De terra de mercenários a território de paz: como a Suíça se tornou neutra

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Politicamente, o país parece a epítome de uma coexistência pacífica. É uma democracia e culturalmente reconhece quatro línguas (alemão, francês, italiano e romanche). Quem cruza os cantões suíços tem a impressão de estar em diversos países ao mesmo tempo.

Os turistas que visitam Valle Bavona, no sul da Suíça, são atraídos pela autenticidade do vilarejo, que desde a década de 50 se recusa a adotar a energia elétrica – isso apesar de estar nas cercanias de diversas usinas.

Bavona é um caso raro de preservação em uma Europa devastada por duas guerras. Mas porque nenhuma chegou até a Suíça.

A tradição moderna de neutralidade internacional da Suíça também é famosa, o que ajuda explicar por que o país é sede de diversas organizações internacionais. Por isso, muita gente se espanta ao saber que a história nem sempre foi assim.

Castelo
GETTY IMAGES Image caption Fortificações suíças não negam passado mililitar do país

Uma terra de mercenários

A Suíça teve origem como um país de mercenários. E nada pacífico.

Basta ver, por exemplo, dos castelos da região de Bellinzona. Essas fortificações tiveram papel proeminente em batalhas medievais entre milaneses, franceses e a então jovem Confederação Helvética (o nome mais pomposo da Suíça). O prêmio? Controlar a passagem pelos Alpes.

“Mas os efeitos da neutralidade estão em toda parte”, diz Clive Church, professor de Estudos Europeus da Universidade de Kent, no Reino Unido, e autor de diversos livros sobre história política do país.

“Onde há sinais de danos causados por bombas na Suíça?

Região de Ticino
Direito de imagem BILLIE COHEN Image caption Passagem para os Alpes tinha importância estratégica

A resposta: lugar algum. “Você pode visitar qualquer cidade suíça e ver que ela se desenvolveu de forma orgânica porque nunca houve uma invasão. Há um benefício visual da neutralidade, pois o passado está lá.”

Um exemplo disso é o fato de a capital, Berna, ter todo seu centro histórico tombado pela Unesco, o que inclui uma torre e um relógio de 1530. Em Chur, há ruínas romanas para lá de bem conservadas. Isso faz com que muita gente não tenha ideia do passado militar do país.

“Tenho dois tipos de visitantes. Os que se surpreendem com nossa neutralidade e os que veem nossa neutralidade como se não nos importássemos com o mundo ou não expressássemos opiniões”, explica Lydia Muralt, guia turística.

Lições de uma derrota

O governo suíço define sua neutralidade publicamente, incluindo em seu site oficial. As regras são básicas: além de não entrar em guerras, o país não pode permitir que nações em conflito usem seu território e tampouco deve fornecer mercenários para outros países.

A última regra é claramente uma alusão à reputação do passado: na Idade Média, a Suíça era boa em ganhar guerras. E fez disso um negócio.

A Confederação Helvética tinha dificuldades econômicas – seu terreno montanhoso não permitia a agricultura em larga escala e o país não tinha acesso ao mar, o que futuramente impediria também a conquista de colônias.

“Fornecer mercenários tinha razões econômicas. Era uma fonte de renda”, explica Laurent Goetschel, cientista político da Universidade da Basileia.

Centro histórico de cidade suíça
Direito de imagem GETTY IMAGES Image caption Ausência de conflitos deixou cidades suíças preservadas

Tudo mudou em 1515, quando as forças suíças enfrentaram as francesas e venezianas na Batalha de Marignano. A infantaria não foi páreo para a artilharia e a cavalaria com armaduras dos inimigos.

“Depois da derrota, os suíços deixaram de se envolver tão amplamente”, explica Church.

Em vez disso, passaram a servir quase absolutamente à França, o que representou renda sem os problemas criados pelo fornecimento mais amplo de mercenários: suíços lutando em lados diferentes.

“Isso não ocorria sempre, mas era algo extremamente preocupante e encorajou discussões sobre neutralidade”, acrescenta o acadêmico britânico.

Nasce a neutralidade

Apesar do acordo com a França, havia um problema para a Suíça escolher lado – todas as potências europeias estavam de olho na posição geográfica estratégica do país como entrada para os Alpes.

Sendo assim, no século 19, quando o Congresso de Viena (1814-15) buscou apaziguar os ânimos após a Guerra Revolucionária Francesa – durante a qual, por sinal, soldados suíços serviram de guarda-costas para a monarquia francesa – a Suíça propôs uma solução para gregos e troianos: a neutralidade.

Desde então, o país tem sido o Estado neutro que conhecemos. Em Genebra, o Museu da Cruz Vermelha explica o grande passo seguinte nessa política: o compromisso com questões humanitárias.

Museu da Cruz VermelhaDireito de imagemALAMY
Image captionA Cruz Vermelha é um dos símbolos da neutralidade suíça

Em 1860, um homem de negócios de Genebra, Henry Dunant, viajou para a Itália e, depois de ver o sofrimento de soldados feridos em campos de batalha, ele decidiu fundar a famosa organização – um esforço que, em 1901, fez dele o primeiro vencedor do Prêmio Nobel da Paz.

Em 1864, Genebra foi palco da assinatura da primeira Convenção de Genebra, sobre protocolos de guerra.

Mas a reputação suíça sofreu abalos durante a Segunda Guerra Mundial, quando o país comprou da Alemanha ouro confiscado de judeus e também recusou refugiados fugindo da perseguição de Hitler.

“Sob uma perspectiva suíça, porém, a neutralidade teve sucesso porque o país não se envolveu em combates, apesar de haver muitos debates”, diz Goetschel.

O mais confuso para muita gente é o fato de a Suíça ter um exército.

“A neutralidade suíça sempre foi armada, pois um dia alguém pode invadir o país e você precisa defendê-lo”, explica Church.

A mesma lógica fez com que uma extensa rede de bunkers, hospitais subterrâneos e abrigos tenha sido construída durante a Segunda Guerra – alguns estão abertos à visitação.

Mesmo a participação em organismos internacionais por vezes expressa a neutralidade. O país não é integrante da União Europeia, mas conta com acordos econômicos e de isenção de visto. E, apesar de ser a sede da ONU na Europa, apenas se juntou à organização em 2002.

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