Agências reguladoras perdem até 70% da força de trabalho e serviços podem colapsar
Casos mais graves envolvem a Agência Nacional de Mineração (ANM) e a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), que já operam precariamente e podem ter funcionamento comprometido
Um apagão generalizado pode comprometer a fiscalização realizada pelas agências reguladoras federais, órgãos que têm papel crucial no funcionamento de setores econômicos como mineração, transporte e energia, além de outros ligados a áreas de saúde e comunicação.
O Estadão fez um levantamento detalhado do quadro das 11 agências que estão sob o crivo do governo federal. O cenário, que reúne dados do Portal da Transparência, das próprias agências e do Sindicato Nacional dos Servidores das Agências Nacionais de Regulação (Sinagências), revela que, atualmente, um terço dos cargos previstos por lei nestes órgãos estão vagos.
A situação mais crítica é encarada pela Agência Nacional de Mineração (ANM), criada em 2017 para substituir o antigo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). Por lei, a ANM, que é responsável por fiscalizar um setor que movimenta R$ 340 bilhões por ano – o equivalente a 4% de todas as riquezas produzidas no Brasil – teria de ter 2.121 servidores em plena atividade.
Esse é o organograma previsto em sua criação, ou seja, a estrutura necessária para realizar seu trabalho. Hoje, porém, a ANM tem de se virar com apenas 644 servidores, o que significa um rombo de 68,7% em sua força de trabalho. É como se cada pessoa tivesse de cobrir as tarefas de três funcionários..
Outro caso delicado é o da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), que tem de a missão de fiscalizar todas as estradas e ferrovias concedidas pelo governo federal. A lei determina que ANTT deve contar com 1.705 servidores para tocar o seu dia a dia. Na prática, porém, a agência tem de se desdobrar com apenas 929 funcionários que estão na ativa, o equivalente a 54% da força de trabalho exigida.
“Sem dúvida estamos diante de um apagão generalizado e, se nada for feito, essas agências vão colapsar”, disse ao Estadão o presidente do Sinagências, Cleber Ferreira. “Os dados falam por si. É preciso que este novo governo faça algo urgentemente, pelo menos nas situações mais graves. Estamos falando de setores vitais, que colaboram com a economia e que têm impacto direto na vida do cidadão.”
Um conjunto de fatores explica o cenário. O governo federal paralisou a maior parte dos concursos públicos nos últimos anos – a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), por exemplo, não tem concursos desde 2010; Agência Nacional do Petróleo (ANP), desde 2015. O governo também não repôs as posições abertas com constantes aposentadorias e remanejamento de servidores aos seus postos de origem.
A solução precária tem sido a realização de contratações temporárias na tentativa de seguir com a prestação de serviços. Ainda assim, em muitas ocasiões, nem mesmo essas contratações são permitidas.
Questionado sobre a situação atual das agências e as medidas que devem ser tomadas no médio e longo prazo, o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos declarou que “este governo reconhece que diversos órgãos precisam ser reconstruídos ou reforçados” e que tomará medidas concretas.
“O Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos está realizando estudos sobre o cenário atual da força de trabalho na Administração Pública Federal e as demandas de novos concursos e contratações encaminhadas pelos órgãos e entidades ao órgão central de gestão de pessoas do Governo Federal”, afirmou.
Entenda a criação das agências reguladoras e suas funções
As agências reguladoras foram criadas a partir de 1997, pelo governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Com o avanço de processos de privatização e concessão de serviços e bens públicos, o governo deixou de atuar como um “provedor” dessas estruturas, para assumir o papel de “fiscalizador e regulador”, impondo obrigações e metas às empresas que passaram a explorar os bens da União.
A primeira agência federal foi a Anatel, no processo de privatização da telefonia no Brasil. Hoje, há 11 agências federais em atividade no País.
Flávio Willeman, professor da Fundação Getúlio Vargas no e autor do livro Responsabilidade Civil das Agências reguladoras, lembra que “a prestação de serviços públicos adequados é um dever constitucional e também legal, à medida em que assim impõem a Lei de Concessões de serviços públicos e o Código do Consumidor”.
A necessidade de manter uma estrutura consolidada desses órgãos, portanto, é vital, para que a população tenha acesso a serviços e produtos contratados juto a essas empresas. “Como se trata, no mais das vezes, de serviços com investimentos bilionários, a alta especialização da assessoria prestada às concessionárias tem que encontrar, nas agências reguladoras, profissionais tão ou mais preparados”, diz Tomaz Aquino, advogado, sócio do Lara Martins Advogados, especialista em Direito Processual Constitucional e procurador do Estado de Goiás. “A falta de investimentos e de constante atualização nesse corpo técnico é a receita para o fracasso do modelo de regulação.”
Fiscalização de barragens, estradas e ferrovias está comprometida por estrangulamento de agências
Mesmo após rompimentos das barragens como a de Brumadinho, que completa quatro anos nesta quarta-feira, 25, fiscalização de estruturas conta hoje com apenas 34 pessoas para realizar o trabalho de 928 estruturas
– A necessidade de dar fim ao funcionamento precário das agências reguladoras não interessa apenas a servidores públicos. Quem paga o preço pela falta de serviços é a população como um todo, seja na economia ou, em alguns casos, com a própria vida.
O estrangulamento da força de trabalho da Agência Nacional de Mineração (ANM) é o exemplo mais flagrante. Mesmo após os rompimentos criminosos das barragens de Mariana e de Brumadinho– esta última completa quatro anos nesta quarta-feira, 25 –, a equipe de fiscalização da ANM voltada exclusivamente para as barragens de rejeito sofre hoje com a falta de 40% da capacidade prevista de pessoal.
São 928 barragens de rejeito de minério para fiscalizar em todo o País, seja por meio presencial ou com uso de tecnologias, e evitar que novas tragédias ocorram. O time atualmente destinado a essas atividades, porém, conta com 34 pessoas, sendo que as regras internas exigem 55 profissionais.
O colapso da ANM já é uma realidade nas fiscalizações dos royalties da mineração, principal fonte de receita que abastece os cofres públicos de municípios, Estados e da União. Apenas cinco servidores estão dedicados, atualmente, à tarefa de fiscalizar cerca de 45 mil processos de pagamento da chamada Compensação Financeira pela Exploração Mineral (Cfem), o encargo bilionário que deve ser pago pelas mineradoras.
Sem condições de realizar esse trabalho, já se acumula na ANM um passivo de 8 mil processos de Cfem sem análise, envolvendo um rombo potencial de até R$ 20 bilhões, segundo o Sindicato Nacional dos Servidores das Agências Nacionais de Regulação (Sinagências).
Em julho do ano passado, a ANM chegou a fazer um concurso para contratação de 40 engenheiros, mas ninguém assumiu o posto devido ao calendário eleitoral. Os aprovados seguem aguardando uma portaria do governo federal para começarem a trabalhar.
Paralelamente, a ANM espera, ainda, a equiparação salarial de seus cargos em relação àqueles pagos pelas outras dez agências federais. Em média, a remuneração na ANM para um cargo de mesma categoria administrativa é 46% inferior. Essa distorção tem origem na criação da própria ANM: a agência substituiu o antigo Departamento Nacional de Pesquisas Minerais (DNPM), mas acabou herdando suas regras salariais, em vez de seguir o que se prevê para as demais agências. O resultado é que, em diversas situações, não há interessados em assumir os postos. A revisão dessa regra está em tramitação no Congresso Nacional.
Procurada, a ANM não se manifestou. Em nota, o Ministério de Minas e Energia disse apenas que “acompanha a questão, respeitada a autonomia das agências reguladoras” e que a pasta “tem buscado zelar pelo pleno cumprimento das ações de regulação e fiscalização”.
Transportes e energia
No setor de transportes, o cenário não é muito diferente, segundo apurou o Estadão. A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT)precisa fiscalizar 24 concessões rodoviárias, que somam mais de 13 mil quilômetros de estradas. Nas ferrovias, são mais 16 concessões que respondem por 29.925 quilômetros de malha, além de outros 3.228 quilômetros em construção.
O número estimado pela própria agência como “o ideal para que houvesse uma melhor cobertura de presença” seria de 650 fiscais. Atualmente, porém, a fiscalização da ANTT conta com apenas 363 fiscais para cobrir todo País.
Além de cuidar das concessões, é papel da ANTT regular e fiscalizar os pisos de frete de carga. São mais de 2,6 milhões de veículos cadastrados para transporte de carga. Outra competência é monitorar o transporte interestadual e combater o transporte clandestino em todo território nacional.
“Atualmente, o quadro de servidores da ANTT conta com uma defasagem de 45,51%, contabilizando 776 vagas não providas em relação às 1.705 previstas na lei”, declarou a agência. “A ANTT vem pedindo anualmente a autorização para realização do concurso e fará novamente o pedido neste ano de 2023.”
Na área de energia, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) também viu a demanda de seus serviços explodir, mas não consegue autorização para renovar seu quadro desde 2010. Hoje o déficit de mão de obra é de 24%. “Em que pesem todos os esforços empreendidos pela Aneel no aprimoramento de seus processos e na implementação de ferramentas tecnológicas que otimizam a performance e a produtividade, o dimensionamento de pessoal previsto em lei encontra-se defasado”, disse a agência.
Em maio do ano passado, a Aneel fez novo pedido para realizar um concurso público. O governo Bolsonaronegou. Pressionada, a agência pediu, então, “autorização para contratação de 50 profissionais de nível superior por tempo determinado para atender a necessidade de excepcional interesse público”. Negativo. “O pedido também não foi deferido”, informou a agência.
A situação é a mesma na Agência Nacional do Petróleo e Biocombustíveis (ANP), que hoje sofre com a defasagem de 125 cargos efetivos previstos em lei. O último concurso público foi realizado em 2015, com apenas 34 vagas de técnicos voltadas à substituição de terceirizados. A defasagem salarial dos servidores é outro problema. De 2017 para cá, chega a 34,18%, com base no índice acumulado do IPCA. “Isso contribui diretamente para pedidos de exoneração de servidores da agência”, afirmou a ANP.
A agência afirmou ainda que, na última década, “as atribuições da ANP foram ainda mais ampliadas sem qualquer incremento de cargos efetivos” e que, para situações específicas, tem atraído servidores de outros órgãos. Há 48 novos profissionais terceirizados em fase de contratação por tempo determinado. “Essas iniciativas não suprem as carências da Agência. A ANP permanece com necessidade de recomposição de seu quadro, dado o aumento de atribuições da agência ao longo dos anos, além de expectativa de aposentadorias e evasão, até mesmo para o setor privado, tendo em vista a defasagem salarial.”
Saúde recorre a alternativas
Na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão que protagonizou pressões históricas durante o processo de regularização de vacinas contra a covid-19, há uma série de lacunas e necessidade de recorrer frequentemente a tudo quanto é funcionário do Ministério da Saúdee demais órgãos para fazer valer as suas operações.
Por meio de nota, a Avisa declarou que a realização de concurso público para recomposição de sua força de trabalho é hoje uma “condição essencial para qualquer esforço presente e futuro das atividades da agência”. Com 1.511 servidores em atividade, seu quadro está 7% abaixo do que exige a lei, mas esse rombo costuma crescer muito mais, conforme picos de necessidade vividos no setor de saúde.
“Ao longo dos últimos anos já foram tomadas todas as medidas possíveis para manter o funcionamento da agência, tais como remanejamentos internos, modernização da tecnologia da informação, melhorias de processos de trabalho, entre outros”, afirmou a Anvisa. “No entanto, tais soluções não têm sido suficientes para manter o ideal funcionamento da agência. Impõe-se a recomposição de sua força de trabalho por meio do concurso público.”
Crédito: André Borges / O Estado de São Paulo – @ disponível na internet 25/01/2023
Tomara que entre em colapso, acabe definitivamente, não servem para nada, apenas para bancarmos o salário dos capangas do estado
Outro fato sobre a ANM: existem 67 aprovados no último concurso de 2021, mas o edital prevê APENAS 40 vagas para servidores que irão fiscalizar barragens de mineração.
Dos 67 aprovados, só 40 vagas poderão ser ocupadas, segundo o edital e informações da própria agência.