Armadilhas de uma “regulação sem fronteiras” à política regulatória nacional

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No último dia 22 de setembro, entrou em vigor a Lei nº 14.454, que estabeleceu novos critérios para a cobertura de exames e tratamentos de saúde pelas operadoras de planos de saúde. Essa lei cristaliza a vitória, ao menos temporária, do Poder Legislativo sobre a Agência Nacional de Saúde Suplementar e o Poder Judiciário a respeito da interpretação de norma da ANS que estabelece rol de procedimentos e eventos em saúde de cobertura obrigatória. Embora o STJ, em decisão recente, tenha determinado que esse rol seria taxativo e não exemplificativo, o Congresso, respondendo a clamores de diversos segmentos da sociedade, estabeleceu, dentre outras exigências, que tratamentos não previstos no rol, mas reconhecidos por ao menos “1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde de renome internacional”, deveriam ser automaticamente considerados para fins de revisão do rol.

O Poder Legislativo optou por não designar, no texto legal, as instituições de renome internacional cujas recomendações deveriam ser consideradas na determinação dos tratamentos a serem obrigatoriamente cobertos pelos planos de saúde. No entanto, o projeto de lei que deu origem à Lei nº 14.454/22 (PL nº 2033/22), apresentava uma lista exemplificativa dessas entidades internacionais, fazendo referência expressa às organizações Food and Drug Administration (FDA), União Europeia da Saúde, Scottish Medicines Consortium – SMC, National Institute for Health and Care Excellence – NICE; Canada’s Drug and Health Tecnology Assessment – CADTH; Parmaceutical benefits scheme – PBS; e Medical Services Advisory Committeee.

A estratégia do Poder Legislativo de obrigar entidades reguladoras brasileiras a observarem normas e recomendações de órgãos reguladores internacionais não é uma novidade. Em maio de 2020, no auge da epidemia da Covid-19, o Congresso aprovou a Lei nº 14.006, que obrigou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a autorizar expressamente a importação e distribuição de materiais, medicamentos, equipamentos e insumos estrangeiros de saúde como medida de combate à pandemia do novo coronavírus. Essa lei estabeleceu, ainda, prazo de até 72 horas para a agência reguladora autorizar a importação e distribuição de quaisquer equipamentos, medicamentos e insumos já registrados em quatro órgãos sanitários específicos: Food and Drug Administration (FDA), a European Medicines Agency (EMA), a Pharmaceuticals and Medical Devices Agency (PDMA) e a National Medical Products Administration (NPMA).

A opção por incluir atores internacionais no “espaço regulatório” brasileiro não provém apenas do Poder Legislativo. A Presidência da República vem editando decretos, formulados pelo Ministério da Economia, com teor semelhante. Esse é o caso do Decreto nº 10.229/20, que regulamentou o dispositivo da Lei de Declaração da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/19) que garantiu o direito de pessoas físicas ou jurídicas de solicitarem a revisão de normas regulatórias nacionais desatualizadas.

O decreto condicionou o pedido de revisão à existência de normas internacionais, desde que estas tenham sido elaboradas por ao menos uma das seguintes entidades internacionais: Organização Internacional de Normalização (ISO), a Comissão Eletrotécnica Internacional (IEC), a Comissão do Codex Alimentarius, a União Internacional de Telecomunicações (UIT) e a Organização Internacional de Metrologia Legal (OIML).

Caso o regulador opte por editar norma técnica que incorpore o conteúdo internacionalmente aceito, ele estará dispensado de realizar análise de Análise de Impacto Regulatório (AIR), conforme previu o artigo 4º, inciso VIII, do Decreto nº 10.411/20.

É certo que há diferenças entre os exemplos acima mencionados. Nos dois primeiros casos, o Poder Legislativo obrigou, por meio de lei, duas agências reguladoras (ANS e Anvisa) acatar normas e decisões tomadas por órgãos reguladores de outros países que atuam na regulação de serviços e produtos de saúde. Trata-se do reconhecimento explícito, pelos legisladores brasileiros, da aplicabilidade, em território brasileiro, de normas de hard law provenientes de outras nações.

Já no último exemplo, o chefe do poder executivo confere a entes privados o direito de solicitar a revisão de normas regulatórias nacionais quando estas forem consideradas obsoletas em face de regulações de soft law produzidas por entidades normalizadoras internacionais ou transnacionais.

Apesar das diferenças, esses atos normativos têm uma característica em comum: em todos eles, agentes políticos pretendem conformar a decisão do regulador por normas internacionais. Ao menos em certa medida, a utilização de normas internacionais para limitar a autonomia dos órgãos reguladores sobre determinados assuntos revela a insatisfação ou discordância que agentes políticos têm sobre a atividade regulatória nacional. Já não é mais novidade que o legislativo tem aprovado leis que interferem diretamente em assuntos de competência das agências reguladoras. Isso revela uma característica que é própria da dinâmica da regulação, que já analisei em outra oportunidade, na qual a produção de normas regulatórias é disputada em múltiplas arenas. Mesmo que as agências reguladoras possam ter, a priori, poder de agenda sobre determinado tema, o Poder Legislativo, o presidente da República e o Poder Judiciário possuirão poder de veto, de modo que é irrealista pensar que a produção da regulação refletirá apenas as preferências das agências reguladoras.

No entanto, a estratégia de agentes políticos de limitar a autonomia dos órgãos reguladores por meio da imposição de normas internacionais possui peculiaridades que podem acabar surtindo efeitos inesperados para os próprios governantes. Se o objetivo for controlar o processo regulatório, a imposição de normas internacionais ou estrangeiras pode não produzir os efeitos desejados, já que os governantes pátrios, em princípio, não possuem influência sobre processos regulatórios de outros países ou de organizações internacionais das quais não fazem formalmente parte. Além de errar o alvo, o atirador poderá acabar atingindo a si mesmo.

Uma outra possível razão, ainda que não declarada, para a imposição de normas internacionais aos reguladores, é a de acelerar a tomada de decisão regulatória. O processo de produção de uma norma regulatória, além de custoso, é consideravelmente lento. Atualmente, uma agência reguladora está obrigada a realizar consulta pública, bem como análise de impacto regulatório, para a produção de uma norma de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados (artigo 6º da Lei nº 13.84819 e artigo 5º da Lei nº 13.874/19). Mesmo aqueles órgãos administrativos que não são agências reguladoras listadas na Lei nº 13.848/19, mas que possuem competência regulatória, hoje também estão obrigados a realizar análise de impacto regulatório, por força do artigo 5º da Lei de Declaração de Liberdade Econômica. Há uma vasta literatura, especialmente americana, que descreve o processo normativo regulatório como altamente engessado — “ossification é a expressão utilizada por essa literatura estrangeira. A aplicação imediata de uma norma internacional em substituição à elaboração de uma norma regida por normas processuais repletas de exigências tornaria, portanto, o processo normativo e a tomada de decisão regulatória menos engessados.

Esses supostos ganhos de eficiência podem, no entanto, ser apenas momentâneos e/ou pontuais. Ao formularem normas, os órgãos reguladores acumulam experiência e conhecimento, os quais são por sua vez aproveitados em processos normativos subsequentes. Privar os órgãos reguladores de desenvolver expertise sobre temas que lhe são caros pode significar também privá-los de ganhos de aprendizagem fundamentais para o exercício geral de sua atividade regulatória. Além disso, a aceleração da produção de normas provocada pela imposição de normas internacionais pode, em contrapartida, desacelerar o processo de produção de outras normas, comprometendo, assim as ações de planejamento dos órgãos reguladores. Veja-se, nesse sentido, o exemplo do Decreto nº 10.229/20, anteriormente citado, que obriga os órgãos reguladores a atenderem pedidos de revisão de normas consideradas obsoletas em face de normas internacionais supostamente mais atualizadas. É possível que o órgão regulador, que se veja forçado a destinar parte dos seus recursos e de sua capacidade institucional para a análise dos pedidos de revisão, tenha outras ações mais prioritárias.

Como já observei aqui, isso pode provocar uma deturpação da agenda regulatória dos órgãos reguladores, que correm o risco, assim, de perder o controle sobre a alocação do seu tempo e recursos.

A aplicação de normas internacionais aos reguladores nacionais fundamenta-se na crença de que tais normas são boas, legítimas e uniformes. Assim como ocorre com agentes políticos, reguladores também podem errar. Por mais que se imprima racionalidade ao processo decisório, zonas de incerteza e até mesmo ignorância fazem parte de todo e qualquer processo decisório, exigindo do regulador certas doses de pragmatismo e experimentalismo. Esse fenômeno ocorre não apenas com os órgãos reguladores brasileiros, mas também com os estrangeiros. Além disso, qualquer entidade reguladora, por mais insulada que pareça ser, não está imune a ingerências políticas provenientes tanto do Poder legislativo, quanto do Executivo. Não há razão para crer que as agências reguladoras estrangeiras seriam mais insuladas do que as brasileiras apenas por serem estrangeiras.

O mesmo pode ser afirmado sobre a legitimidade dos processos regulatórios de órgãos reguladores estrangeiros. Déficits de legitimidade são especialmente recorrentes nos processos decisórios de agências normalizadoras transnacionais como as enumeradas pelo referido Decreto nº 10.229/20. Muito já se discutiu sobre a falta de transparência das decisões dessas entidades, frequentemente tomadas a porta fechadas e sem a participação de importantes atores afetados pelo processo de regulação, como consumidores e usuários de serviços.

Não há, por fim, garantia de que as normas produzidas pelas entidades internacionais das leis e decretos mencionados acima terão conteúdo idêntico ou até mesmo similar. Como visto, essas normas têm estabelecido que os órgãos reguladores deverão se adequar às decisões de ao menos uma das entidades internacionais listadas. Mas e se houver conflitos ou diferenças de entendimentos entre as diferentes agências citadas? Assim como há fragmentação normativa em ambientes regulatórios nacionais, o mesmo fenômeno ocorre no plano internacional. É possível, portanto, que haja contradição entre as normas produzidas por diferentes entidades reguladoras estrangeiras ou internacionais, sem que o legislador tenha oferecido qualquer critério de harmonização ou hierarquização dessas normas.

Natasha Schmitt Caccia Salinas é professora do programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Direito da Regulação e do curso de graduação em Direito da FGV Direito Rio. Doutora e mestre em Direito pela USP. Master of Laws (LL.M.) pela Yale Law School.

Além dos problemas práticos decorrentes da aplicabilidade de normas internacionais ao regulador, restam dúvidas sobre a legalidade dessa imposição, já que tanto o direito internacional privado quanto o direito internacional público não se aplicariam aos casos aqui analisados. Além disso, problemas adicionais surgem quando o legislador pátrio reconhece expressamente a validade de normas de soft law produzidas no âmbito internacional. Normas internacionais de soft law não são vinculantes, já que não são incorporadas a tratados e não são produzidas oficialmente por organizações internacionais. O legislador brasileiro decidiu, no entanto, reconhecer-lhes validade e caráter vinculante, tornando o direito — que era soft — em hard.

Há inegáveis ganhos de eficiência quando o regulador se vale de experiências estrangeiras para economizar tempo e recursos no exercício de sua atividade regulatória. Para que o uso de normas internacionais contribua efetivamente para a melhoria da qualidade regulatória e não incorra nas armadilhas acima descritas, é preciso que se criem mecanismos de estímulo — e não de imposição — à cooperação e coordenação entre reguladores nacionais e internacionais. Soluções formuladas consensualmente e de forma horizontal tendem a ser mais efetivas. Além disso, a escolha das entidades e normas que farão parte desses acordos de cooperação deve esta alinhada com as políticas regulatórias internas. Por fim, a incorporação de normas internacionais deve ser incorporada ao planejamento dos órgãos reguladores, de modo a não comprometer seus objetivos finalísticos mais amplos.

Crédito: Natasha Schmitt Caccia Salinas / CONJUR – @ disponível na internet 05/10/2022

2 Comentários

  1. A regulamentação excessiva e sem critérios, leva ao descumprimento das normas essenciais e protetoras da sociedade. Acredito que a desregulamentação nada tem a ver com a liberdade de ação econômica e muito menos das conquistas sociais inerentes ao estado de direito, e sim na promoção de uma política neoliberalisante do “laisser faire” tornando a sociedade “livre” para posteriormente ser submissa ao mercado. A regulamentação não tem o objetivo de cercear direito, ou impedir o progresso e sim estabelecer equanimidade na sociedade evitando a concorrência desleal do poder econômico …..

  2. Muito interessante o artigo da Doutora Natasha Schmitt Caccia Salinas. O caso das Recomendações Internacionais da Organização Internacional de Metrologia Legal (OIML) se encaixa perfeitamente nas considerações que ela apresentou.

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