito impactante nesse movimento atual de troca por marcas que não estava nas crises anteriores, que é o atacarejo. Permitiu que as pessoas fizessem o trade down (troca por itens de baixo custo) com muitas opções para escolher — diz Rodrigo Catani, head de Potencializar Vendas da AGR Consultores.
O atacarejo, continua ele, permite ao consumidor transitar entre as marcas pelas quais tem preferência e outras que não conhecia ou não via no mercado de bairro.
— É uma troca que ocorre principalmente na classe média. É um grupo mais aberto a testar outros produtos de menor preço. Elege uma cesta de itens dos quais não vai abrir mão e compensa economizando no restante — acrescenta Catani. — Nas classes baixas, que já compram de forma seletiva e restrita, essas trocas são mais difíceis porque a pessoa não pode errar.
Troca de fraldas
No Grupo Mateus, rede presente em todo o Nordeste em que o atacarejo é 50% do negócio, o faturamento saltou de R$ 4,1 bilhões em 2019, antes da pandemia, para R$ 8,7 bilhões em 2021.
Aliada à estratégia dos supermercados, o grupo verticalizou quatro marcas próprias voltadas para frios e padaria. Nesta última, sua etiqueta supera 50% das vendas.
— O atacarejo é um formato definido pelo consumidor final há alguns anos. Ganhou tração na pandemia, e os efeitos inflacionários continuam direcionando esse movimento — diz Marcelo Korber, gestor da área de Relações com Investidores da rede.
Fernando Gambôa, sócio-líder de Consumo e Varejo da consultoria KPMG no Brasil, explica que, além do atacarejo, desponta neste cenário de salários que não conseguem repor a inflação a volta da venda à granel e das marcas próprias das varejistas.
— Os supermercados costumam trabalhar com 40 a 50 marcas de arroz e biscoito, por exemplo, e agora têm 100. Ampliaram a quantidade de marcas disponíveis e mais baratas para caber no bolso.
Pais de primeira viagem, Helder Martins, de 35 anos, e Ariana Leal, de 33, fizeram algumas mudanças no mercado para ajustar o orçamento familiar às necessidades do filho, Henrique, de pouco mais de um ano. Uma das trocas foi a marca de fraldas descartáveis.
Quando viu o pacote Pampers Premium Car subir de R$ 62 para R$ 82, diz Martins, o casal abandonou a preferência e começou a experimentar marcas mais baratas que não comprometessem o bem-estar do filho. Eles acabaram aderindo à ZeuKids, de R$ 13,99. Já encontraram a marca em promoção a R$ 9, economia de quase R$ 70 por embalagem.
O leite Aptamil, indicado pela pediatra, que custa R$ 80, também foi trocado. O novo amor da família é o Ninho Nutrigold, de R$ 38.
— Testamos várias marcas até achar uma que fosse barata, mas de boa qualidade. Minha maior preocupação é chegar a um ponto em que eu não consiga mais substituir a marca e tenha que abrir mão de algo importante ou essencial para o meu filho — diz Martins.
Despensa revista
Segundo Allan Hock, diretor de marca própria do Carrefour, fralda é um produto de difícil entrada pelas marcas populares, por conta do reconhecimento daquelas já existentes. Ainda assim, a marca própria da varejista, lançada em 2020 com 5,4% das vendas do item infantil em suas lojas, atingiram 24,2% em 2021, liderando a categoria.
Ao todo, 22 produtos da etiqueta Carrefour são os mais vendidos da rede, como arroz, molho de tomate, açúcar, leite condensado, ervilha e milho em lata, algodão, papel higiênico e água sanitária. As vendas gerais de marca própria de alimentação no Carrefour, que correspondiam a 12,7% em 2018, hoje são 20%.
Hoje, nenhum produto nosso performa abaixo de 8%. Isso acontece por causa da reformulação dos produtos. A qualidade também mudou. Investimos e reduzimos margem (de lucro) para não perder a qualidade — diz Hock.
Trocar as marcas dos alimentos foi a saída adotada pelo empresário Paulo Carvalho, de 65 anos, para não fechar as portas do seu restaurante em Olaria, na Zona Norte do Rio.
Para não tirar carnes do cardápio nem aumentar o preço das refeições (R$ 16), ele trocou o pacote do tradicional arroz Tio João, de R$ 24,89, pelo Camil (R$ 19,99). O feijão Combrasil (R$ 9,98) deu lugar ao Máximo (R$ 8,99), e o óleo Lisa (R$ 10,05) foi substituído pelo Soya (R$ 9,99), ainda que com pouca diferença.
— Costumava vender 220 refeições por dia. Com a pandemia, passei a vender 60. Tive que fazer mudanças. Consumia no restaurante 20 quilos de carne apenas no almoço. Hoje, trabalho com sete quilos. Abri mão das marcas porque foi preciso — diz Carvalho, que, sem poder repassar o custo maior aos clientes, vê a própria renda encolher.
‘Bandeira branca’
As marcas próprias de varejistas chegam a custar entre 15% e 30% menos que as mais conhecidas, o que fez com que a presença delas saltasse de 40% para 66% dos domicílios brasileiros nos últimos cinco anos, estima Fernando Baiafuna, diretor da consultoria GFK para a América Latina:
— A pandemia e a crise econômica aceleraram a experimentação (de novos produtos). O mercado está mais competitivo. Uma vez que se prova e vê a qualidade, desistir da marca própria não é tão simples como antes, em que o consumidor voltava para as líderes depois da crise.
No GPA, dono das redes Extra e Pão de Açúcar, suas seis marcas próprias passaram de 13,5% em 2018 para 21,5% do total de vendas no primeiro trimestre de 2022. Segundo o diretor de Marcas Exclusivas, Eduardo Finelli, a participação dos itens dessa espécie de “bandeira branca” aumentou 27% nas vendas de óleo de soja, 10% nas de feijão e 20% nas de farinha. Em algumas categorias, as etiquetas do GPA representam até 40% das vendas, como o açúcar. Em um ano, o gasto médio dos clientes com esses produtos subiu 22,5%, diz o executivo.
Alguns itens, como xampu e condicionador, são difíceis de o consumidor abandonar. Mas outros têm rápida adesão, como a Taeq, linha de produtos saudáveis. Com isso, o GPA ampliou de 100 para 150 os lançamentos de marca própria por ano.
Crédito: Raphaela Ribas, Glauce Cavalcanti e Jéssica Marques (estagiária, sob a supervisão de Alexandre Rodrigues) O Estado de São Paulo – @ disponível na internet 30/05/2022