A reforma administrativa em discussão na Câmara dos Deputados — a PEC 38/2025 — propõe um redesenho profundo do regime constitucional das verbas indenizatórias no serviço público. O eixo dessa reformulação está na alínea k do inciso XXIII e nos novos §§ 11-A, 11-B e 11-C do art. 37. Hoje, o § 11 (com redação dada pela EC 135/2024) delimita o campo das indenizações excluídas do teto remuneratório: apenas parcelas expressamente previstas em lei ordinária nacional, aplicável a todos os Poderes e órgãos autônomos, podem ser tratadas como indenizatórias para fins constitucionais. A doutrina consolidou um conceito funcional claro: indenizações são valores destinados a repor despesas necessárias ao exercício das atribuições, possuem caráter eventual, não se incorporam à remuneração e decorrem de fatos específicos — como diárias, ajuda de custo, transporte ou auxílio-moradia.
O texto da PEC 38 amplia e constitucionaliza esse enquadramento, estabelecendo como tais verbas poderão existir e em que condições poderão ser pagas fora do teto. A alínea k veda a criação de quaisquer parcelas remuneratórias ou indenizatórias por atos que não passem pelo Poder Legislativo, reforçando que a definição dessas verbas deve ser obra de lei formal. O novo § 11-A adiciona filtros materiais relevantes: excetuados três auxílios expressamente preservados — alimentação, saúde e transporte, quando vinculados a despesas indispensáveis ao desempenho das atribuições —, todas as demais indenizações da futura lei nacional deverão ser simultaneamente reparatórias e episódicas, sendo vedado o pagamento rotineiro, permanente ou generalizado para a maior parte de uma carreira. A proposta, assim, tenta consolidar em nível constitucional uma concepção mais rígida de verba indenizatória, mas preserva relativa flexibilidade exatamente para esses três auxílios básicos, cuja recorrência decorre do funcionamento regular do serviço público.
Os §§ 11-B e 11-C aprofundam essas restrições ao introduzir limites de natureza individual e orçamentária. Para agentes cuja remuneração ou subsídio esteja próxima do teto — 90% ou mais do limite do inciso XI —, a soma dos auxílios de alimentação, saúde e transporte não poderá ultrapassar 10% da remuneração mensal. Já o § 11-C impõe um teto global de crescimento: em cada exercício, a dotação destinada às indenizações não poderá superar a atualização pelo IPCA, funcionando como um limitador estrutural de expansão dessas despesas.
Em síntese, a PEC redesenha o regime das indenizações em três planos complementares: exigência de lei nacional formal para definição das parcelas; critérios materiais mais estreitos para caracterização de verbas indenizatórias, com exceções restritas; e limites financeiros, tanto no plano individual quanto no agregado orçamentário.
Para compreender o alcance dessas mudanças, é necessário situar o regime das indenizações dentro dos parâmetros constitucionais que lhe dão sentido normativo. Em um plano estruturante, o tema das indenizações toca princípios como legalidade, moralidade e eficiência (art. 37, caput), que pressupõem não transferir ao servidor custos estruturais da prestação estatal. Há também a dimensão da irredutibilidade nominal (art. 37, XV), pois a redução indireta da recomposição de despesas necessárias pode configurar decesso material, ainda que mascarado sob a forma de limitação indenizatória. E subsiste, por fim, o elo entre o valor social do trabalho (art. 1º, IV) e a responsabilidade objetiva do Estado (art. 37, § 6º), que impede que o agente público suporte, de modo permanente, encargos inerentes ao interesse público.
Apesar de afirmar a natureza reparatória das verbas indenizatórias, a PEC 38 não estabelece qualquer garantia efetiva de que as futuras leis nacionais deverão, de fato, ressarcir integralmente as despesas suportadas pelos agentes públicos como condição necessária ao exercício de suas atribuições. A proposta constitucionaliza filtros de caráter restritivo, mas não contém nenhuma regra que assegure a recomposição real do gasto, nem mesmo para os três auxílios preservados (alimentação, saúde e transporte). O resultado é uma arquitetura normativa que intensifica o rigor conceitual, mas — ignorando os parâmetros estruturais que lhe dão sentido — não impõe à lei a contrapartida essencial: garantir o reembolso adequado dos custos que o próprio Estado impõe ao agente público.
Esse desequilíbrio fica ainda mais evidente quando se observam os limites financeiros introduzidos. De um lado, servidores próximos do teto passam a ter seus auxílios essenciais limitados a 10% da remuneração; de outro, toda a despesa indenizatória do ente deve obedecer a um teto de expansão anual. Em ambos os casos, a contenção fiscal é explícita, enquanto a obrigação estatal de custear despesas necessárias — como deslocamentos, alimentação e condições mínimas de saúde laboral — não é reafirmada em nenhum dispositivo. A proposta cria limites para o gasto público, mas não cria limites para a exigência do serviço: o servidor pode, por exemplo, ser enviado em viagem oficial após esgotados os limites orçamentários, produzindo despesas que continuarão sendo suas, e não do Estado, o que esvazia a própria razão de ser de uma verba de natureza indenizatória.
Além disso, a PEC silencia completamente sobre atualização e revisão periódica dos valores indenizatórios, aspecto crucial para garantir que verbas de ressarcimento não se tornem, com o tempo, verbas de perda. A experiência administrativa demonstra que, sem atualização real, diárias, auxílios e compensações deixam de cumprir sua função reparatória, impondo ao servidor custos progressivamente maiores não reembolsados. Essa omissão é significativa: ao mesmo tempo em que restringe a criação, o pagamento e o alcance das indenizações, a proposta não enfrenta o problema concreto da sub-reparação que afeta a imensa maioria dos servidores públicos, que há anos custeiam despesas funcionais com verbas defasadas.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reforça a gravidade desse silêncio normativo. Embora a Corte não admita a indexação automática de verbas remuneratórias ou indenizatórias, afirma reiteradamente que a falta de atualização real é, por si só, inconstitucional quando acarreta perda do valor devido. No Tema 810 (RE 870.947), o Tribunal declarou que a TR é inválida porque não recompõe a inflação, violando o direito de propriedade — e essa tese foi estendida a obrigações públicas de natureza indenizatória. No RE 1.484.921/RS (2024), o STF voltou a afirmar que a adoção da TR em pagamentos administrativos a servidores resulta em “acentuada desvalorização”, representando benefício ilegítimo ao Estado e violação ao direito fundamental de receber valor real. Decisões como a Rcl 30.636/DF (2024) e o ARE 638.195/RS (2013) reiteram que a correção monetária é consectário obrigatório da obrigação estatal, exatamente para impedir decesso decorrente da inflação.
A partir desses precedentes — todos vinculados à natureza reparatória das obrigações estatais — resulta evidente que a ausência completa de atualização das verbas indenizatórias produz, na prática, o mesmo vício que o STF já reconheceu como inconstitucional: transformar uma obrigação de recomposição em instrumento de perda real para o agente público. Se nenhuma atualização é prevista, o efeito é mais grave que o uso de índice inadequado: gera-se um decesso contínuo e progressivo, incompatível com a lógica constitucional da reparação e com o entendimento reiterado da Suprema Corte.
Há um último elemento que merece destaque. Ao mesmo tempo em que a PEC 38 antecipa — no próprio texto constitucional — conteúdos que deveriam ser deixados à futura lei nacional prevista no § 11, ela também restringe de forma intensa a autonomia dos entes subnacionais para regular indenizações que, por sua natureza, estão profundamente vinculadas a custos e realidades locais. A centralização integral da matéria em uma lei única, combinada com a constitucionalização prévia de requisitos rígidos (§§ 11-A, 11-B e 11-C), reduz a margem de conformação dos Estados e municípios para ajustar indenizações a despesas efetivas de transporte, deslocamento, moradia ou condições regionais de prestação do serviço, tensionando os arts. 18, 25, caput, e 39, § 1º da Constituição. Ao inscrever na Constituição filtros materiais que deveriam ser objeto de debate legislativo ordinário, a PEC não apenas antecipa o conteúdo da lei nacional; ela a esvazia. Quando a lei vier, estará praticamente limitada a replicar parâmetros já fechados pela Constituição, convertendo o § 11 em cláusula quase simbólica e engessando, desde logo, um sistema que deveria ser adaptável à diversidade federativa e às especificidades de cada carreira e território. O resultado é um duplo estreitamento, pois reduz o espaço federativo e, simultaneamente, fecha o processo legislativo antes mesmo que ele se inicie.
Desse conjunto emerge uma conclusão: embora apresentada como instrumento de racionalização e correção de distorções, a reforma proposta tende a acentuar problemas já conhecidos — como a sub-reparação crônica e a transferência silenciosa de custos ao servidor —, sem oferecer mecanismos de recomposição efetiva ou de adaptação às desigualdades regionais. Em lugar de fortalecer o regime indenizatório e aprimorar sua governança, a PEC o estreita em múltiplas frentes, privilegiando o objetivo fiscal sobre a natureza reparatória dessas parcelas. A modernização prometida converte-se em um sistema mais rígido, menos aderente às realidades administrativas e menos capaz de impedir que o desempenho do serviço público recaia, de forma crescente, sobre o patrimônio pessoal dos agentes que o executam.
Crédito: Jean Ruzzarin / JOTA – @ disponível na internet 4/12/2025













