A Casa da Moeda do Brasil (CMB) quer ressuscitar um contrato de R$ 1,4 bilhão por ano com uma empresa suíça que confessou pagamento de propina e enriquecimento ilícito durante a elaboração desse mesmo acordo.
A estatal tem enviado ofícios ao Ministério da Fazenda, participado de reuniões e, em dezembro do ano passado, pediu ao Tribunal de Contas da União (TCU) a retomada do acordo.
O contrato com a empresa Sicpa foi fechado sem licitação em 2008 e em 2013. O objetivo: a execução de um sistema que era usado até 2016 pela Receita Federal para o controle e rastreio da produção de bebidas no País, o chamado Sicobe. A suspenção ocorreu por determinação do Ministério da Fazenda na esteira de operações da Polícia Federal (PF) que apontaram pagamentos de propinas na ordem de US$ 15 milhões e direcionamento do contrato à companhia suíça.
Em acordo de leniência feito com o governo brasileiro em 2021, a Sicpa admitiu as irregularidades e aceitou devolver R$ 762 milhões aos cofres públicos. A empresa nega agora que tenha confessado participação nos ilícitos, contrariando o próprio documento que assinou, ao mesmo tempo em que aproveita os benefícios do acordo de leniência. A Casa da Moeda afirma que cumpre a lei. (Leia a íntegra das notas ao fim desta reportagem.)
A atuação da Casa da Moeda para retomar o contrato iniciou uma queda de braço com a Receita Federal.
De um lado, a estatal, que conta com o lobby do deputado Lindbergh Farias (PT-RJ), afirma que a suspensão do Sicobe em 2016 foi ilegal e afetou os números da Casa da Moeda.
A estatal registrou um prejuízo líquido de R$ 117,6 milhões em 2017, ano seguinte à desativação do Sicobe. Em 2018, o déficit foi de R$ 93,4 milhões e, em 2019, de R$ 86,8 milhões.
De outro, o Ministério da Fazenda afirma que o Sicobe é “técnica, econômica e juridicamente inviável” e que sua reativação poderá comprometer “vultosos recursos públicos” e colocar em risco “informações muito sensíveis protegidas por sigilo fiscal”. Hoje, a Receita atua no desenvolvimento de outra ferramenta para fiscalizar o setor, batizada de Rota Brasil, em substituição ao Sicobe, mas não há previsão de conclusão dos trabalhos.
Empresa foi condenada em 2023 por corrupção no Brasil, na Colômbia e na Venezuela
A Sicpa é uma multinacional suíça que atua com tintas de segurança e rastreabilidade. A empresa tem escritórios em mais de 30 países e um passado recente marcado por investigações. Em abril de 2023, a empresa foi condenada na Suíça a pagar 81 milhões de francos suíços, o equivalente a R$ 460 milhões, por responsabilidade criminal corporativa sobre atos de corrupção em pelo menos três países, incluindo o Brasil.
“O processo identificou deficiências organizacionais que possibilitaram que funcionários da Sicpa subornassem servidores públicos na condução de negócios no Brasil, na Colômbia e na Venezuela. As deficiências organizacionais foram particularmente evidentes nas áreas de governança corporativa, gestão de riscos e compliance”, informou a Procuradoria-Geral da Suíça, em nota.
O primeiro contrato da Sicpa no Brasil foi realizado em 2007, também com a Casa da Moeda, para a fabricação de selos fiscais de cigarros – num sistema semelhante ao das bebidas. Essa parceria, novamente feita sem licitação, segue ativa ainda hoje. Um ano depois, em 2008, foi firmado o acordo para a execução do Sicobe, que, mais tarde, viria a resultar em investigações da PF a partir de 2013. A empresa também fornece tinta para cédulas e passaportes no País.
A ideia do Sicobe é permitir a fiscalização da produção de bebidas como refrigerantes e cervejas ao instalar equipamentos contadores de produção nas indústrias e imprimir o respectivo selo fiscal nas embalagens. Nesse sentido, a Casa da Moeda tem uma dependência tecnológica da Sicpa – por isso a reativação do sistema depende, ao menos num primeiro momento, do ressurgimento do contrato.
Com o estouro de operações e a crise tomando proporções internacionais, a Sicpa Brasil se transformou, em 2016, em Ceptis. Hoje, o presidente da companhia é o advogado Bruno Catsiamakis Queiroga, que também faz parte do Conselhão do presidente Lula.
Após operações da PF, Sicpa faz acordo de leniência com a CGU
De acordo com investigações da Polícia Federal, um então representante da Sicpa no Brasil, o empresário Charles Finkel, pagou US$ 15 milhões em subornos a um auditor da Receita Federal, que, em contrapartida, teria direcionado o contrato do Sicobe para a empresa suíça. As propinas teriam sido pagas por meio de uma empresa de consultoria do executivo. Em 2019, eles foram condenados em primeira instância a mais de 10 anos de prisão.
O Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2), no entanto, reformou a sentença para absolvê-los sob o entendimento de que, durante a investigação, ocorreram uma série de irregularidades e excessos, como a quebra do sigilo fiscal dos suspeitos sem autorização judicial e o aproveitamento de depoimento colhido em processo conexo sem a participação da defesa. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou a absolvição em setembro de 2023.
Em meio às investigações, a Sicpa e a Ceptis assinaram, em 7 de junho de 2021, um acordo de leniência com o governo brasileiro. Segundo a CGU, a empresa suíça confirmou, por meio de investigações internas, as irregularidades relacionadas às operações da PF. No documento, as empresas são taxativas ao reconhecerem e admitirem a participação nos atos ilícitos.
O valor total do acordo é de R$ 762,7 milhões, relativos às multas da Lei Anticorrupção e da Lei de Improbidade Administrativa, a pagamento de vantagens indevidas e a enriquecimento ilícito. Desse total, R$ 276,2 milhões já foram pagos, o equivalente a 35%. Devido ao parcelamento, o pagamento só será finalizado em 2041. Em contrapartida, as empresas foram autorizadas a contratar com o poder público.
Casa da Moeda pede ao TCU reativação do Sicobe
No último dia 6 de dezembro, a Casa da Moeda acionou o Tribunal de Contas da União (TCU) para determinar a reativação do Sicobe. Para a estatal, não há qualquer obstáculo legal que impeça a reativação do contrato com a empresa suíça.
“É imperioso esclarecer que, até onde é de nosso conhecimento, à empresa Sicpa, que era contratada pela CMB para a execução desse objeto, jamais foram impostas as penalidades de suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, ou declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública que regiam aqueles contratos”, escreveu a Casa da Moeda.
A petição da Casa da Moeda foi anexada no âmbito de um processo no Tribunal de Contas cujo autor é sigiloso.
Em outubro, o plenário do TCU, sob relatoria do ministro Jhonatan de Jesus, decidiu pela reativação do Sicobe. No entanto, a Receita Federal, por meio da Advocacia-Geral da União (AGU), recorreu e o ministro Vital do Rêgo suspendeu a decisão do colega.
Para a Receita, o Sicobe tem um custo elevado e desproporcional, o que representaria uma afronta ao princípio da eficiência da Administração Pública. A Secretaria também argumenta que a terceirização das atividades à Sicpa envolve risco de quebra do sigilo fiscal e expõe a Receita Federal a ataques cibernéticos que podem trazer prejuízos incalculáveis para a sociedade.
“A instalação e a manutenção do Sicobe deveriam ter sido realizadas pela CMB (Casa da Moeda do Brasil). Essa exigência visa a proteção do sigilo fiscal e o controle estatal sobre a atividade. No entanto, descumprindo tal norma, a CMB terceirizou obrigações a uma prestadora que, inclusive, foi alvo de operações policiais e assinou acordo de leniência por irregularidades praticadas em relação aos contratos firmados”, afirma a Receita Federal.
Diretor da Casa da Moeda pede volta aos ‘tempos em que éramos fraternos e colaboradores irmãos’
A Receita tem trabalhado no sucessor do Sicobe, o Programa Brasileiro de Rastreabilidade Fiscal (Rota Brasil). Em 2 de agosto de 2023, o Fisco realizou uma audiência pública sobre o sistema que contou com a presença de especialistas e representantes do governo e da sociedade civil – incluindo dois diretores da Casa da Moeda, o presidente do Sindicato dos Moedeiros e funcionários da Ceptis. A iniciativa teve por objetivo debater a necessidade e alternativas metodológicas e técnicas para o Rota Brasil.
“Eu peço, por gentileza, que a gente volte aos tempos em que éramos fraternos e colaboradores irmãos. Que entendamos cada um as suas vicissitudes e suas vocações”, apelou o diretor de operações da Casa da Moeda, Márcio Luís Gonçalves Dias, na audiência.
Dias foi denunciado em outubro do ano passado pelo Ministério Público Federal do Rio de Janeiro (MPF-RJ) no âmbito da mesma operação que investiga fraude nos contratos da Sicpa. Ele é acusado de peculato e fraude em licitação, por supostamente ter recebido propina para favorecer a empresa.
Funcionário de carreira da estatal, Dias assumiu a diretoria de operações no ano passado, por indicação do PT do Rio de Janeiro. Procurado pelo Estadão, informou que a denúncia ainda não foi recebida pelo Poder Judiciário e ressaltou que foi investigado e absolvido em um processo administrativo conduzido pela Controladoria-Geral da União (CGU).
“Anoto que fui nomeado diretor de operações em abril de 2023, tendo ingressado na empresa em fevereiro de 1998 mediante concurso público, praticando todos meus atos em função e em benefício da empresa para a qual trabalho”, assinalou o Dias, em nota.
A audiência pública também contou com representantes de outras empresas concorrentes da Sicpa e que estão interessadas em eventuais contratos no futuro para a execução do Rota Brasil, como a Valid e a Dentsu Tracking.
O deputado Lindbergh Farias também participou da audiência. Ele afirmou que o desligamento do Sicobe foi ilegal. “Eu acho que o que a gente tem que fazer é, pela lei, religar o Sicobe e abrir no parlamento a discussão. Mas no momento, legalmente, só tem um caminho, que é religar o sistema. Nesse esforço de arrecadação que o governo está fazendo religar o Sicobe é muito importante”, disse.
Lindbergh é presidente de uma frente parlamentar informal da Casa da Moeda. O colegiado foi instalado em 2018, com o objetivo de “evitar a privatização e trabalhar pela valorização da estatal”.
Ceptis defende Sicobe como o maior sistema de rastreabilidade do mundo
Por meio de nota, a Ceptis informou que é uma empresa do grupo Sicpa e que seus produtos e serviços da companhia são utilizados por mais de 180 países nas principais cédulas, passaportes, documentos e sistemas de controle fiscal do mundo. “No Brasil, a empresa tem atuado, ao longo dos últimos 50 anos, em parceria com órgãos como a Polícia Federal, Banco Central, Receita Federal e Casa da Moeda.”
A empresa ressaltou que o Sicobe é um programa instituído por lei, regulamentado pela Receita Federal e operado pela Casa da Moeda. Afirmou ainda que se trata do maior projeto de rastreabilidade de produtos do mundo.
“A licitude da contratação foi atestada em três instâncias do judiciário brasileiro (TRF, STJ e STF), já com trânsito em julgado, e as decisões afastaram em definitivo qualquer hipótese que tenha sido aventada de atos lesivos ou condutas ilícitas em relação aos fatos apurados. O Tribunal de Contas da União julgou recentemente, por unanimidade, ilegal o seu desligamento, determinando o religamento nos termos da legislação em vigor”, destacou.
Por fim, a Ceptis esclareceu que não emite opinião sobre decisões judiciais ou administrativas. A empresa não se manifestou oficialmente sobre o acordo de leniência feito com a CGU.
Por sua vez, a Casa da Moeda ressaltou a participação na audiência pública realizada pela Receita Federal para reafirmar sua capacidade para religação do Sicobe, mesmo no contexto do Rota Brasil.
“A Casa da Moeda do Brasil – CMB é empresa pública federal que, por força do art. 2°, e § 1º da Lei 5.895/1973 c/c arts. 27 e 28 da Lei 11.488/2007, art. 35 da Lei 13.097/2015 e art. 13, § 5º, da Lei 12.995/2014 é responsável, em caráter de exclusividade, pela instalação, integração e manutenção do sistema de rastreamento de bebidas denominado Sicobe. Assim, a CMB cumpre a lei e defende o seu cumprimento”, afirmou a estatal.
A Casa da Moeda disse também que tomou todas as medidas técnicas cabíveis para retomar a sua obrigação legal no controle de bebidas pelo Estado brasileiro.
“A CMB tem como missão dotar a RFB de ferramentas tecnológicas eficazes para enfrentar a fiscalização e combate ao ilícito em um país com as características do Brasil. A tecnologia é a ferramenta. A CMB tem atendido e está apta para atender todos os requisitos da RFB e suas evoluções. A CMB possui uma parceria de cooperação tecnológica, com a empresa Ceptis, para atendimento do programa estabelecido em lei.”
Crédito: Tácio Lorran / O Estado de São Paulo – @ disponível na internet 29/01/2024
A decisão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) foi muito estranha. O auditor da RFB recebe 15 M de dolares e o problema é da polícia se contar que no julgamento a conexão do desembargador caiu no meio do voto de forma bem apropriada.
Essa é a nossa justiça !!
A empresa é tão séria, que em 2018, mandaram 212 empregados embora, que tinham mais de 25 anos de empresa e até hoje, estão recorrendo na justiça para não voltarem.