Afirmar que o governo Jair Bolsonaro representa riscos à democracia se tornou lugar-comum.A campanha contra as urnas eletrônicas e o Judiciário, a apologia da ditadura, os elogios a torturadores transformaram Bolsonaro na nêmesis de democratas mundo afora.Outro risco para nossa democracia, porém, tem passado despercebido. É mais insidioso e permanecerá entre nós mesmo que ele perca a eleição e transfira o poder ao sucessor.Trata-se da politização do Supremo Tribunal Federal (STF).A Corte, que deveria manter-se equidistante e alheia às paixões, parece a cada dia mais contaminada pelo noticiário, como se devesse prestar contas à opinião pública, não à lei ou à Constituição.O ministro Luís Roberto Barroso deu até prazo para o governo tomar providências nas buscas do indigenista e do jornalista desaparecidos na Amazônia, como se isso tivesse algum poder de acelerá-las — ou algum cabimento.O ministro Edson Fachin, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), se esforça para desvencilhar-se da desavença insólita que ele próprio alimentou com os militares em torno das urnas eletrônicas.E o ministro Gilmar Mendes teve nesta semana de reafirmar o óbvio, dizendo que o Supremo não é “partido de oposição ao governo”. Não é mesmo, nem jamais deveria ser. A impressão que tem transmitido, contudo, é a oposta.Não é de hoje que o STF invade competências de outros Poderes. “Tenho a impressão de que, qualitativamente, o STF brasileiro, ao lado dos tribunais constitucionais colombiano e sul-africano, está entre os mais ativistas do mundo”, diz o jurista Gustavo Binenbojm. Mesmo que, na maioria dos casos, o Supremo mantenha seu papel de tribunal constitucional e última instância do Judiciário, nos poucos em que se arroga missão que o extrapola, dá argumento aos bolsonaristas e aos que promovem campanhas infames e despiciendas contra a Corte.
Nas palavras de um constitucionalista: “Conflito entre Poderes sempre vai existir, mas é difícil achar racionalidade em certas decisões”.
Para citar exemplos, nem é preciso recorrer a casos rumorosos, em que o tribunal assumiu papel nitidamente político, como os inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos, a prisão do deputado Daniel Silveira (PTB-RJ) ou os esforços por disciplinar as redes sociais.
As decisões contaminadas pelo ativismo podem ser as mais corretas e proteger direitos essenciais, mas isso não impede que abram precedentes perigosos.
Quando o Supremo tornou a homofobia e a transfobia crimes, formulou, sem aval do Legislativo, um tipo penal por analogia — um absurdo, pois o Direito Penal é literal.
Quando equiparou os crimes de racismo e injúria racial, alterou definições de leis aprovadas no Congresso.
Quando determinou condições para operações policiais nas favelas cariocas, invadiu competência do Executivo fluminense e determinou uma política pública. Nada disso estava errado em si. Mas criou-se um caminho para arbítrios futuros.
Noutras situações, o STF soube agir com comedimento.
Ficou anos sem tomar decisão sobre o Fundo Garantidor de Créditos para não invadir competência do Legislativo.
No caso da reeleição para as presidências da Câmara e do Senado, apenas mandou cumprir o que estava na Constituição.
Casos assim mostram que os ministros têm plena noção da atitude exigida de juízes que concentram tanto poder. Precisam ter a sabedoria de mantê-la.
Crédito: Editorial do Jornal O Globo publicado no dia 15/06/2022 – @disponível na internet 16/06/2022
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