Sociólogo com graduação na Universidade Federal do Paraná (UFPR), coordenador do Fórum das Centrais Sindicais, integrante do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Sustentável (CDESS) e enviado especial na área de trabalho na COP 30, Clemente Ganz Lúcio é o entrevistado do mês de setembro do Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS).
A entrevista destaca aspectos da agenda do movimento sindical na atualidade, entre eles a redução da jornada de trabalho e o fim da escala 6×1, a política de valorização do salário mínimo e a correção da tabela do Imposto de Renda; e aborda os desafios do movimento sindical diante das profundas transformações no mundo do trabalho, o que, na avaliação do consultor sindical, implica na reorganização da pauta dos sindicatos e das formas de mobilização.

Sociólogo formado pela PUC-SP, é coordenador do Fórum das Centrais Sindicais, membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDESS) e do Conselho Deliberativo da Oxfam Brasil. Foi diretor técnico do DIEESE entre 2004 e 2020. Tem longa trajetória na defesa dos direitos dos trabalhadores, do desenvolvimento sustentável e da justiça social.
O ex-diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), que coordenou o GT Trabalho na equipe de transição do governo Lula/Alckmin, também aponta caminhos frente ao aumento significativo de doenças ocupacionais, ressaltando a importância da priorização da saúde e da segurança no trabalho. Outro tema central da entrevista são as políticas e mecanismos necessários para garantia de direitos em um cenário marcado por novas formas de inserção no mundo do trabalho, muitas delas mediadas por plataforma digitais – “todas elas, ou a grande maioria delas, sem proteção social, sem proteção previdenciária, sem proteção trabalhista e sem proteção sindical, conformando um grande contingente […] que está desprotegido em todas essas dimensões”. Ganz Lúcio enfatiza: “É importante que nós consideremos que em todas essas situações [trabalhador autônomo, empreendedor ou plataformizado] há uma relação de trabalho e essa relação de trabalho precisa ser protegida do ponto de vista dos direitos trabalhistas, da Previdência e do direito sindical”. Boa leitura!
Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS): Você tem destacado que o Brasil vive um processo de “grandes transições” (tecnológica, climática, demográfica e geopolítica). Nesse contexto, quais estratégias são necessárias para que estas transições não intensifiquem as desigualdades no mundo do trabalho e constituam oportunidades de justiça social?
Clemente Ganz Lúcio: Estão em curso profundas mudanças no mundo do trabalho decorrentes de grandes transições: a transição da emergência climática, trazendo desafios do ponto de vista ambiental; a transição demográfica, na qual a sociedade envelhece e ao mesmo tempo tem menos filhos; a transição geopolítica, com os impactos do tarifaço e o reposicionamento das empresas ao longo dos territórios no planeta; a transição da democracia, com novas formas de participação e de pressão política; e a transição tecnológica, que traz desafios do ponto de vista da inovação, da inteligência artificial, da robótica, e assim por diante. Tudo isso atinge o mundo do trabalho de maneira muito extensa em relação ao número de postos de trabalho, destruindo postos e criando novas ocupações, muitas delas extremamente precárias, vulneráveis, flexíveis e inseguras, sem proteção trabalhista, previdenciária e sindical.
O grande desafio do movimento sindical é compreender qual é a tendência que essas transições trazem para o mundo do trabalho, colocar esses elementos como elementos críticos para formular a estratégia sindical e trazer os trabalhadores e as trabalhadoras para a formulação da pauta. Portanto, [compreender] quais são as demandas, as reivindicações e as propostas diante dessas profundas transformações e transformar isso em processo de organização sindical capaz de manifestar e demonstrar o interesse dos trabalhadores e das trabalhadoras em relação a cada uma das pautas que estão relacionadas a essas grandes transições.
Há também, evidente, o preparo para as negociações coletivas e a elaboração de propostas do ponto de vista dos direitos trabalhistas, da proteção previdenciária e da condição da saúde e segurança no trabalho. Tudo isso implica, portanto, em uma reorganização da pauta sindical, uma reorganização da forma de mobilização e pensar a organização sindical a partir dessas novas condições de trabalho.
Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS): Segundo dados do Ministério da Previdência Social, em 2024 mais de 440 mil trabalhadores e trabalhadoras se afastaram de suas funções por transtornos mentais e comportamentais no Brasil – um aumento de 67% em comparação a 2023. Qual o papel das políticas de distribuição de renda para enfrentamento desse quadro?
Clemente Ganz Lúcio: As grandes transições que ocorrem no mundo do trabalho, especialmente aquelas decorrentes da emergência climática e da transição tecnológica, têm impactado de forma muito severa as condições de trabalho, aumentando a pressão, com novas formas de gestão e de coerção do trabalhador e da trabalhadora no seu posto de trabalho. [Também], o desafio das metas, da produtividade, da escala do trabalho, das jornadas cada vez mais extensas, especialmente daqueles trabalhadores fora do sistema de proteção formal da legislação trabalhista. Tudo isso tem aumentado de maneira muito expressiva as doenças psicossociais, os transtornos mentais, que têm impactado a condição de vida e a condição de trabalho de milhões de trabalhadores e trabalhadoras em todo o planeta.
Os estudos mostram o aumento significativo das doenças ocupacionais decorrentes dessas formas de pressão sobre o mundo do trabalho. E isso tem colocado um desafio muito importante para o movimento sindical. Primeiro, colocar a questão da saúde e segurança no trabalho como uma pauta prioritária; destacar quais são as pautas que os trabalhadores e as trabalhadoras apresentam para enfrentar essa situação; promover estudos capazes de compreender os impactos que essas condições de trabalho têm sobre a condição de vida e de saúde do trabalhador e da trabalhadora; e propor medidas que façam a reversão dessa condição de trabalho. Atuar no sentido de alterar as condições que exercem essa pressão e, portanto, provocam esse tipo de transtorno, esse problema em termos de saúde e segurança.
“Os estudos mostram o aumento significativo das doenças ocupacionais decorrentes dessas formas de pressão sobre o mundo do trabalho. E isso tem colocado um desafio muito importante para o movimento sindical”
Esse é um grande desafio. Evidente que se isso tudo for enfrentado de maneira adequada, nós poderíamos ter uma nova agenda sindical se conformando, se estruturando, que terá impacto sobre as condições de trabalho, as condições salariais, a redução da jornada de trabalho, as melhores formas de remuneração, a qualidade do emprego.
Tudo isso poderá ter um impacto positivo sobre essa condição de saúde, melhorando, portanto, o ambiente de trabalho e também a condição de vida dos trabalhadores e das trabalhadoras.
Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS): Diante do crescimento de novas formas de trabalho, como plataformas digitais e empreendedorismo individual, que modelo de proteção social você enxerga como necessário para que esses trabalhadores e trabalhadoras tenham seus direitos garantidos?
Clemente Ganz Lúcio: As novas tecnologias têm ampliado a possibilidade de novas formas de inserção no mundo do trabalho, especialmente o trabalho mediado por plataforma digitais, que tem gerado inúmeras formas de ocupação e de inserção na vida laboral, saindo daquela vertente estruturante do assalariamento com carteira de trabalho. Portanto, trabalho autônomo, por conta própria, empreendedorismo, todo o trabalho plataformizado, têm gerado novas formas de ocupação, todas elas, ou a grande maioria delas, sem proteção social, sem proteção previdenciária, sem proteção trabalhista e sem proteção sindical, conformando um grande contingente – hoje quase metade da força de trabalho no Brasil – que está desprotegido em todas essas dimensões. E o que nós temos como desafio é imaginar, do ponto de vista da criação, quais são as políticas e os mecanismos que estenderão a esses trabalhadores e trabalhadoras os direitos equivalentes a um trabalhador assalariado com carteira de trabalho assinada.
Um trabalhador empreendedor individual, autônomo por conta própria, trabalhador em plataforma digital, deve ter os mesmos direitos ou direitos equivalentes a um trabalhador que tem carteira de trabalho assinada, como piso salarial, jornada de trabalho, direito a afastamento diante de um problema de saúde ou da gravidez, direito a aposentadoria e outros benefícios que são clássicos de um processo de distribuição da renda e da riqueza gerada pelo trabalho que todos realizam. E políticas públicas que sejam capazes de atender todos os trabalhadores e todas as trabalhadoras no momento do afastamento, como seguro-desemprego ou um mecanismo equivalente, e a proteção da renda na aposentadoria, diante de algum infortúnio no trabalho ou da maternidade.
“Um trabalhador empreendedor individual, autônomo por conta própria, trabalhador em plataforma digital, deve ter os mesmos direitos ou direitos equivalentes a um trabalhador que tem carteira de trabalho assinada”
Isso tudo são criações que precisarão ser feitas daqui para frente, compreendendo que essas formas de ocupação estão muito mais presentes e estruturadas nesse mercado de trabalho diverso, o que exige, portanto, uma resposta para atender as mesmas expectativas dos trabalhadores e das trabalhadoras, que é ter boas condições de trabalho e as proteções correspondentes e adequadas.
Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS): Em suas análises, você argumenta que o desafio em torno da reforma trabalhista aprovada em 2017 vai além de sua revogação, passando pela necessidade de construção de uma regulação atenta aos desafios do cenário atual. Quais princípios devem guiar essa nova regulamentação?
Clemente Ganz Lúcio: A reforma trabalhista, na verdade, uma destruição do direito do trabalho feita em 2017, flexibilizou formas de contratação, jornada de trabalho, fragilizou o movimento sindical, diminuiu o poder de negociação coletiva, tudo isso na linha de uma flexibilização que gerou maior desproteção, maior afastamento das proteções trabalhistas, previdenciárias, sociais e sindicais.
O grande desafio é olhar, em um contexto de mudanças no mundo do trabalho, de que maneira nós vamos gerar, para essas novas formas de ocupação e de presença no trabalho, as proteções equivalentes àquelas dos trabalhadores que estão no setor público e no setor privado com as proteções previdenciárias, trabalhistas, sindical, efetivas no seu dia a dia.
Ao mesmo tempo, ter condições de criar uma forma de organização sindical que permita que esses trabalhadores que não são assalariados clássicos, mas têm uma demanda, uma pauta, desejam ter uma organização sindical, possam fazê-lo de maneira inovadora. E, a partir dessa organização sindical, apresentar suas reivindicações em termos salariais, de saúde e segurança, condições de trabalho, jornada de trabalho, piso salarial, e isso tudo se transformar numa ação sindical que possa, de um lado, regular por meio das políticas públicas, com instrumentos capazes de gerar proteção a todos esses trabalhadores e trabalhadoras, e de outro, uma organização que represente os interesses desses trabalhadores diante das empresas e organizações com os quais eles se relacionam de maneira autônoma, por conta própria, como empreendedor ou como um trabalhador plataformizado.
É importante que nós consideremos que em todas essas situações há uma relação de trabalho e essa relação de trabalho precisa ser protegida do ponto de vista dos direitos trabalhistas, da Previdência e do direito sindical. Temos que criar essas formas, esse é o grande desafio, essa é a grande agenda que o movimento sindical tem daqui para frente.
“É importante que nós consideremos que em todas essas situações [trabalhador autônomo, empreendedor ou plataformizado] há uma relação de trabalho e essa relação de trabalho precisa ser protegida do ponto de vista dos direitos trabalhistas, da Previdência e do direito sindical”
Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS): A pandemia de Covid-19 escancarou as desigualdades no mundo do trabalho. Quais lições o sindicalismo brasileiro pode tirar desse período? Você percebe uma renovação das estratégias sindicais para enfrentar os novos desafios e transformações?
Clemente Ganz Lúcio: As desigualdades se agravaram de fato a partir da coroa da crise sanitária da Covid-19 porque ela explicitou as perversas condições de trabalho, e na verdade ajudou a expandir, do ponto de vista da condição de trabalho, as novas formas mediadas por plataformas e aplicativos, o que ampliou a presença no mundo do trabalho de maneira flexível, sem as proteção adequadas. Isso amplia a desproteção, a vulnerabilidade, as desigualdades, e o que o movimento sindical vem fazendo é procurar estabelecer as agendas que permitam fazer esse enfrentamento.
Por exemplo, de um lado, o movimento sindical, no novo governo do presidente Lula, recolocou a política de valorização do salário mínimo, permitindo o crescimento acima da inflação, portanto, com aumentos reais, e o salário mínimo é um grande instrumento na redução das desigualdades econômicas a partir do mundo do trabalho.
A outra demanda apresentada pelas centrais foi termos uma correção da tabela do Imposto de Renda, fazendo com que uma parcela cada vez maior dos trabalhadores e trabalhadoras tivesse isenção na contribuição. O projeto que está no Congresso Nacional que isenta a contribuição do Imposto de Renda [para quem recebe] até R$ 5 mil é uma proposta que as centrais apresentaram e tem um impacto importante do ponto de vista da redução da desigualdade e da justiça tributária.
Há outras pautas como, por exemplo, a redução da jornada de trabalho e o fim da escala 6×1, que tem um impacto importante sobre a vida dos trabalhadores e das trabalhadoras, propiciando melhores condições para que eles possam desenvolver outras dimensões da sua vida, seja no convívio familiar, seja na formação, na cultura, no lazer, e assim por diante.
As pautas que o movimento sindical tem apresentado para redução das desigualdades são inúmeras, entre elas as políticas de transferência de renda, a melhoria no padrão e na política do Bolsa Família, que foi reestruturado também com uma proposta apresentada pelas centrais. A política que agora também está em implementação e que precisa ganhar cada vez mais presença na agenda sindical, a igualdade salarial entre homens e mulheres, e tantas outras propostas que as centrais sindicais têm apresentado ao governo e levado para as negociações coletivas.
Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS): O fim da escala 6X1 ocupou um lugar de destaque no debate público recentemente, mobilizando diversos segmentos e ganhando repercussão nas redes sociais. De que forma o tema pode ajudar o movimento sindical a reinventar sua atuação diante de novas questões e necessidades? Por outro lado, como os sindicatos podem contribuir para o avanço dessa pauta?
Clemente Ganz Lúcio: O sindicalismo no Brasil tem como pauta a redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais sem redução de salário e também o fim da escala 6×1, que é uma forma de organização da jornada, propondo, no mínimo, uma escala 5×2: 5 dias de trabalho, 2 dias de descanso. Esse é um assunto que está em debate no Congresso Nacional (na Câmara dos Deputados e no Senado Federal). O movimento sindical tem atuado no sentido do convencimento dos parlamentares sobre a importância de termos o projeto de redução da jornada de trabalho e do fim da escala 6×1 aprovado; de outro lado, a agenda se faz presente também nas negociações coletivas.
“O movimento sindical tem atuado no sentido do convencimento dos parlamentares sobre a importância de termos o projeto de redução da jornada de trabalho e do fim da escala 6×1 aprovado”
Em muitas negociações coletivas, a redução da jornada de trabalho já foi tratada e reduzida, muitas categorias trabalham com jornada de 40 horas semanais. Muitas reorganizaram sua escala de trabalho para uma escala 5×2. Há também uma escala de trabalho do home office, o telepresencial.
Portanto, essa agenda também se faz presente nas negociações coletivas e tudo isso contribui para que essa pauta avance, seja na negociação coletiva, seja na negociação de um projeto de lei que normatize, do ponto de vista legislativo, o limite da jornada de trabalho que o movimento sindical propõe.
Crédito: Inês Costal e Patrícia Conceição / Observatório de Análise Política em Saúde – @ disponível na internet 2/10/2025