Viés fiscalista na reforma administrativa

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O artigo analisa a proposta de reforma administrativa. Apresenta-se a percepção do viéis fiscalista na proposta. Apontado o uso da austeridade como instrumento.

1. Introdução: A constitucionalização da austeridade

A proposta de reforma administrativa apresentada ao público em 2/10/25 é herdeira da PEC 32/20. A proposta representa uma tentativa de inscrever no texto constitucional uma “arquitetura da austeridade”, isto é, um conjunto de regras fiscais limitadoras da capacidade de gasto e de atuação do Estado, consolidando um viés fiscalista no corpo da Constituição da República de 1988.

Sob a narrativa de eficiência, meritocracia e combate a privilégios, oculta-se um projeto de redefinição do pacto social de 1988. Tal projeto subordina a prestação de serviços públicos e a garantia de direitos sociais a um imperativo de contenção fiscal de longo prazo.

O debate em torno da reforma administrativa atraiu críticas de instituições de pesquisa, como o Dieese – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos2, e de entidades como o Fonacate – Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado3. Vamos ao artigo.

2. O paradigma fiscalista e a doutrina da austeridade.

Para compreender a proposta de reforma administrativa, é necessário analisar o quadro teórico e ideológico que a sustenta: o viés fiscalista e sua principal ferramenta, a política de austeridade.

2.1. Definição do viés fiscalista

O “viés fiscalista” pode ser definido como uma abordagem de política econômica que subordina funções do Estado como a indução do crescimento econômico, a redução das desigualdades e a promoção do bem-estar social à prioridade do equilíbrio das contas públicas, da geração de superávits primários e da garantia de sustentabilidade da dívida pública.

A política fiscal abandona sua vocação de ser instrumento de gestão macroeconômica, capaz de responder a ciclos de recessão com investimentos públicos (efeito crowding in), acabando por se tornar uma política cujo principal objetivo é conter despesas e sinalizar “credibilidade” aos mercados financeiros.

2.2. A austeridade como instrumento

A austeridade é o principal instrumento do fiscalismo, podendo ser entendida como uma política de ajuste econômico fundada na redução drástica dos gastos públicos e, consequentemente, do papel do Estado na economia e na sociedade4. O argumento é que cortes de despesas, ao demonstrarem “responsabilidade fiscal”, melhoram a confiança dos agentes econômicos, estimulando o investimento privado e a retomada do crescimento.

Contudo, a experiência demonstra que tais políticas acabam por não atingir o efeito esperado. Ao invés de estimular o crescimento, a contração do gasto público em períodos de recessão tende a aprofundar a crise: o gasto de um agente (o governo) é a renda de outro (setor privado).

A queda na atividade econômica reduz a arrecadação de impostos, prejudicando o resultado fiscal. Já atravessamos a experiência dessa doutrina. Quem não se lembra da EC 95/16 (“Teto de Gastos”)? Sancionada sob a justificativa de reequilibrar as contas, a medida congelou as despesas primárias por vinte anos, resultando em um subfinanciamento de áreas essenciais.

A narrativa de uma crise fiscal persistente e a necessidade de um “ajuste” estrutural servem como premissa para legitimar a introdução de reformas. Sob o pretexto de resolver um problema conjuntural (o desequilíbrio das contas), a reforma visa alterar o modelo de Estado.

A crise fiscal torna-se a justificativa para uma mudança de regime fiscal de longo prazo, onde a austeridade deixa de ser uma política de governo para se tornar uma estrutura permanente do Estado, inscrita na própria Constituição.

3. A narrativa da eficiência: Análise do discurso oficial da reforma

A proposta de reforma administrativa é apresentada por meio de uma narrativa construída, centrada nos conceitos de modernização, eficiência e combate a privilégios. Essa operação de enquadramento discursivo busca apresentar as profundas mudanças fiscais como uma atualização técnica e apolítica da máquina pública, ocultando sua lógica fiscalista subjacente.

3.1. Os quatro eixos da “modernização”

O “Fichário da Reforma Administrativa”5, documento que detalha a proposta, estrutura-a em quatro eixos principais, cada um associado a um objetivo de modernização:

a) Estratégia, governança e gestão: Foco em planejamento estratégico, acordos de resultados e bônus por desempenho, com o objetivo de criar uma gestão pública orientada para o cidadão e para a entrega de valor.

b) Transformação digital: Visa à digitalização de processos e serviços, promovendo agilidade e transparência.

c) Profissionalização do serviço público: Propõe a reestruturação de carreiras, a adoção de uma tabela remuneratória única e a valorização da meritocracia.

d) Extinção de privilégios: Apresentado como o eixo central do combate às desigualdades e excessos no serviço público.

A retórica apresentada busca despolitizar o debate, tratando a redução do Estado e a contenção de gastos não como uma escolha ideológica, mas como uma necessidade técnica para alcançar uma gestão mais “produtiva” e “menos onerosa”.

3.2. O combate aos “privilégios” como legitimador social

A proposta de reforma apoia-se em dados de opinião pública, como pesquisa Datafolha que mostra rejeição majoritária aos “supersalários”. Ao classificar direitos históricos dos servidores como privilégios, busca-se apoio popular para restringir esses direitos. A “extinção de privilégios” funciona como recurso retórico para justificar medidas fiscais.

Embora o discurso prometa melhorar a entrega de serviços públicos, o real propósito é conter gastos, o que reproduz contradições já verificadas em experiências passadas. Podemos citar a EC 95 (“teto de gastos”), que reduziu investimentos em saúde e educação.

Assim, o objetivo fiscal se sobrepõe à retórica de eficiência e foco no cidadão, usada apenas para legitimar a agenda de austeridade.

4. Conclusão

Gustavo Roberto Januário
Procurador Federal desde 2015. Especialista em Processo Civil pela USP e em Advocacia Pública pela ESAGU. Aluno especial do Mestrado em Constitucionalismo e Democracia pela FDSM.

A análise do viés fiscalista da reforma administrativa revela que ela ultrapassa a simples reestruturação, consolidando constitucionalmente a austeridade permanente. Ao priorizar o equilíbrio fiscal sobre os direitos sociais, a proposta reconfigura o pacto de 1988.

A narrativa de “modernização” e “combate a privilégios” atua como estratégia retórica para legitimar essa agenda, que, na essência, é uma “reforma de Estado”. Trata-se de uma mutação constitucional silenciosa que subordina a política social à disciplina fiscal, tendendo a aprofundar desigualdades e a enfraquecer a capacidade estatal.

________

1 Gustavo Roberto Januário. Procurador Federal. Especialista em Processo Civil pela USP. Especialista em Advocacia Pública pela ESAGU

2 Estudos do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) (2025).

3 Anais do Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (Fonacate).

4 Duran, C. V. (2021). Tristes tropicalizações: austeridade fiscal e sua constitucionalização no Brasil. Direito Público, 18(97). https://doi.org/10.11117/rdp.v18i97.4987

5 BRASIL. Câmara dos Deputados. Grupo de Trabalho da Reforma Administrativa. Fichário da Reforma Administrativa. Brasília

Crédito: Gustavo Roberto Januário – www.migalhas.com.br/depeso/443251/vies-fiscalista-na-reforma-administrativa-introducao31/10/2025

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