Narrativa nova, ameaça antiga.
Ignoram a dignidade de quem construiu o Estado e empurram aposentados para a invisibilidade.
A cada novo ciclo de discussão sobre a reforma do Estado brasileiro, parece haver um ponto de partida fixo: modernização, eficiência, sustentabilidade da máquina pública.
O objetivo, em tese, é legítimo. No entanto, esse debate costuma vir acompanhado de uma amnésia seletiva: esquece-se dos servidores públicos aposentados, que deram sua vida profissional ao país e hoje assistem, com apreensão, a progressiva desidratação dos seus direitos.
Foi esse alerta que levamos à audiência pública do Grupo de Trabalho da Reforma Administrativa na Câmara dos Deputados, onde representei a Anampa, associação que congrega magistrados e membros aposentados do Ministério Público da União e da Magistratura Federal.
Em nossa fala, reafirmamos um princípio que não deveria mais precisar ser defendido: não se constrói futuro jogando o passado para debaixo do tapete.
O Brasil deve muito a esses servidores que hoje estão fora da ativa. São homens e mulheres que interpretaram a Constituição, defenderam direitos, julgaram conflitos, investigaram crimes, promoveram justiça.
Muitos exerceram suas funções sob condições adversas, sem estabilidade institucional, antes mesmo da consolidação democrática. A Constituição de 1988 reconheceu esse legado e estabeleceu a paridade entre ativos e aposentados como forma de proteger sua dignidade. Mas esse direito vem sendo corroído, não por lei explícita, mas por caminhos silenciosos.
Nos últimos anos, consolidou-se a prática de criar verbas indenizatórias que, embora apresentadas como ressarcimento, têm, na essência, natureza remuneratória, o que fere frontalmente o pacto constitucional.
Algumas delas surgem sob o pretexto de remunerar excesso de trabalho, o que tampouco se sustenta. Muitas delas são pagas aos ativos com frequência e generalidade, sem que tenham o devido reflexo nos proventos dos aposentados. Na prática, funcionam como aumentos salariais disfarçados, restritos a quem ainda está na ativa.

O resultado é uma crescente desigualdade entre quem trabalha hoje e quem trabalhou até ontem. O mais doloroso, contudo, é o efeito humano desse cenário. Depois da audiência, entre olhares discretos e desabafos mais contidos, colegas compartilharam histórias que não podem passar despercebidas.
Uma delas menciona uma procuradora diagnosticada com doença autoimune, já em cadeira de rodas, que optou por adiar sua aposentadoria. Não por apego ao cargo, mas por receio de não conseguir manter o custeio do tratamento se houvesse perda de renda. Acabou falecendo sem jamais deixar o posto.
É essa a realidade que estamos produzindo quando desconsideramos os aposentados nas discussões sobre a reforma administrativa. Pessoas que, muitas vezes, enfrentam doenças graves, limitações físicas, solidão, e ainda têm que conviver com a sensação de serem descartáveis. Há algo profundamente injusto nisso.
O relator do Grupo de Trabalho, deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança, afirmou que “o foco da reforma não é perseguir servidor público”. O deputado Isnaldo Bulhões, relator anterior da proposta, também garantiu que direitos não seriam retirados. É importante que esse compromisso seja mantido, mas é igualmente fundamental que ele seja expresso de forma inequívoca no texto da reforma. Como juíza aposentada, posso assegurar que a ambiguidade não protege ninguém.
Não defendemos privilégios, mas o cumprimento da Constituição e o respeito a quem dedicou décadas à República. Acreditamos que é possível ajustar o serviço público às necessidades do século XXI sem romper com os pactos de justiça intergeracional. É possível conter distorções salariais sem penalizar quem já se aposentou. É possível reformar, sim; mas com respeito, diálogo e humanidade.
Mais do que números e previsões fiscais, há uma dimensão que não foi debatida, isto é, o valor simbólico dos aposentados como memória viva do serviço público. São eles que preservam a cultura institucional, orientam as novas gerações e carregam o testemunho dos avanços e desafios vividos ao longo de décadas. Quando esse grupo é desvalorizado, o Estado perde também uma fonte de experiência, equilíbrio e pertencimento, ingredientes indispensáveis para qualquer administração pública que se pretenda estável, democrática e eficiente.
Então ninguém deveria ter medo de se aposentar. Ninguém deveria adoecer em silêncio, temendo perder o sustento. Ninguém deveria ser esquecido depois de ter servido com dignidade ao Brasil. Que a proposta de modernização não repita o erro de apagar histórias em nome da eficiência.
Crédito: Sonia Roberts / Congresso em Foco – @ disponível na internet 12/8/2025