Do Rio à Amazônia: a expansão do crime organizado no Brasil e as barricadas que dividem o RJ

0
49
Armas apreendidas na megaoperação policial no Rio de JaneiroFoto: Mauro Pimentel/AFP/Getty Images

Enquanto governos federal e estaduais divergem sobre curso de ação, facções consolidam poder territorial e criam até mesmo uma ameaça à soberania nacional em regiões como a Amazônia, dizem especialistas.

O enfrentamento ao crime organizado entrou no topo das prioridades da agenda pública nacional. Após a operação policial que deixou 121 mortes no Rio de Janeiro, incluindo quatro policiais, o governo federal enviou projetos ao Congresso para liderar uma reação do Estado. A menos de um ano das eleições de 2026, governadores de oposição se articulam em torno de uma resposta integrada, sem a participação de Brasília. Enquanto as disputas políticas afastam soluções, o avanço dos grupos criminosos se torna uma ameaça cada vez maior à soberania nacional, do Rio de Janeiro à Amazônia.

O Comando Vermelho(CV), alvo da megaoperação, surgiu no antigo presídio da Ilha Grande, há pelo menos 50 anos. Nesse período, a organização se consolidou no domínio de territórios no Rio, na oferta de serviços ilegais e até na economia formal.

O CV se expandiu: hoje, mantém alianças com facções na América do Sul e enfrenta a polícia com drones utilizados na guerra da Ucrânia. A Amazônia se tornou um entreposto fundamental no mapa de atuação do grupo. Ante a frágil presença do Estado na floresta, seus rios são cada vez mais utilizados como rota internacional do tráfico.

No interior da floresta, ribeirinhos já trocam ovos de tartarugas por drogas do CV. O pesquisador Rodrigo Chagas, da Universidade Federal de Roraima (UFRR), deparou-se com a cena em recente viagem de campo à região.

 “Não é uma novidade. É o que a gente chamava de regatão: essa figura do mercador, o mascate flutuante que vai levar produtos industrializados a um valor absurdo para os ribeirinhos em troca dos produtos da floresta que eles pegam de uma maneira muito barata para vender em mercados locais e até internacionais por preços altíssimos. Esse esquema de dívidas, ameaças, funcionou durante todo o período da borracha”, detalha.

Novo padrão de domínio do território

O avanço das facções no Norte do país coincide com a criação de presídios federais na região durante a última década. A transferência de membros dessas organizações propiciou que novas conexões se estabelecessem na Amazônia, um local estratégico.

O Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, atuava em parceria com o CV nas prisões federais até o final de 2016, quando um acerto de contas rompeu o acordo. A fragilização do controle territorial nos anos seguintes abriu espaço para a expansão desses grupos. Com o acordo de paz na Colômbia, dissidências das FARC se associaram a CV e PCC.

“O que muda de fato com isso tudo é que agora você tem uma nova configuração, com um novo padrão de violência, um novo padrão de domínio de território”, ressalta o pesquisador. Ele realizou dezenas de entrevistas com detentos ligados ao PCC em Roraima – muitos ligados à extração ilegal de ouro. “Existe uma série de afinidades entre essas atividades. Historicamente, a utilização da droga dentro do garimpo sempre foi muito presente. São trabalhos muito puxados. E o piloto de aviação do garimpo sempre foi muito interessante para o narcotráfico”, detalha Chagas.

Quando o governo federal iniciou a operação de desintrusão no território Yanomami, havia cerca de 20 mil garimpeiros ilegais no território, além de 180 pistas de pouso clandestinas. No estudo Cartografias da violência na Amazônia, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Rodrigo Chagas identificou que o PCC atua desde 2015 em áres de garimpo ilegal na terra indígena.

PCC: atuação mundial

Assim como o Comando Vermelho, o PCC nasceu em um presídio, a Casa de Custódia de Taubaté, no interior de São Paulo, como um “sindicato do crime”, a fim de denunciar violações no sistema prisional. Sob a liderança de Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, o PCC tornou-se uma espécie de empresa. Sua operação se caracteriza por vínculos de confiança quem está no topo da “irmandade” e relações terceirizadas na ponta.

Preso na megaoperação policial no Rio de Janeiro
Preso na megaoperação policial no Rio de JaneiroFoto: Jose Lucena/TheNEWS2/ZUMA/dpa/picture alliance

Esse modus operandi favorece a capilaridade internacional da organização, presente em 28 países. Na Europa, atua em associação com máfias sérvias e albanesas; no oeste da África – Nigéria e Guiné, por exemplo –, operam grandes rotas de cocaína. O PCC mantém uma estrutura financeira sofisticada, investindo em postos de combustíveis, terminais portuários e até clubes de futebol. As investigações da operação Carbono Oculto, da Polícia Federal, revelaram que o PCC movimentou R$ 52 bilhões entre 2020 e 2024, dinheiro que foi lavado em instituições financeiras.

“A força do PCC está menos no fuzil apontado e mais na capacidade de arbitrar conflitos e organizar mercados” explica Camila Dias, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP. A disputa sangrenta por territórios, cotidiana no Rio, não faz parte da realidade de São Paulo, onde o grupo exerce uma forma de monopólio do crime. “Para atuar como regulador de mercados ilícitos, o PCC busca evitar confrontos abertos que prejudiquem seus fluxos financeiros”, complementa Dias.

Já no Rio, a face do problema é aberta e territorial. O Comando Vermelho exerce controle sobre áreas densamente povoadas, oferecendo serviços como internet clandestina, transporte alternativo e até resolução de conflitos. A resposta do Estado se dá principalmente por meio de operações policiais ostensivas, frequentemente acompanhadas de mortes, mas sem mudança duradoura no controle da área.

“Há um padrão que se repete: a polícia entra, produz letalidade, apreende armas, e vai embora. O território continua sob domínio do grupo armado. Não há política pós-operação” analisa Pablo Nunes, coordenador do Observatório da Segurança Pública no Rio de Janeiro. Para ele, a ausência de um plano de ocupação estatal sustentada — com escolas, serviços, urbanismo e justiça — transforma as operações em “eventos”, não em política pública.

Governo federal busca responder

Nesta terça-feira (04/11), o presidente Lula subiu o tom e chamou de “matança” a operação ordenada por Cláudio Castro no Rio de Janeiro. Na tentativa de liderar uma resposta ao problema, o governo federal enviou dois projetos ao Congresso: a PEC da Segurança, que busca melhorar a integração entre as polícias estaduais, e o PL antifacção, o qual prevê aumento de pena para o crime de organização criminosa, dentre outras medidas.

O desafio é romper com uma tradição de pouco diálogo e desconfiança entre as forças de segurança. Enquanto PCC e CV mantêm conexões nacionais e internacionais, as estruturas oficiais permanecem fragmentadas entre União, estados e municípios, com rivalidades institucionais e disputas políticas. “O resultado é que as facções se articulam como uma federação, enquanto o Estado age como ilhas desconectadas”, afirma Roberto Uchôa, pesquisador na Universidade de Coimbra e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Estudos recentes mostram que as duas facções mantêm atuação simultânea em praticamente todos os estados. Hoje, o CV se consolida em rotas fluviais no Norte, enquanto o PCC controla sistemas prisionais do Sudeste e Centro-Oeste. No Nordeste, o Comando Vermelho vem ganhando terreno nos últimos anos — com avanços notáveis no Ceará, Bahia, Rio Grande do Norte e Pernambuco — e já disputa (ou compartilha) mercados com grupos locais e com o PCC. Das 88 organizações criminosas mapeadas no país, pela Secretaria Nacional de Políticas Penais, 46 atuam nos nove estados nordestinos, indicando a região como novo polo de expansão e conflito entre facções nacionais e redes locais.

Presos rebelados no presídio de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte, em 2017
Presos rebelados no presídio de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte, em 2017Foto: picture-alliance/Photoshot/M. Nascimento
Amazônia: soberania nacional em risco?

O caso da Amazônia é especialmente preocupante. Na região, o Brasil faz fronteira com os países que concentram a produção exportada aos mercados globais. CV e PCC construíram alianças pragmáticas com atores armados locais para garantir rota, proteção e escoamento: na tríplice fronteira Brasil–Colômbia–Peru, o Comando Vermelho aparece associado a dissidências das FARC, em especial o Frente Carolina Ramírez, e a redes peruanas como os Comandos de la Frontera (CDF). O Tren de Aragua, organização da Venezuela que é alvo da ofensiva dos EUA na região, mantém conexões com o PCC em Roraima, que envolvem rotas de drogas, armas e migração.

Garimpo ilegal na Amazônia
Garimpo ilegal na AmazôniaFoto: Edmar Barros/AP Photo/picture alliance

Há dois anos, os governos da região criaram uma iniciativa para monitorar e combater o avanço do crime organizado na região de forma conjunta, pela primeira vez. Em outubro, foi inaugurado em Manaus o Centro Internacional de Cooperação Policial da Amazônia, pensado para coordenar ações de investigação financeira, patrulhamento fluvial e operações multipaís contra tráfico de drogas, ouro ilegal e crimes ambientais.

Apesar da importante articulação internacional, a situação no território brasileiro representa uma ameaça à soberania nacional. “Eu temo, não só em termos de segurança pública. Temo enquanto estrutura de país: perder um território daquele, de vez, é ‘um pulo”, avalia Uchôa. “Ainda mais hoje, com o governo dos Estados Unidos querendo tratar tudo como se fosse a mesma bagunça, é um passo para chegar ali e falar que tem que tomar conta do território para botar ordem na casa”, alerta.

Crédito: João Pedro Soares / Deutsche Welle – @ disponível na internet 8/11/2025


As barricadas que dividem um Rio sob crescente poder armado

De entulho empilhado a cancelas, fronteiras impostas por facções e milícias afetam cada vez mais a vida carioca. Organizações criminosas já controlam quase 20% da região metropolitana.

Das profundezas da Zona Oeste para além de Niterói, são 53 os pontos marcados no serviço de mapas do Google como “barricadas” sobre a região metropolitana do Rio de Janeiro. Tão informais quanto pilhas de entulho, ou formais como cancelas privadas, os obstáculos à circulação em vias públicas são uma crescente expressão do poder paralelo exercido pelo tráfico de drogas e a milícia.

O território total destes grupos armados dobrou em 16 anos e já toma quase um quinto da mancha metropolitana, segundo mapeamento do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF). Na percepção de moradores, especialistas e autoridades, os bloqueios fixos ou móveis vêm há anos se tornando mais frequentes. 

Vigas de ferro, automóveis, trilhos, pneus, árvores derrubadas e outros improvisam as barricadas informais que costumam separar favela e asfalto. Para as facções ligadas ao tráfico, elas servem como uma espécie de trincheira contra agentes de segurança do Estado. 

É lá que jovens fortemente armados, não raro, controlam a entrada e saída de automóveis. “A ideia é que a polícia perca tempo no momento de uma incursão, para que o tráfico se reorganize, lideranças possam fugir e armas ou drogas possam ser escondidas,” explica Daniel Hirata, coordenador do Geni/UFF. 

Denúncias em disparada

A Polícia Militar removeu, de janeiro a outubro de 2025, 6,7 toneladas de materiais usados nas barricadas em mais de 3,7 mil pontos ao redor do estado. No ano passado, foram 7,7 toneladas em 6,9 mil pontos.

Já dados citados pela Prefeitura do Rio indicam que uma a cada quatro queixas ao Disque Denúncia sobre a presença de barricadas na cidade vêm de oito bairros na Zona Norte — foram 1.978 denúncias de 2019 a 2024. Quase dois terços delas (1.248) se registraram depois de 2022. Não se levam em conta outros municípios da região metropolitana.

A retirada das trincheiras pela polícia, entretanto, é como “enxugar gelo”, relatam moradores. Rapidamente elas reaparecem nos mesmos lugares.

“Tem piorado bastante. Todo dia as barricadas atrapalham a circulação de moradores e caminhões de lixo. Tem lugar onde carro não passa de jeito nenhum”, contou um residente de Vigário Geral, no foco das barricadas na Zona Norte, à DW.

Para quem cruza pelas trincheiras na vida diária, o roteiro já é conhecido: desligar o farol, baixar o vidro e acender o pisca-alerta. As marcações em aplicativos como Waze e Google Mapas servem para alertar motoristas. “A gente que mora aqui acaba até se acostumando. Tem que seguir as regras deles.”

De 2005 a 2023, o Comando Vermelho e o Terceiro Comando Puro, duas organizações criminosas ligadas ao tráfico de drogas, aumentaram suas áreas no mapa do Geni/UFF em 90% e 80%, respectivamente.

“Urbanização milicializada”

Mas o maior avanço sobre o Grande Rio foi o das milícias, que triplicaram o seu domínio territorial, segundo o mesmo estudo. Os grupos operando na arquitetura miliciana costumam empreender outro tipo de controle armado sobre os seus territórios, com ramificações sobre diversos serviços. 

As suas barreiras são menos rudimentares do que as trincheiras improvisadas pelo tráfico, incluindo o estabelecimento de cancelas e o fechamento de ruas por grupos de vigilância privada, sob a justificativa de manter a segurança. “Quando terminam as barricadas e começam as cancelas?”, questiona Hirata. ” Precisamos de uma definição objetiva.”

Para José Claudio Souza Alves, cientista social da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), a cidade vive dois processos de urbanização – uma milicializada, e outra faccionalizada. 

“Cada grupo vai estabelecer suas barreiras e controles. As facções, que tem menos acesso à estrutura do Estado, incendiam ônibus e usam troncos de árvore. Já as milícias têm fiscalização, botam guarita, cobram taxa de segurança e escondem suas armas,” afirma.

Uma pesquisa Datafolha do início de novembro estimou que, de 4,9 milhões de residentes das áreas sob controle de facções ou milícias no Grande Rio, 18% morem em bairros onde policiais de folga prestam serviço de vigilância.

Barricadas na agenda política

São as barricadas do tráfico que vão virando munição para plataformas políticas endurecidas contra o crime organizado. 

Ao Supremo Tribunal Federal (STF), o governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, disse que a Operação Contenção foi necessária por causa das barricadas do Comando Vermelho próximas a escolas e postos de saúde nos Complexos do Alemão e da Penha. Foi a operação mais letal da história recente do Brasil, com 121 mortos, dos quais quatro eram policiais.

Em fevereiro, a Prefeitura usara o tema das barricadas para solicitar a sua inclusão como amicus curiae (amigo da corte, em latim) na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, conhecida como ADPF das Favelas.

A ação, ajuizada em 2019, questiona a violência policial em operações nas comunidades cariocas e propõe diretrizes para reduzir a sua letalidade.

“A Prefeitura se vê claramente impossibilitada de exercer sua função constitucional de ordenamento do solo urbano e, ainda, de prestar outros serviços essenciais, como a coleta de lixo”, afirmou o pedido do prefeito Eduardo Paes ao STF. Tanto ele quanto Castro já se disseram expressamente contra a arguição. 

Resposta a ultraviolência

Como outros críticos das operações policiais, Souza Alves avalia que o Estado investe numa estratégia barata de contenção do crime organizado. Para ele, as barricadas são também resposta a décadas de incursões ultraviolentas pelo Estado, que produzem até dezenas de mortos em poucas horas.

É esta parte da história de Vigário Geral. Em 1993, uma emblemática chacina resultou em 21 pessoas executadas à queima roupa por policiais militares, em vários pontos da favela no bairro, durante uma madrugada de horror.

“São 32 anos em que ninguém olhou para o bairro, e as pessoas são atacadas com violência policial,” diz, por sua vez, João Serafim, presidente da Associação de Moradores de Vigário Geral. Ele associa a pobreza e a falência do serviço público à expansão do tráfico na região. 

Seis dias antes da Operação Contenção, a Câmara dos Deputados aprovara um projeto de lei que tipifica a obstrução de vias em casos como o das barricadas. O “domínio de cidades” fica previsto como crime hediondo, sujeito a até 30 anos de reclusão. Caberá ao Senado avaliar o texto

Crédito: Heloísa Traiano / Deutsche Welle – @ disponível na internet 8/11/2025

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui