“Deus abençoe o Rio”: há seis meses no cargo, Crivella enfrenta críticas por cortes e diz que trabalho da prefeitura é “redentor”.

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O prefeito Marcelo Crivella completa seis meses na prefeitura do Rio de Janeiro sem ter implementado medidas expressivas nem imprimido uma marca forte em sua gestão, e enfrenta um período de fortes críticas após polêmicas ligadas a corte de recursos para o Carnaval e ao caos na cidade com as chuvas de junho.

Desde o início de seu governo, o prefeito vem enfatizando a necessidade de apertar os cintos diante das dificuldades financeiras do município, que enfrenta uma “crise tremenda”, como afirmou nesta semana a jornalistas.

“Ninguém queria estar passando pela situação que estamos agora”, afirmou Crivella. “Eu nem culpo o prefeito anterior (Eduardo Paes). Ele foi tomado pela euforia do momento! O governo federal também. Gastou-se muito mais do que imaginávamos, e sem sustentabilidade. À frente viria uma crise pesada, e nós não estávamos preparados para ela.”

O perfil e o estilo de Crivella – bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus e eleito prefeito pelo Partido Republicano Brasileiro (PRB) – não poderia ser mais diferente que o de seu antecessor, Eduardo Paes, que governou a cidade durante oito anos pelo PMDB

Paes, chamado de “fanfarrão” por críticos, se gabava de ter “o melhor emprego do mundo” – o de prefeito do Rio Olímpico – e colocava chapéu de sambista no carnaval, casaco de chuva para acompanhar enchentes, estava em todos os eventos.

O ex-prefeito chegou a assinar um decreto determinando que “Cidade maravilhosa” – o hino da cidade, que exalta um Rio de Janeiro “cheio de encantos mil” – passasse a ser cantado nas escolas municipais toda semana.

Já a trilha sonora de Crivella tem sido “Deus abençoe o Rio de Janeiro”, canção de sua autoria que frequentemente toca nos eventos a que comparece. Crivella, o cantor gospel, pede que Deus “tome conta” da cidade, “mostre o caminho para a gente”, e exalta um Rio “tão lindo” onde o sol “nasce sorrindo”.

Embora tenha prometido não misturar religião com política durante a campanha de 2016, suas crenças religiosas vêm permeando suas aparições públicas, onde não raro reza um Pai Nosso – como fez quando ganhou as eleições – ou cita parábolas bíblicas.

Nesta semana, reviveu os tempos de cantar gospel em um sessão solene realizada no Congresso para comemorar os 40 anos da Igreja Universal do Reino de Deus cantando o hino da igreja – outra composição sua – diante de parlamentares e fiéis.

Crivella com Clarissa Garotinho e o membros da Defensoria públicaDireito de imagemBBC BRASIL
Image captionNomeação de filho de Crivella como secretário da Casa Civil é disputada no Supremo Tribunal Federal

‘Cuidar das pessoas’

Após candidaturas ao governo do Rio em 2006 e à prefeitura, em 2008, Crivella foi eleito prefeito da capital carioca no segundo turno de 2016, com 1,7 milhão de votos, ou 59% dos votos válidos, superando o candidato do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Marcelo Freixo.

A vitória o confirmou como principal representante político da Igreja Universal do Reino de Deus, fundada por seu tio, Edir Macedo, dono da Rede Record. Antes, Crivella fora senador durante dois mandatos e Ministro da Pesca e Aquicultura durante o governo Dilma Rousseff.

Ao fazer um balanço de seus seis meses na prefeitura, repete o bordão de sua campanha: “O rumo da minha administração na prefeitura é cuidar das pessoas. Estamos priorizando saúde, educação, colocar cada um dos serviços públicos para funcionar adequadamente. No passado a gente priorizou o quê? Eventos, obras, transporte, coisas do tipo”, diz, distanciando-se das prioridades do governo Paes.

“Agora não. Como os recursos são pequenos, estamos priorizando nossas crianças, a creche, a fila de doentes… O rumo vai ser esse do princípio ao fim. Cuidar das pessoas.”

Cortes e impostos

Nos últimos seis meses, Crivella envolveu-se em polêmicas, como a nomeação de seu filho, Marcelo Hodge Crivella, como secretário da Casa Civil. A medida está sendo disputada no Supremo Tribunal Federal e aguarda voto pelo plenário para avaliar se o caso configura nepotismo.

Nos bastidores, o fato de o prefeito ainda não ter um nome definitivo na Casa Civil nem um Secretário de Governo gera questionamentos, já que ambos os cargos são chave para a articulação de apoio com vereadores e outros setores.

O prefeito ainda não submeteu grandes projetos à Câmara dos Vereadores, mas vem implementando cortes polêmicos em diversas áreas. Uma de suas primeiras medidas foi exonerar centenas de servidores em cargos comissionados, gerando uma grande confusão nos primeiros meses até que todas as gerências fossem substituídas.

Nesta semana, mais um corte anunciado causou controvérsia: a prefeitura anunciou que não vai honrar os pagamentos do Programa de Fomento às Artes 2016.

No ano passado, o principal mecanismo de fomento à cultura do município havia selecionado e confirmado o patrocínio para mais de 200 projetos, com investimento total de R$ 25 milhões. Mas, no fim do ano, o governo Paes afirmou que não poderia pagar porque a receita do município havia sido menor que o esperado, deixando a conta para seu sucessor – que agora confirmou que não honraria os projetos premiados.

Membros de escolas de samba protestam contra corte anunciado por Crivella em 26 de junhoDireito de imagemAFP
Image captionCorte em repasses da prefeitura para escolas de samba causou controvérsia e protestos contra o prefeito

O vereador Tarcísio Motta (PSOL), que estava fazendo pressão pelo pagamento, diz que prefeitura “consolida o calote” e tomou uma “lamentável decisão”, recebida como sinal de retrocesso pelo meio artístico.

O prefeito agora corre para aprovar a revisão do pagamento do IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) em toda a cidade, uma de suas prioridades para aumentar a arrecadação municipal. A medida pretende reduzir a parcela da população que não paga o imposto – cerca de 70% – e corrigir a planta de valores, que não é atualizada desde 1997.

A perspectiva de aumento de impostos em tempos de crise tem gerado polêmica. Aprovar a medida vai ser o primeiro desafio de Crivella na Câmara dos Vereadores, onde tem uma base de apoio frágil, com apenas 17 vereadores (de 51).

“Ele tomou essas medidas de impacto, o corte de recursos para o carnaval e a revisão do IPTU, de forma atabalhoada, sem promover um debate junto à sociedade”, critica Tarcísio Motta.

“Muitos compartilham a opinião de que Crivella ainda não começou o governo de fato. Seis meses depois da posse, ele ainda não tem um projeto para a cidade do Rio de Janeiro.”

‘Reorganizando a casa’

Enquanto isso, vão sendo aprovadas medidas pontuais. Crivella declarou os táxis municipais “patrimônio cultural do Rio” e lançou um aplicativo de táxi da prefeitura para fazer frente ao Uber; bateu de frente com as poderosas empresas de ônibus do Rio para impedir novo reajuste nas tarifas; aprovou mudanças na Guarda Municipal, que vai passar a ter o direito de usar armamentos não-letais, motocicletas e fazer patrulhamento; e imprimiu mudanças no foco do Centro de Operações Rio, que centraliza o controle de serviços de segurança e ordem pública.

Para Tarcísio Motta, essas últimas duas medidas refletem “uma obsessão pelo assunto da segurança”.

“As mudanças na Guarda Municipal aprofundam a ideia de que ele quer transformá-la em uma polícia municipal, ao mesmo tempo em que mudou o perfil do Centro de Operações, passando a cuidar mais da segurança em vez de olhar para prevenção, trânsito, desastres urbanos”, lamenta o vereador.

Para o economista Bruno Sobral, professor de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), ainda é cedo para avaliar a gestão de Crivella, já que este primeiro momento está sendo dedicado a “organizar a casa”, diante de uma “conjuntura financeira complicada”.

Ele considera haver uma predisposição de crítica a Crivella por parte da classe média por ele ser um prefeito evangélico, e também por parte da mídia.

“A nova gestão precisa criar uma marca, e ter recursos para implementar políticas públicas. Mas está com dificuldades, porque apesar de (o ex-prefeito Eduardo) Paes ter julgado que fez uma ótima gestão, ele deixou uma série de dívidas a serem pagas agora”, diz o economista.

“Crivella tem que pagar essa conta e, ao mesmo tempo, enfrenta uma queda de arrecadação cada vez pior e um problema social imenso, com o aumento do desemprego, do número de moradores de rua e dos indicadores de violência.”

Crivella com membros da primeira turma do projeto Resgate no Rio de JaneiroDireito de imagemBBC BRASIL
Image captionPrefeito diz que prioridade da gestão é “cuidar das pessoas”, mas é cobrado por cortes polêmicos de verbas de serviços públicos

Crise fiscal

Ao assumir a prefeitura, Crivella diz que encontrou R$ 800 milhões em caixa, mas que as projeções de compromissos com fornecedores para os meses seguintes chegavam a R$ 1,1 bilhão e dívidas assumidas com o BNDES chegavam a R$ 1,5 bilhão. Estas acabaram de ser renegociadas, gerando alívio para os cofres públicos – ao menos por ora.

A situação piora com a grave crise financeira enfrentada pelo governo do Estado do Rio. Nos cofres estaduais, o buraco é bem mais fundo, e isso tem impacto sobre a cidade, diz Sobral. Ele próprio conta estar sem receber quase quatro salários devido aos atrasos de pagamentos de servidores da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)

Outros economistas, no entanto, relativizam o cenário de penúria desenhado por Crivella.

“Hoje a situação não está um mar de rosas para o município por conta dos problemas que o país está enfrentando. É um momento de recessão e escassez de recursos, e é preciso prudência para gerir os gastos. Mas a prefeitura não está em situação tão crítica”, considera Vilma Pinto, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV).

O prefeito anunciou uma série de medidas de contenção – inclusive o polêmico corte dos recursos para o carnaval carioca. Cada agremiação deverá ter os repasses da prefeitura reduzidos em 50%, ou R$ 1 milhão por escola, em 2018.

A medida deixou as escolas furiosas, ainda mais depois de terem apoiado a candidatura de Crivella – que foi o primeiro prefeito em décadas a não comparecer aos desfiles no Sambódromo, não tendo sequer cumprido o tradicional ritual de entregar as chaves da cidade ao Rei Momo.

Críticos veem motivações religiosas por trás do corte de recursos, que atingirão não apenas a festa em fevereiro como também as tradicionais paradas LGBT do Rio – a de Madureira, em julho, e de Copacabana, em outubro. Crivella nega e diz que se reunirá novamente com as agremiações para buscar soluções. “O importante é que vai ter carnaval”, afirma.

Poucos dias após a polêmica, porém, uma chuva de proporções bíblicas caiu sobre o Rio, gerando alagamentos em mais de 22 bairros e parando a cidade.

Constatou-se que o Centro de Operações não emitira alertas prévios sobre a chuva e que Crivella cortara recursos para a limpar bueiros e escoar as águas.

Sua declaração sobre o temporal – afirmando que “passou no teste” da chuva – motivou uma enxurrada de reclamações na página da prefeitura do Rio no Facebook.

Parque olímpico em maio de 2017Direito de imagemGETTY IMAGES
Image captionMenos de um ano após Jogos Olímpicos, parque mostra sinais de sucateamento

‘Fomos uma cidade olímpica’

Nesta semana, Crivella prestigiou a formatura da primeira turma formada pelo programa Resgate, uma parceria da prefeitura com a Defensoria Pública do Estado do Rio que busca reinserir moradores de rua no mercado de trabalho.

“Agradeço a Deus por estarmos aqui em saúde e paz e por este momento comovente”, disse, após entregar os certificados de participação às dez pessoas que participaram da primeira turma.

Todas saíram com carteiras de trabalho novas, e sete com empregos garantidos em uma rede de supermercados.

Ele afirmou que “a situação mudou”, e que a prefeitura não tem “a prosperidade que tivemos em anos passados”. “Perdemos uma grande oportunidade”, disse.

“Nós fomos uma cidade olímpica. Não há nada de errado nisso. Impressionamos o mundo com nossas obras, estádios, estendemos o metrô. Mas não podemos jamais deixar para trás o nosso povo”, disse, afirmando que a prefeitura “não pensa em outra coisa” que não o combate à desigualdade.

O “nada de errado” parece sinalizar um olhar para o legado da Olimpíada mais como problema a se resolver do que como um trunfo para a cidade.

Para o economista Bruno Sobral, isso tem a ver com o fato de o contexto econômico ter se deteriorado após os Jogos. Ele diz que o aquecimento que o evento trouxe para a economia se concentrou no período anterior – por exemplo com as muitas frentes de obras abertas na cidade – e durante os jogos – quando uma série de empregos temporários e o grande número de visitantes ajudou a trazer recursos para o município.

Esses benefícios eram temporários, e não ajudaram a tornar a econômia mais dinâmica nem a trazer novas fontes de receita para o município no longo prazo, considera o professor da UERJ.

“Para Crivella, ficou apenas a conta. Ele agora tem que administrar os elefantes brancos, um Parque Olímpico que já está meio sucateado. O que ficou do legado olímpico para ele é um passivo.”

Crédito: Júlia Dias Carneiro da  BBC Brasil no Rio de Janeiro – disponível na internet 01/07/2017

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