O status do Brasil como exportador de produtos de carne de qualidade passou a ser ameaçado nesta sexta-feira depois que a Polícia Federal revelou um esquema de propina que identificou casos que permitiram a comercialização de alimentos estragados e maquiados por insumos como papelão e produtos químicos.
A operação Carne Fraca, a maior já realizada pela Polícia Federal, identificou uma organização criminosa liderada por fiscais agropecuários federais e cerca de 40 empresas. A PF citou entre as empresas as gigantes JBS e BRF e outras como Peccin Agro Industrial.
“Nunca vimos nada parecido antes no setor. Em termos de escândalo, nunca aconteceu nada semelhante. É a primeira vez que se identifica e se dá nome às pessoas. Isso é horripilante”, disse Alex Lopes da Silva, analista especializado no mercado pecuário da Scot Consultoria.
“É uma denúncia bastante grave. Tem órgãos federais de fiscalização sendo corrompidos, isso abre muita possibilidade para o Brasil sofrer algum tipo de impacto… Mancha todo um sistema que o Brasil está construindo há anos de que tem um processo de produto bem feito”, afirmou Silva.
O Brasil começou a exportar carne para a Europa no início dos anos 2000 e apenas no ano passado conseguiu aprovação para embarcar carne bovina in natura aos Estados Unidos, um dos mercados mais exigentes do mundo em termos de qualidade de produtos alimentícios.
As exportações de carnes do Brasil (bovina, suína e de frango) subiram de cerca de 2 bilhões de dólares em 2000 para aproximadamente 14 bilhões de dólares no ano passado.
O analista de pecuária do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Esalq/USP, Sérgio De Zen, foi na mesma linha, apostando que o escândalo poderá ser aproveitado para imposição de dificuldades às exportações brasileiras de carne.
“Vai ter países aproveitando? Vai. Mas o impacto disso não vai ser tão grande como seria se eles descobrissem lá fora o problema. Quem está apontando o problema é o Brasil”, disse De Zen.
Na avaliação de De Zen, eventuais embargos externos à carne brasileira deverão ser por curto espaço de tempo. Ele lembrou que importantes importadores, como europeus e russos, mandam missões próprias para fiscalizar o sistema sanitário do Brasil, o que faz com que grandes unidades exportadoras eventualmente fiquem menos sujeitas a sofrer embargos.
“O importador mais exigente geralmente manda fiscalização aqui, ele não aceita qualquer coisa, ele fiscaliza antes de começar a importação, é um processo diferenciado”, acrescentou, defendendo uma reformulação do sistema de fiscalização sanitária do Brasil e a criação de uma agência independente de fiscalização.
Além do impacto para o setor carnes, a operação da PF poderá ter repercussões nos preços dos grãos, afirmou o presidente da AEB, associação que reúne os exportadores brasileiros, José Augusto Castro.
Segundo ele, produtos como milho e soja, com forte presença na pauta exportadora brasileira, devem ter uma redução de preços no mercado global, na avaliação do dirigente.
“Se o Brasil reduzir a quantidade (de carne) exportada, principalmente o frango que consome muita ração, vamos deixar de transformar soja e milho em farelo; vai ter que colocar isso no mercado externo e com oferta maior isso pode derrubar o preço (dos grãos)”.
As ações de JBS e BRF despencaram nesta sexta-feira e lideraram as perdas do Ibovespa. A JBS afundou 10,59 por cento, maior queda desde outubro de 2016. BRF desabou 7,25 por cento, pior desempenho desde fevereiro. Também do setor, Marfrig; e Minerva, caíram cerca de 2 por cento cada.
A BRF informou em comunicado ao mercado que “cumpre as normas e regulamentos referentes à produção e comercialização de seus produtos, possui rigorosos processos e controles e não compactua com práticas ilícitas. A BRF assegura a qualidade e a segurança de seus produtos e garante que não há nenhum risco para seus consumidores, seja no Brasil ou nos mais de 150 países em que atua”.
Já a JBS afirmou também em comunicado divulgado mais cedo que a empresa e suas subsidiárias “atuam em absoluto cumprimento de todas as normas regulatórias em relação à produção e à comercialização de alimentos no país e no exterior e apoia as ações que visam punir o descumprimento de tais normas”. A empresa divulgou um novo comunicado na noite desta sexta-feira, afirmando que “nenhuma fábrica da JBS foi interditada (…) A JBS não compactua com desvios de conduta e tomará todas as medidas cabíveis”.
Ligações feitas pela Reuters à Peccin não foram atendidas.
NO BRASIL
Internamente, as empresas denunciadas devem sofrer impactos importantes sobre suas marcas, com a confiança dos consumidores sendo abalada pela divulgação de gravações em que representantes de frigoríficos conversam sobre inclusão de carne de cabeça de porco em linguiças.
“No segmento alimentar, confiança é algo que vem no inconsciente desde pequeno, dentro da família (…) Se tem desconfiança tão grande com comida, e nessas marcas o problema aparentemente existe, imagina o resgate de confiança que isso não vai demandar”, afirmou o professor do curso de Publicidade e Propaganda da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), Sérgio Silva, especializado em marcas.
Segundo ele, é difícil precisar o tamanho do impacto financeiro para as empresas do setor gerado pelo escândalo, “mas vai ser gigante”.
“O varejista vai se preocupar, tem risco de o varejista querer tirar tudo o que é da marca e fazer o fabricante recomprar. Além dos supermercados, há ainda as cadeias de fast food, restaurantes, tem impacto na cadeia inteira”, disse Silva, lembrando de casos como os que atingiram a marca de leite de soja AdeS, hoje da Coca-Cola Femsa, em 2013. Na ocasião, lotes tiveram de ser retirados do mercado, depois que a empresa identificou na bebida produto de limpeza que podia causar queimaduras.
Para Luli Radfahrer, professor-doutor da ECA-USP e ex-diretor de criação de várias grandes agências de publicidade, como AlmapBBDO, a melhor solução para as empresas envolvidas no escândalo seria mudar suas marcas.
“Os eventos são muito gráficos… sujeito que ouviu uma vez na vida, nunca mais vai esquecer e sempre vai associar”, afirmou Radfahe, acrescentando que não há propaganda que salve o impacto sobre os produtos.
Assim, como Silva, da FAAP, Radfahrer acredita que há riscos de distribuidores virem a público para dizerem que não aceitam as marcas envolvidas no escândalo em suas prateleiras.
A rede de varejo GPA afirmou em comunicado que os lotes de produtos in natura de fornecedores recebidos em suas centrais de distribuição passam por processos internos próprios de auditoria e que “qualquer tipo de irregularidade, se identificada, resulta na devolução imediata do lote ao fornecedor”.
Já o Carrefour comentou que a rede já exigiu esclarecimento aos fabricantes envolvidos nas denúncias e que possui controle rigoroso para seleção e monitoramento de seus fornecedores. O Walmart afirmou que confia plenamente em seus procedimentos internos de segurança dos alimentos e que está cobrando explicações dos fornecedores.
Segundo o secretário-executivo do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Eumar Novacki, foram interditadas as unidades da BRF em Mineiros (GO) e da Peccin em Jaraguá do Sul (SC) e Curitiba.
Crédito: Alberto Alerigi Jr., Roberto Samora e Paula Arend Lai com reportagem adicional de Eduardo Simões, em São Paulo, e Rodrigo Viga Gaier, no Rio de Janeiro/Reuters Brasil – disponível na internet 18/03/2017