Reforma administrativa: o que se sabe até agora e os desafios pela frente

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Medidas isoladas e ‘balas de prata’ não serão suficientes para revolucionar e aprimorar o serviço público

A Câmara dos Deputados instituiu formalmente, em 28 de maio, um Grupo de Trabalho para discutir proposta de reforma administrativa, a ser apresentada pelo colegiado em 45 dias após sua instituição. Os trabalhos serão coordenados pelo deputado Pedro Paulo (PSD-RJ).

Trata-se de uma sinalização clara do presidente Hugo Motta (Republicanos-PB) de que essa será uma pauta prioritária em sua gestão. Motta indicou, inclusive, a pretensão (que dificilmente será alcançada) de votar a matéria ainda no primeiro semestre de 2025.

O prazo para o GT apresentar seus resultados é 14 de julho e o colegiado começou seu trabalho realizando uma série de reuniões técnicas, publicou um plano de trabalho audacioso e realizou, até o momento, três audiências públicas, além da concessão de algumas entrevistas pelo coordenador do grupo. Ainda que os trabalhos estejam em andamento, portanto, é possível, a partir desses insumos, analisar algumas sinalizações sobre as ideias em discussão.

Em primeiro lugar, é interessante observar a metodologia escolhida para condução dos trabalhos. Tema complexo e abrangente, é natural que a reforma administrativa reúna uma quantidade expressiva e heterogênea de interessados.

O GT foi engenhoso ao conferir participação social por meio de audiências públicas e, mais que isso, ao abrir um canal formal para receber propostas. Com isso, às naturais cobranças, críticas e preocupações o coordenador dos trabalhos responde sempre que sugestões e contribuições podem ser encaminhadas ao grupo, que as analisará antes da apresentação da proposta final.

Em segundo lugar, é preciso reconhecer que o GT estabeleceu premissas importantes para o avanço dos trabalhos:

  • não se trata de discussão fiscal (apesar de falas de alguns parlamentares, inclusive o presidente Hugo Motta, terem gerado ruído nesse aspecto);
  • não se discutirá o tamanho do Estado, mas sua efetividade;
  • os servidores públicos não são os vilões do debate;
  • será adotado o escopo 3 x 3, ou seja, propostas devem ser aplicadas aos três Poderes, nos três níveis da Federação.

Indicou-se ainda que os trabalhos não partem de nenhum texto já existente (em resposta às críticas de que o GT seria uma forma de apenas resgatar a discussão da PEC 32, de 2020, apresentada pelo então presidente Jair Bolsonaro). O tom do discurso, nesse sentido, facilita (mas não garante) que a discussão sobre o tema seja desinterditada, como afirmou o deputado Pedro Paulo.

Pelo que se sabe até o momento, alguns temas serão inevitavelmente endereçados pelo Grupo de Trabalho. Destacam-se três deles.

O primeiro se refere aos supersalários. A discussão sobre salários que excedem – e muito – o teto constitucional, por meio de variados e criativos “penduricalhos” (parcelas criadas com natureza indenizatória e que, portanto, não são contabilizadas para apuração do teto, além de não sofrerem desconto de imposto de renda), especialmente – ou quase exclusivamente – no Poder Judiciário, no Ministério Público e nos Tribunais de Contas (que deveriam, veja só, ser exemplo), é inevitável. Trata-se de um dos poucos temas sobre os quais parece haver algum consenso (à exceção, aparentemente, da maior parte daqueles que são beneficiados pelos supersalários).

Além do PL 2721, de 2021, em tramitação no Senado e sobre o qual diversos atores já se posicionaram contrariamente, uma vez que a proposta simplesmente regulariza as disfunções que supostamente deveria combater, há um debate constante na agenda pública, com exemplos desconfortantes, de salários exorbitantes e privilégios impróprios a uma elite de servidores públicos e, especialmente, membros de Poderes.

A Emenda Constitucional 135, de 2024, já alterou o § 11 do artigo 37 da Constituição Federal para prever que lei ordinária disciplinaria as exceções ao teto remuneratório constitucional. O GT alcançaria significativo resultado caso proponha projeto de lei razoável nesse sentido.

O segundo tema incontornável se refere à contratação temporária. O crescimento do número de contratos temporários no setor público, somado à ausência de regulamentações homogêneas e à insegurança jurídica sobre o tema, impõem que alguma uniformização seja proposta.

Apesar de a Constituição Federal (inciso IX do artigo 37) já prever a possibilidade desse modelo de contratação em caso de “necessidade temporária de excepcional interesse público”, a diversidade com que o mecanismo é interpretado e aplicado, especialmente em estados e municípios, gera expressivos problemas de gestão.

Há, nesse caso, um elemento complicador: apesar de o GT ter expressado claramente que não pretende tratar do fim da estabilidade de servidores públicos, sindicatos e associações argumentam, com razão, que, a depender da extensão que se dê aos contratos temporários, eles poderão, na prática, ser usados em substituição a servidores efetivos, afetando, assim, indiretamente, o instituto da estabilidade funcional. Esse ponto, portanto, tende a gerar controvérsia.

O terceiro tema sempre presente quando se fala em reforma administrativa é avaliação de desempenho. A avaliação de desempenho, que, na verdade, deveria ser tratada como apenas uma das etapas de um processo maior de gestão do desempenho, possui grande apelo público, político e midiático, ao mesmo tempo em que, infelizmente, é discutida com muita superficialidade, desinformação e preconceito.

Trata-se de tema sobre o qual todos se sentem capacitados para opinar, mas cuja implementação prática e operacional é raramente conhecida. Afirmar que o servidor ou que o serviço público precisa ser avaliado, ideia presente em todas as audiências, manifestos, publicações sobre a reforma administrativa constitui obviedade consolidada, à exceção de posições incompreensíveis e extremadas de determinados atores para os quais avaliação de desempenho significa perseguição ao servidor. Não se discute que servidor e serviço público precisam ser avaliados. O grande desafio é como fazê-lo.

Aliás, a Emenda Constitucional 19, de 1998 – ou seja, promulgada há mais de 25 anos! – já previu que “a lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, […] asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços” (§ 3º, art. 37).

A Lei 13.460, de 2017, regulamenta esse dispositivo constitucional e expressa a necessidade de avaliação dos serviços públicos. Além disso, a Emenda Constitucional 109, de 2021, incluiu na Carta Magna (§ 16, artigo 37) previsão de que “os órgãos e entidades da administração pública, individual ou conjuntamente, devem realizar avaliação das políticas públicas, inclusive com divulgação do objeto a ser avaliado e dos resultados alcançados, na forma da lei”. No nível federal, quase a totalidade dos servidores são avaliados, com base nas respectivas legislações de cada carreira.

Não basta prever na norma que órgãos precisam ter um planejamento, com metas e indicadores, e que servidores precisam ser avaliados. A previsão normativa ou já existe ou é simples de ser ampliada para todos os níveis e Poderes. O problema é de gestão.

O desafio, que não é apenas brasileiro e não é apenas do setor público, é implementar um processo objetivo, justo e transparente de gestão de desempenho. Frases de efeito vazias, de quem pouco ou nada conhece da estrutura do Estado, segundo as quais “o que precisamos é apenas de qualidade, de avaliação dos servidores e dos serviços”, em nada contribuem para o avanço das discussões.

A desinformação aparece na manifestação de vários atores. Há aqueles que afirmam que poucos servidores são demitidos por baixo desempenho. Na verdade, o desligamento por baixo desempenho, previsto na Constituição desde 1998, nunca foi regulamentado, de modo que ninguém é demitido por baixo desempenho.

As demissões ocorrem por problemas disciplinares, que podem incluir a desídia (indolência, ociosidade, preguiça, desleixo, incúria, negligência), mas, nesse caso, trata-se de desvio disciplinar, que possui natureza diferente da de um processo de gestão de desempenho.

Tal desinformação transparece ainda quando se afirma que o “baixo número de demissões por problemas de desempenho” é motivo pelo qual os serviços públicos são ruins. Há, em primeiro lugar, muitos matizes que precisam ser analisados: quais serviços públicos são ruins e quais não são e com base em quais métricas e evidências?

Além disso, esse argumento significa que maior número de demissões implica melhor qualidade de serviço? Nesse caso, qual seria o percentual necessário de demissões para um bom serviço? 10%? 20%? 30%? É preciso entender que desafios de gestão pública são complexos e não se resolvem com soluções mágicas, por mais que sejam aparentemente tentadoras.

Há, obviamente, servidores públicos sem compromisso real com seu trabalho. Ainda que sejam minoria, é preciso lidar com esse problema, mas simplesmente escrever uma norma não alcançará esse objetivo.

Outro exemplo de premissa simplificadora de questão complexa: remuneração variável baseada em desempenho. Muitos afirmam que basta atrelar o pagamento de determinada remuneração aos resultados da avaliação de desempenho dos servidores, o que faria com que os serviços públicos melhorassem consideravelmente.

Em primeiro lugar, esse modelo já existe no âmbito federal e, inegavelmente, já se mostrou disfuncional. Em segundo lugar, ainda que se proponha o pagamento para servidores de outros níveis, como professores, policiais ou médicos, qual a governança que um único servidor possui sobre o conjunto do serviço público prestado?

Um paciente que demore a ser atendido pela falta de profissionais em quantidade adequada, que tenha problemas pela ausência de infraestrutura básica na unidade de saúde e que não tenha acesso aos medicamentos prescritos certamente não considerará o serviço de saúde de qualidade, independentemente do desempenho do médico que o atendeu. O mesmo raciocínio se aplica à saúde e à educação.

O desempenho individual de um servidor depende de um conjunto tão amplo e variado de condicionantes, algumas das quais estão completamente fora de sua governabilidade, que o verdadeiro desafio é como realizar uma gestão de desempenho, e uma avaliação de desempenho, que seja efetiva e não apenas pro forma, especialmente considerando a multiplicidade e heterogeneidade de áreas de atuação do Estado e de políticas públicas, com diferentes naturezas.

Como avaliar um diplomata? Ou um pesquisador? Ou um fiscal? Pela quantidade de multas aplicadas? O GT poderia começar analisando, por exemplo, como são avaliados os servidores públicos do Poder Legislativo Federal.

Além desses três temas aparentemente predominantes na discussão, alguns outros aspectos importantes surgiram no debate. A necessidade de transparência é um deles. Apesar de princípio público inquestionável em um Estado Democrático de Direito, há espaços do setor público que precisam aprimorar a transparência relacionada à gestão interna, especialmente pessoal e remuneração.

Em muitos casos, ou não há dados ou os dados são tão complexos e de difícil consolidação que a transparência é prejudicada. Nesse aspecto, o Poder Executivo Federal constitui um exemplo de boa prática, enquanto, surpreendentemente, o Poder Judiciário, os Tribunais de Contas e os Ministérios Públicos ainda precisam avançar bastante.

As audiências públicas, as entrevistas concedidas pelos atores envolvidos no processo, em especial o coordenador dos trabalhos, e os documentos tornados públicos até o momento indicam que uma variedade extraordinária de temas está ou poderá entrar na pauta.

Alguns exemplos: redução de jornada de trabalho com proporcional redução de remuneração, eliminação de benefícios ou privilégios específicos de determinadas categorias, regras de teletrabalho, regulamentação do direito à greve, gestão de lideranças, critérios para ocupação de cargos comissionados e altas funções públicas, transformação digital, governança pública, segurança jurídica, orçamento e qualidade dos gastos, fenômeno da “porta giratória” (servidores que adquirem conhecimentos e experiências sensíveis no setor público e depois as levam para o setor privado por elas diretamente impactado), melhor uso de parcerias público-privadas, arranjo institucional das agências reguladoras, modelo institucional dos cartórios, combate ao assédio em todas as suas formas, estabelecimento de uma política remuneratória objetiva, transparente e isonômica, dentre vários outros temas.

Cada um desses assuntos possui nuances e complexidades tamanhas que nos faz desejar, sinceramente, muito sucesso e resiliência ao Grupo de Trabalho e, em especial, ao corpo técnico envolvido.

Há, ademais, três desafios ou alertas que merecem registro. O primeiro deles é a exiguidade do prazo para que o GT apresente seu resultado. A complexidade dos temas e a multiplicidade de visões políticas envolvidas evidenciam que dificilmente os 45 dias serão cumpridos ou, se o forem, haverá alta probabilidade de comprometimento da qualidade do trabalho.

O deputado Pedro Paulo já indicou, diante dessas críticas, que os produtos entregues pelo Grupo de Trabalho serão apenas minutas que, posteriormente, seguirão o rito normal do processo legislativo, o que daria mais tempo para discussão.

De toda forma, uma reforma administrativa que se pretenda efetiva exigiria maior tempo de discussão e de negociação. Uma possibilidade é que o tema esteja apenas recebendo camadas sucessivas de contribuição, sendo a PEC 32, de 2020, a primeira delas e o atual GT mais uma, até que, em algum momento, o contexto político-institucional esteja favorável o suficiente para o avanço da reforma.

O segundo desafio é o risco constante no processo legislativo brasileiro de constitucionalização excessiva de matérias infraconstitucionais. Grande parte dos temas em pauta não deveriam ser detalhadas na Constituição Federal. Como se pretende que o alcance seja geral (três Poderes e três níveis de governo), no entanto, parece ser inevitável alguma alteração na Carta Magna. Nesse sentido, o melhor caminho seria uma previsão genérica de uma Lei de Gestão Pública, quem sabe Lei Complementar, uma espécie de LRF da Administração Pública. O detalhamento, portanto, seria infraconstitucional.

Como não há iniciativa privativa para Proposta de Emenda Constitucional, o próprio Poder Legislativo seria capaz de conduzir a discussão. O detalhamento, no entanto, por meio de lei, provavelmente seria de iniciativa privativa do presidente da República, a não ser que se construa alguma interpretação em contrário. De toda forma, qualquer proposta só tende a avançar com a participação e concordância do Poder Executivo federal.

Questionado sobre qual conselho daria para o avanço da reforma, considerando a experiência pregressa em outras reformas, o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia foi enfático: só passa com o apoio do governo.

O terceiro desafio expressivo a ser enfrentado é a politização vazia do debate. Não que o tema não seja político: obviamente o é, tanto que será objeto de disputa política legítima no Parlamento. No entanto, é possível perceber, de todos os lados da discussão, uma série de palavras de ordem infrutíferas, chavões conhecidos, argumentos vazios, competição política centrada em si mesma, sem qualquer compromisso com a realidade, com evidências, com argumentos sólidos, com o bom debate de ideias.

De um lado, há sindicatos que são contra tudo e qualquer coisa, sem sequer conhecer do que se trata. De outro, setores produtivos que falam simplesmente em diminuir o tamanho do Estado e reduzir o déficit fiscal, independentemente do que isso signifique ou das consequências para a sociedade (desde que não sejam retirados seus subsídios). Com raras e louváveis exceções, inclusive na imprensa, há um grande vazio de ideias e de argumentos qualificados. A esperança é que o Grupo de Trabalho, com a articulação que vem demonstrando, seja capaz de fugir dessa armadilha.

Por fim, dois últimos registros parecem necessários. O primeiro é que, em qualquer discussão sobre reforma administrativa, há uma grande confusão entre medidas normativas e problemas de gestão. Em outras palavras, não basta constar na Constituição ou nas leis. Às vezes, o problema é de gestão, de implementação, de operacionalização.

Tome-se o exemplo do uso de um único número de identificação para cada cidadão, estabelecido pela Lei 14.534, de 2023, e destacado em uma das audiências públicas como objeto necessário de discussão do GT. A norma já existe e o Estado possui agora o desafio de implementá-la. Associar problemas de gestão e de implementação de políticas públicas a um processo de reforma administrativa normativa tende mais a confundir que a contribuir para o debate.

O segundo registro: é preciso reconhecer que o Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI) tem realizado um trabalho significativo, partindo da premissa de que reforma administrativa, ou transformação do Estado, não precisa necessariamente ser constitucional, mas pode ser infralegal, gradual e multifacetada.

Douglas Andrade da Silva
Servidor público federal. Ex-diretor de Carreiras e Desenvolvimento de Pessoas na Secretaria de Gestão de Pessoas do Ministério da Gestão e Inovação

A criação de uma pasta ministerial exclusiva para gestão pública já constitui, por si só, um indicativo de avanço. Além disso, a título ilustrativo, é possível citar: o processo contínuo de transformação digital como uma política de Estado (vide gov.br e SouGov); o esforço de simplificação e transversalização de carreiras; a eliminação ou transformação de cargos obsoletos em cargos atualizados; o alongamento de carreiras e redução de remunerações iniciais; o aprimoramento das regras de concurso público, por meio do Concurso Público Nacional Unificado e da Lei 14.965, de 2024; a regulamentação do estágio probatório e a definição de um programa de formação inicial mínimo para todos os servidores; o esforço para conferir diversidade à força de trabalho no setor público; a criação de arranjos institucionais inovadores, como o ColaboraGov; estudos para revisão do arcabouço normativo que organiza a administração pública (Decreto-Lei 200, de 1967); dentre outras medidas (muitas das quais constam como propostas encaminhadas para o GT, sendo que já estão em andamento).

Nenhuma dessas medidas, isoladamente, será capaz de revolucionar a Administração Pública, do mesmo modo que o GT instituído pela Câmara dos Deputados não encontrará uma “bala de prata” capaz de resolver todos os problemas do setor público.

O importante e necessário é que todos os atores envolvidos no processo contribuam, com suas diferentes concepções, para o aprimoramento gradual de uma burocracia estatal que, de fato, atenda ao que a sociedade precisa e espera.

Crédito: Douglas Andrade da Silva / JOTA – @ disponível na internet 3/7/2025

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