Os riscos do arcabouço fiscal para o governo Lula

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Alterações feitas pelo relator no texto podem inviabilizar crescimento econômico via investimento público. Para analistas, Congresso tenta barganhar mais verbas com Executivo por meio de obstáculos no marco fiscal.

Proposto pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, como um substituto para o teto de gastos, o novo arcabouço fiscal teve o texto final apresentado pelo relator, o deputado Cláudio Cajado (PP-BA), no início desta semana. O conjunto de regras que visa garantir investimentos mínimos do governo federal por meio de um piso, mas também limitá-los com um teto, sofreu mudanças significativas durante a tramitação.

As mudanças do relator incluíram travas caso o governo não atinja as metas previstas – zerar o déficit primário em 2024 e alcançar superávit de 0,5% do PIB em 2025 e de 1% em 2026.

Segundo o novo texto, se esses objetivos forem descumpridos por um ano, o governo não poderá, por exemplo, criar cargos que gerem despesas, reajustar auxílios ou conceder incentivos fiscais. Se mantidos por dois anos, as travas também impedirão reajustes de salários de servidores, admissão de novos funcionários públicos e até mesmo a realização de concursos.

Além disso, Cajado também não previu um aumento real do Bolsa Família caso o governo não tenha superávit primário nas contas públicas. A única exceção a esse caso, além dos gastos com educação e saúde, será o salário mínimo, que poderá ter valorização real, seguindo as regras em vigor desde o início do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

A expectativa é que o texto do novo marco fiscal seja votado no plenário da Câmara dos Deputados na próxima semana, depois de a Casa ter aprovado a urgência do projeto de lei nesta quarta-feira (17/05), em vitória para o governo federal.

De acordo com especialistas em finanças públicas ouvidos pela DW Brasil, o substitutivo do relator à proposta original do Executivo pode impedir que o governo federal dê sequência a políticas públicas caso não atinja a arrecadação prevista.

Além disso, dizem os analistas, as mudanças no texto original por Cajado, que é do mesmo partido do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), podem ser entendidas como uma barganha do Congresso, majoritariamente conservador, que tenta endurecer as negociações com um governo ideologicamente oposto.

Limitações

Diferentemente do teto de gastos, que previa que despesas do governo federal só poderiam aumentar de acordo com a inflação, o arcabouço fiscal prevê uma aumento dos gastos de até 70% acima da inflação, mas com um piso de 0,6% e um teto de 2,5% ao ano. A proposta visa dar fôlego às expectativas do governo petista de impulsionar a atividade econômica por meio de investimentos do setor público.

No entanto, para que isso ocorra, o governo aposta as fichas num aumento de arrecadação, que, segundo o próprio Cajado, precisará chegar a cerca de R$ 120 bilhões só neste ano de 2023.

Segundo Roberto Piscitelli, professor de finanças públicas da Universidade de Brasília (UnB), o projeto original do governo federal era viável. “De alguma forma, contrabalanceava os interesses de alas diferentes da opinião pública, sendo coerente com as promessas do governo e importante, na medida em que definia um conjunto de regras fiscais para os próximos quatro anos, o que era uma expectativa do mercado”, explica ele, que vê as mudanças do texto do relator como um “retrocesso”.

“Uma trava, como as propostas, na realidade passa a responsabilizar o governo pelo descumprimento da meta de superávit”, diz Piscitelli. Ele lembra o caso do Bolsa Família, um dos principais trunfos do governo Lula. Se mantido dentro do arcabouço, o programa, que já é responsável por R$ 175 bilhões do Orçamento, ficará praticamente inviabilizado de ser expandido. “Isso está comprometendo as linhas básicas do programa do atual governo, que é o programa social de maior impacto, abrangência e importância para o governo”, acrescenta o professor da UnB.

Assessora econômica da Câmara dos Deputados e doutoranda em Economia pela UFRJ, Carolina Resende vê uma leve melhora do arcabouço em relação ao teto de gastos, por haver uma garantia mínima de crescimento real de 0,6%, mas diz que é um crescimento baixo. Ela, no entanto, vê ainda um excesso de rigidez no arcabouço.

Segundo Resende, além dos limites de crescimento geral entre 0,6% e 2,5%, os pisos constitucionais da saúde e da educação, que não serão limitados a 70% do crescimento das receitas, vão acabar comprimindo as despesas. “Tudo isso vai concorrer com as despesas. Vai ser criada uma situação em que o governo vai ter que fazer escolhas muito complicadas”, afirma.

Ela lembra que, na visão compartilhada pela gestão atual, de que o gasto público seja um motor de crescimento econômico, os obstáculos do arcabouço fiscal podem acabar gerando um problema, justamente por não permitirem que o ciclo se feche, com maior demanda e, por conseguinte, maior arrecadação, que é a base do novo marco fiscal.

Áreas que não são protegidas por terem caráter obrigatório, diz a economista, como meio ambiente, políticas para mulheres, cultura e esporte, por exemplo, podem acabar sofrendo um desmonte – como ocorreu durante a vigência do teto de gastos.

“Isso pode inviabilizar não o governo como um todo, mas uma série de políticas importantes”, pontua Resende, lembrando que medidas para aumentar a arrecadação são normalmente impopulares – como aumento de carga tributária, fiscalização ou retirada de incentivos fiscais – e podem ter complicadores políticos para a gestão de Lula.

Resende lembra que, além das travas, o relator fixou a vigência das regras do arcabouço para outros governos – até então, as regras atuais deveriam durar apenas quatro anos. “Você está de certa forma fixando um projeto de sociedade nesse arcabouço”, diz.

Por outro lado, o projeto do arcabouço fiscal não prevê limites para as emendas parlamentares, que tinham o crescimento vinculado à inflação durante a vigência do teto. O gasto com emendas individuais, de bancadas estaduais e comissões inclusive aumentou na PEC da Transição, passando de 1,2% para 2% da receita corrente do governo – mesmo com o fim do Orçamento Secreto, considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Como explica o cientista político Paulo Henrique Cassimiro, professor da UERJ, tanto o aumento das verbas disponibilizadas para parlamentares quanto as dificuldades do governo com as mudanças no texto final refletem as dificuldades do Executivo na relação com o Congresso.

“Há uma indisposição ideológica [da Câmara] com o governo”, diz ele, que lembra que, desde que as emendas se tornaram obrigatórias, a partir da gestão de Michel Temer (MDB), o mecanismo de cessão de cargos e ministérios não tem sido suficiente para a garantia de apoio parlamentar.

Para a aprovação do marco fiscal na Câmara, o governo precisará de maioria absoluta, ou seja, 257 votos de um total de 514. No Senado, onde o clima é mais favorável para Lula, serão 41 dos 81 senadores necessários.

Mas a negociação não para por aí. O próprio relator, Cláudio Cajado, já disse que o governo poderá propor a excepcionalidade do Bolsa Família no novo arcabouço fiscal separadamente – o que demandará novas articulações. Além disso, o projeto de Reforma Tributária, considerado fundamental para aumentar a arrecadação do governo, também precisará de ampla discussão com o Parlamento.

“O governo vai ter que acentuar o mecanismo para munir o Congresso de recursos”, afirma Cassimiro. “Não digo que vai ser igual às emendas do relator, mas algum canal de financiamento de emendas parlamentares ele vai ter que oferecer. Isso se soma ao fato de que há uma bancada ideologicamente extremista, claramente disposta a impedir que o governo governe a qualquer custo. Esses fatores vão tornar tudo isso difícil. Acho que já é uma bomba-relógio”, complementa o professor da UERJ.

Segundo ele, o cálculo político do governo passa por uma aposta em uma reativação da economia, com mais emprego, o que daria força política para forçar mudanças no futuro.

De acordo com Piscitelli, da UnB, as mudanças do relator são uma “chantagem”. “Não é nem uma questão de ideologia. São coisas colocadas ali como balão de ensaio para forçar uma negociação. Não significa [que os parlamentares] estejam de acordo ou tenham chegado à conclusão que queriam essas mudanças, mas, sim, que queriam gerar um impacto, para obrigar a despejar mais dinheiro. É uma crise institucional gravíssima”, conclui.

Crédito: Fábio Corrêa / Deutsche Welle  -@ disponível na internet 19/05/2023

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