Raquel Dodge assumiu nesta segunda-feira o comando do Ministério Público Federal, uma das instituições mais importantes e poderosas do país. Nomeada pelo presidente Michel Temer, ela substituiu Rodrigo Janot como Procuradora-Geral da República (PGR) na condução das investigações da Lava Jato contra autoridades com foro privilegiado.
Mas não só isso – além de combater a corrupção, a PGR pode realizar investigações e mover ações judiciais que envolvem as mais diversas áreas, como segurança pública, demarcação de terras indígena e consumo de drogas. E Dodge já declarou que dará igual prioridade para “a função criminal e a função de defesa de direitos humanos” do Ministério Público.
É de se esperar empenho para cumprir a promessa. Dodge vem sendo descrita como obstinada, disciplinada, centralizadora e, segundo resumiu o procurador Mário Lúcio Avelar ao jornal Folha de S.Paulo, um “trator para trabalhar”.
No Ministério Público Federal desde 1987, seu trabalho mais notório foi à frente da Operação Caixa de Pandora, que revelou o chamado mensalão do DEM e levou à prisão do então governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda.
E o que esperar agora da nova procuradora-geral? A BBC Brasil levantou declarações de Dodge em dez questões polêmicas para que você possa conhecer melhor a nova chefe do MPF.
1. Operação Lava Jato
Embora enfrente acusações de que teria sido escolhida por Temer para “frear” a Lava Jato, Dodge tem manifestado compromisso com a operação. Em agosto, ela anunciou a criação de uma nova secretaria, de Função Penal Originária no STF, que cuidará dos processos criminais contra autoridades, abarcando o grupo de trabalho da Lava-Jato.
“A equipe será ampliada, porque novos fatos foram revelados e necessitam de uma atuação célere, para alcançar os resultados previstos na lei penal. A devolução das verbas públicas apropriadas ilicitamente, o desmantelamento dos esquemas de corrupção e a condenação penal são importantes objetivos em curso, que devem ter prioridade na atuação da PGR, para impedir a corrupção sistêmica e punir os responsáveis”, já havia declarado em entrevista em junho ao jornal Estado de S.Paulo.
Em sua sabatina no Senado, Dodge destacou a independência dos procuradores da cada instância judicial para definir os rumos da investigação. No entanto, em meio às críticas quanto a supostos abusos na operação, defendeu que isso ocorra “sob o império do devido processo legal, com respeito aos limites impostos na legislação”.
“De modo que a condução dos trabalhos será com base na prova, com base na lei, de forma serena, de forma tranquila, para que evitemos (…) o aviltamento da dignidade da pessoa humana”, acrescentou.
2. Vazamentos em investigações sigilosas
Dodge afirmou ao jornal Valor Econômico e na sabatina do Senado que vai adotar novas medidas de controle interno do acesso às investigações, com objetivo de permitir rastrear eventuais vazamentos. Muitos políticos têm reclamado do suposto uso político dessas divulgações ilegais.
“Os vazamentos são impróprios, são incompatíveis com o devido processo legal, com o Estado democrático de direito, e é preciso adotar medidas internas que mantenham a credibilidade da nossa instituição”, afirmou Dodge, aos senadores.
3. Condução coercitiva
Em sua sabatina no Senado, Dodge manifestou também “muita preocupação” com a aplicação da condução coercitiva, instrumento comumente usado pela operação Lava Jato para obrigar o investigado a comparecer para depor, mesmo que ele tenha o direito de ficar calado.
A principal controvérsia em torno desse mecanismo é que ele vem sendo usado pelo juiz Sergio Moro e outros magistrados sem uma prévia intimação do suspeito, como ocorreu com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no ano passado.
Ao responder questionamento do senador Humberto Costa (PT-PE), Dodge disse que a condução coercitiva “deve ser utilizada sobretudo em relação a pessoas que se recusem a comparecer em juízo”.
“Eu tenho muita preocupação com esse assunto, sobretudo para que não haja a exposição pública da pessoa investigada”, afirmou.
4. Delação premiada
Dodge tem defendido a importância da delação premiada como instrumento “poderoso” para facilitar investigações contra organizações criminosas. Ela costuma destacar, porém, que o acordo de delação só deve trazer benefícios penais (redução da pena), sendo mantidas as sanções para reparação de dano (por exemplo, devolução de valores desviados).
“A lei penal exige reparação integral do dano e devolução total das verbas públicas apropriadas e desviadas ilicitamente”, disse em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, em junho.
A nova procuradora também destacou, em recente conversa com o jornal Valor Econômico, a importância de manter “a proporcionalidade entre os ganhos para a população e o benefício que está sendo deferido (ao delator)”.
Janot tem recebido críticas de que o acordo com executivos da JBS, que delataram suposta propina ao presidente Michel Temer, teria sido muito benevolente, já que previsão inicial era de que os executivos não teriam que cumprir qualquer pena de prisão, mesmo que por tempo curto. Esse acordo agora está em revisão. Dodge vinha se esquivado de comentar a delação da JBS.
Na sabatina do Senado, disse apenas que há previsão legal para que acordos de delação sejam revistos “quando o colaborador não cumpre a sua parte nesse acordo”.
“Essa é uma possibilidade que está sempre na mesa na perspectiva de que há uma previsão legal expressa em relação a isso”, afirmou.
5. Redução da maioridade penal
Dodge se posicionou contra a redução da maioridade penal em 2013, ao representar o Ministério Público Federal em debate sobre o tema na Comissão de Constituição e Justiça do Senado.
A procuradora argumentou que a Constituição proíbe que o Congresso aprove alterações no texto constitucional com objetivo de “abolir direitos e garantias individuais”.
Dessa forma, disse ela, seria inconstitucional reduzir a maioridade penal e retirar o direito dos menos de 18 anos de não serem punidos penalmente.
“Reduzir a maioridade penal não garantirá o fim da criminalidade. É preciso garantir que os adultos por trás dos atos desses jovens sejam punidos com rigor”, defendeu na ocasião.
6. Melhorar distinção de usuários e traficantes de drogas
Em diversas ocasiões, Dodge tem criticado o fato de pessoas pegas com pequenas porções de drogas receberem penas de prisão tão ou mais graves do que aquelas detidas com grades quantidades. Segundo ela, estudos do MPF apontam uma recorrência desse problema.
A procuradora defende que sejam adotados critérios mais claros para diferenciar usuários de drogas e pequenos e grandes traficantes. O enquadramento de pessoas com pequenas quantidades de entorpecentes como traficantes têm sido o principal fator a impulsionar o aumento da população carcerária no país.
“Pessoas apreendidas com três gramas de maconha receberam do Tribunal de Justiça a mesma pena, de 3 a 7 anos, que foi dada a quem traficava uma tonelada”, destacou Dodge em 2015, durante debate promovido pela ONU sobre drogas e superpopulação carcerária no Brasil.
No ano passado, em evento na Embaixada da Espanha, ela defendeu a adoção de “algo como uma tabela, a exemplo do que já existe em Portugal e em outros países europeus, que correlacione a quantidade e a natureza da droga para distinguir o usuário do traficante”.
No momento, está paralisado no STF uma ação que discute a descriminalização do porte de drogas para usuários, aguardando o voto do ministro Alexandre de Moraes. Em 2015, quando teve início o julgamento, Janot se opôs à descriminalização. Já o ministro Luís Roberto Barroso defendeu a adoção de uma tabela similar à sugerida por Dodge.
7. Direitos humanos e violência policial
Embora tenha assumido compromisso em priorizar o combate à corrupção, Dodge tem destacado que o foco da sua gestão não será apenas esse. Dentro do Ministério Público Federal, ela tem uma trajetória ligada a questões ambientais e de direitos humanos.
Na sabatina do Senado, Dodge fez críticas, por exemplo, aos “autos de resistência” – registro de mortes por policiais, supostamente em legítima defesa, mas que muitas vezes são usados para acobertar execuções. A subprocuradora defendeu que esses casos devem ser registrados em boletim de ocorrência, para que seja iniciada uma investigação.
“O movimento de direitos humanos tem identificado, em relação a esse tema, os autos de resistência como um dos fatores que são causa da impunidade. E eu concordo plenamente que essa é uma questão que temos que resolver no País”, defendeu.
8. Demarcação de terras indígenas
Enquanto o governo Temer tem enfrentado fortes críticas por adotar medidas de interesse de ruralistas e contrárias às reivindicações de grupos indígenas, Dodge defendeu no Senado as demarcações de terras, que atualmente estão paralisadas.
“É um compromisso constitucional a delimitação das terras indígenas. Nós temos lá no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, inclusive, um prazo, que era de cinco anos, para que esse assunto estivesse resolvido. E eu creio que, quanto mais cedo essa questão estiver resolvida, mais segurança jurídica todos os brasileiros terão”, afirmou na sabatina.
A futura procuradora-geral não chegou a se posicionar sobre o polêmico parecer assinado por Temer em julho que fixa o chamado “marco temporal”, estabelecendo que índios não podem reivindicar terras que não estivessem ocupando em 1988, desconsiderando o fato de que, em geral, esses grupos foram expulsos violentamente antes disso.
No entanto, o subprocurador Luciano Mariz Maia, escolhido por Dodge para ser seu vice, condenou veementemente o parecer assinado pelo presidente.
9. Desarmamento
Questionada em sua sabatina sobre o direito ao porte de arma para autodefesa dos cidadãos, Dodge defendeu o Estatuto do Desarmamento, que dificultou o acesso a partir de 2003. Atualmente, parte do Congresso tenta revogar o estatuto.
“Eu, pessoalmente, invisto em uma cultura de paz ao longo da minha atuação na Procuradoria da República, e apoiei a aprovação do Estatuto do Desarmamento porque achei que, naquela ocasião, era uma situação que merecia um aumento no rigor, no controle de armas em uso no país”, disse.
10. Remuneração e auxílio-aluguel para procuradores
Dodge defende a legalidade do pagamento de auxílio-moradia para integrantes do Ministério Público Federal, inclusive para aqueles que possuem casa própria, como é o seu caso. O benefício, também recebido por juízes federais, é de R$ 4.377,73 mensais.
Em entrevista ao portal UOL em 2015, ela afirmou que “a verba tem natureza indenizatória e, por isso, repara o gasto com moradia em locais onerosos, nas condições especificadas em lei”.
O salário bruto dos membros do Ministério Público Federal varia de R$ 28 mil a R$ 33,7 mil, segundo a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR).
“A remuneração do membro do Ministério Público é acima da média nacional porque é de interesse público recrutar pessoas bem capacitadas para investigar e processar diariamente em juízo atos de corrupção, lavagem de dinheiro e outros graves crimes, promover a defesa do regime democrático e de direitos humanos e zelar por serviços de relevância pública que tenham qualidade”, afirmou também ao UOL.