A proposta de mudança na lei que rege os planos de saúde (nº 9656/98) que sairá da Comissão Especial da Câmara dos Deputados, reunindo 141 projetos em trâmite no Congresso, pode ser um retrocesso nos direitos para os usuários de saúde suplementar. Este é o temor de diversas entidades voltadas à proteção do consumidor que acompanham o debate sobre o tema. Apesar de quase 100% dos projetos apresentados pelos parlamentares, de 2001 para cá, tratarem de adaptações para atender às necessidades dos consumidores, até agora as discussões na comissão têm se restringido a corte de direitos. Discute-se redução no rol de procedimentos cobertos obrigatoriamente pelos planos de saúde, cobertura apenas regional, aumento da participação do usuário no pagamento de procedimentos, liberação de reajustes para planos individuais e até a impossibilidade da aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
— Quase 100% dos projetos tratam de expansão de direitos, sessões sem limites de fisioterapia, fonoaudiologia, nutrição e psicologia, cobertura de transplantes, atendimentos de urgência e emergência sem restrições e transparência nos valores pagos por procedimentos. A questão é que a produção legislativa não está sendo levada em conta — alerta Lígia Bahia, professora da UFRJ e membro da Comissão de Políticas Planejamento e Gestão da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
Segundo Lígia, toda a discussão da comissão tem como base o projeto de plano popular do governo.
— E as posições defendidas por parlamentares que estão participando da discussão trazem pontos muito preocupantes, sob o pretexto de construção de um plano que caiba no bolso — diz a professora.
SECRETARIA DO CONSUMIDOR FOI BARRADA
A preocupação se baseia nas discussões que tomaram conta das sete audiências públicas sobre o tema, já que ainda não há rascunho do relatório disponível. Nesta terça-feira, acontece a última audiência, mas a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), do Ministério da Justiça, órgão máximo sistema de defesa dos consumidores, teve sua participação negada. O titular da secretaria oficiou, na última quinta-feira, o presidente da Comissão, deputado Hiran Gonçalves (PP-RR) e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (PMDB-RJ), sobre a baixa participação dos consumidores no debate.
— Estamos acompanhando atentamente os trabalhos da comissão, através da assessoria parlamentar do ministro da Justiça (Torquato Jardim) e estou levando diretamente a ele a nossa preocupação com o retrocesso da legislação — afirmou Arthur Rollo, titular da Senacon.
O presidente da comissão e o relator Rogério Marinho (PSDB-RN) também receberam ofício pedindo o adiamento da votação do relatório e a disponibilização do rascunho do documento. Assinam o pedido a Abrasco, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), o Núcleo de Defesa do Consumidor (Nudecon) da Defensoria do Rio, a Comissão Especial de Defesa do Consumidor da OAB/CF, o Movimento das Donas de Casa de Minas Gerais (MMDC/MG) e a Procons Brasil.
— O que está sendo proposto, até agora, é um retrocesso do tamanho do universo. Não se deve voltar atrás nos parâmetros que estão postos. É razoável oferecer outros tipos de planos, mas desde que as novas regras sejam acordadas e não impostas pelo lobby das empresas — diz Claudia Silvano, presidente da Procons Brasil.
José Cechin, diretor executivo da FenaSaúde (entidade que reúne algumas das maiores operadoras do setor), alega que a lei tem 19 anos e muita coisa aconteceu, especialmente na saúde. Ele acrescenta que é preciso contemplar os “vários países” que existem dentro do Brasil.
— Não precisa falar em Amazônia, há locais no interior de São Paulo que não têm a mesma infraestrutura da capital. Não tem equipamentos para fazer uma cirurgia robótica, por exemplo, e nem o profissional habilitado para executar o procedimento. Por que não oferecer um plano que respeite essa infraestrutura local? — questiona.
Cechin afirma que a FenaSaúde nunca defendeu redução de cobertura:
— Não há interesse em oferecer um plano de atenção primária, só com consultas. Essa lacuna as clínica populares já preencheram. A ideia é ter planos com coparticipação uniformizada; com franquia, em que o consumidor aceite pagar os primeiros mil reais de despesa para ter uma mensalidade mais barata. Assim como planos regionalizados.
Responsável por formular um parecer e unificar todos os projetos em uma única lei de planos de saúde, Marinho afirmou que prefere não se antecipar à discussão. Ele disse que ainda analisa as propostas e que tem escutado as partes interessadas no tema. Segundo o deputado, a expectativa é que o relatório seja lido na comissão até o dia 30. Se for aprovado, como tramita em regime de urgência, vai direto para votação no plenário da Câmara.
Fontes ligadas à comissão especial dizem que o relator ainda não bateu o martelo sobre a liberação dos reajustes dos planos individuais.
UM TEMA DE DIFÍCIL TRAMITAÇÃO, DIZ DEPUTADO
Presidente da comissão que analisa o assunto, Gonçalves vislumbra uma tramitação difícil para a lei de planos de saúde. Além da complexidade do tema, há uma série de parlamentares com interesses diferentes sobre o assunto.
— São mais de cem projetos apensados, tratando de pontos de vista e objetos diferentes dentro do mesmo assunto — ressalta o parlamentar.
Ele afirmou que, dada a urgência da tramitação, a comissão tem tentado “andar o mais rapidamente possível”. Para Gonçalves, um ponto importante é que se garanta o ressarcimento ao SUS, que não é feito com eficiência:
—Queremos elaborar um texto compatível com o que pensa a Justiça (há uma ação de inconstitucionalidade em curso).
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) disse que não se manifestaria sobre o tema.
Ministro da Saúde defende liberação de reajustes de planos individuais
Em entrevista ao GLOBO, o ministro da Saúde, Ricardo Barros, acredita que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) deve, sim, ser usado como referência na relação entre planos e pacientes, ao contrário do que prevê projeto discutido no Congresso.
Uma das mudanças defendidas é liberar o reajuste para plano individual, hoje regulado pela ANS. Por quê?
Não é que se defenda. Se propõe. Não sei se a Comissão está predisposta a aprovar isso. O problema dos planos individuais é que, como o reajuste desses planos não acompanha a inflação médica, da saúde, eles ficam defasados e as empresas deixam de oferecê-los. Por exemplo, agora tem um plano corporativo para microempreendedor individual. Duas pessoas já são plano coletivo. E isso não é plano coletivo, é só uma forma de fugir da regulação do individual. É o que a gente chama de interferência indevida (a regulação), distorce o mercado, faz com que os planos criem artimanhas para deixar de vender planos individuais.
O reajuste dos planos coletivos chegou a 40% este ano. Se o individual for liberado, as pessoas terão condições de pagar pela saúde suplementar?
O cidadão compra um serviço, e se mantém nele, se estiver satisfeito. Se a relação custo/benefício não estiver adequada, ele sai. Ninguém é obrigado a ficar no plano de saúde. É uma questão de mercado. O plano sobe o preço até o ponto em que não perca o cliente, como qualquer comércio. Se subir muito o preço, fica vazio. Como os custos da saúde têm uma inflação maior que a do país, os planos têm de se adequar. Se não reajustam, quebram. Então, tem uma medida que cada plano é que sabe.
Mas, se é uma relação de mercado, por que o projeto discute que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) não se aplique a planos de saúde?
Não acho isso adequado. O CDC se aplica a qualquer coisa. Não vejo por que não se aplicaria. O que nós temos de entender é que a discussão de cobertura — planos acessíveis, a cobertura é alta, a cobertura é baixa — é o que a pessoa comprou. Se comprou um Gol, é um Gol; se comprou uma Mercedes, é uma Mercedes. Você compra e tem um preço pelo produto.
A alteração do rol de cobertura dos planos também está em discussão.
Se você compra um rol maior, paga mais. Se compra um rol menor, paga menos. Para nós (rede pública), qualquer tipo de financiamento ajuda a aliviar o SUS.
O projeto discute suspender o ressarcimento ao SUS pelos planos de saúde…
O ressarcimento está estabelecido: se uma pessoa tem contrato de cobertura para um determinado risco e se utiliza do SUS, o SUS pede ressarcimento. O plano de saúde é obrigado a remover o seu segurado para um hospital da sua rede. Se ele não remover, as condições de ressarcimento têm de estar definidas. Não pode mais judicializar. Hoje, o plano fica discutindo a conta. Tem de estar pactuado.
Crédito: Luciana Casemiro- Barbara Nascimento e Glauce Cavalcante/Jornal O Globo – disponível na internet 21/08/2017