De um lado, o antigo guarda-costas e atual desafeto, que assumiu o poder do morro depois da prisão do mentor. De outro, a mulher do ex-chefe, condenada por tráfico, foragida, mas que, nas redes sociais, ostenta os cabelos pintados bem louros, o corpo bronzeado com biquínis e decotes, óculos escuros de grife e colares de ouro com pingente de coroa.
Ainda é cedo para concluir que a invasão por traficantes no domingo e a disputa de poder na Rocinha, na zona sul do Rio de Janeiro, tenham sido ordenadas pelo traficante Antônio Francisco Bonfim Lopes, vulgo Nem, de dentro de uma prisão de segurança máxima, considera o jornalista britânico especializado em crime organizado Misha Glenny.
Mas o racha interno e a crescente tensão entre a mulher e “herdeira” de Nem, Danúbia Rangel, e seu ex-aliado e sucessor, Rogério Avelino da Silva, o Rogério 157, precedem o conflito, em uma disputa de protagonismo que pode ajudar a explicar o embate – que gerou fortes tiroteios e imagens de guerra de domingo para cá na maior favela do Rio.
Glenny conta a história de Nem no livro O Dono do Morro: um homem e a batalha pelo Rio (Companhia das Letras), lançado no ano passado.
Image caption Danúbia é mulher e ‘herdeira’ de Nem | Foto: Reprodução/ Facebook
Em entrevista à BBC Brasil, ele considera que ainda há lacunas a se preencher sobre o papel que o ex-chefe do morro, preso em 2011 e atualmente em um presídio de segurança máxima em Porto Velho, Rondônia, teve no episódio.
Mas diz que Nem continua sendo “extremamente influente” na Rocinha e que Danúbia vinha buscando maior protagonismo na comunidade, com uma divisão de forças entre ela e Rogério 157.
“Claramente havia muita tensão entre o Rogério e a Danúbia. A única coisa que eu ainda não entendi é se a Danúbia estava agindo motivada por sua própria ambição, ou se estava representando, de fato, o Nem”, considera Glenny. “Eu suspeito que se trate mais da primeira opção, mas essa é só uma interpretação minha.”
Danúbia teria sido expulsa da Rocinha a mando de Rogério, e ambos estão foragidos. Ela, porém, parece se manter ativa nas redes sociais, onde, na segunda-feira, em uma conta que acredita-se ser dela, gabou-se de um perfil publicado no jornal O Globo. Postou o link da matéria destacando um trecho que a compara com a Bibi Perigosa vivida por Juliana Paes na novela A Força do Querer. “Viu só como estou poderzão ainda?”, escreveu com um emoji de sorriso escancarado.
Na semana anterior, essa conta postou um panfleto do disque-denúncia com sua foto e de outras mulheres procuradas pela polícia, fazendo troça: “Eu e minha coleguinhas bombando por aí”, diz, ao lado de carinhas chorando de tanto rir.
Glenny diz que Danúbia não é muito popular na Rocinha, sendo uma “forasteira” que veio da Maré, complexo de favelas na zona norte do Rio. Teria autoridade na favela não por sua personalidade, mas por ser mulher de Nem, tornando-se uma rara liderança feminina no mundo do tráfico – que lhe rendeu a alcunha de “Xerife da Rocinha”. Ela é a quarta esposa de Nem – que, segundo Glenny, sempre se mostrou “muito apaixonado” por ela. Antes, foi mulher de dois traficantes na Maré, ambos mortos pela polícia. Daí também o apelido de “viúva negra”.
No domingo, a Rocinha foi invadida por dezenas de traficantes de morros como o São Carlos e o Vila Vintém, favelas controladas, assim como a Rocinha, pela facção criminosa conhecida como Amigos dos Amigos (ADA). O bando estaria, a pedido de Nem – segundo os jornais -, tentando tomar o controle das mãos de Rogério 157, em uma disputa interna da favela por integrantes da mesma organização.
Glenny, que se encontra em Londres, diz que segue acompanhando de perto a escalada de violência no Rio e considera que os governos estadual e federal tem sido “incapazes” de lidar com a guerra de facções no Rio, que as Unidades de Polícia Pacificadora só continuam existindo “no papel” e que o envio do Exército para o Rio “não teve qualquer impacto na redução da criminalidade”.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
BBC Brasil – O seu livro narra desde a ascensão de Nem a “dono do morro” à sua prisão em 2011. Ele agora está em um presídio de segurança máxima em Rondônia – que papel você acha que ele desempenhou nessa disputa?
Misha Glenny – Citando fontes da polícia e do sistema prisional, os jornais dos últimos dias têm dado como certo que Nem comandou a invasão da Rocinha através da Danúbia (Rangel, sua mulher). Para mim, isso ainda é uma questão em aberto. Não digo que não aconteceu, mas não está comprovado.
O Nem continua sendo uma figura incrivelmente influente e popular na Rocinha, e as pessoas o ouvem muito, mas não sabemos ainda até que ponto ele está envolvido.
Se a ordem partiu dele, para quem teria dado a mensagem? Desde o início do mês ele não teve visitas da família, e só na terça desta semana foi visitado por seu advogado.
BBC Brasil – Sempre vemos disputas entre facções rivais no Rio, mas o que parece notável neste caso é que a disputa é entre integrantes da mesma facção (a ADA). O que precipitou esse conflito interno?
Glenny – Na última vez que estive no Rio, em dezembro, já tinha havido um racha entre a Danúbia e o Rogério (Rogério Avelino da Silva, o Rogério 157, sucessor de Nem no comando do tráfico da Rocinha). A Danúbia havia criado seu próprio bonde e tinha seus próprios seguranças. E havia um terceiro protagonista nessa história, o Perninha (Ítalo Jesus Campos), que era braço direito do Nem e foi assassinado no dia 13 de agosto (investigações apontam que Perninha planejava tomar a favela a mando de Nem). Há indícios de que ele estava se aproximando da Danúbia, queria abrir suas próprias bocas de fumo, e por isso foi assassinado.
Então antes de se falar em uma ofensiva comandada pelo Nem a partir da prisão, é preciso considerar que já havia essa disputa interna dentro da Rocinha. Havia divisões internas, com a Danúbia aparentemente querendo ter mais protagonismo, e a comunidade se dividindo sobretudo entre ela e o Rogério.
BBC Brasil – A Danúbia agora está foragida e teria sido expulsa da comunidade pelo Rogério. Qual é a importância e o papel desempenhado por ela na Rocinha? Você a conheceu?
Glenny – Eu conheci a Danúbia. O Antônio (Antônio Francisco Bonfim Lopes, o Nem) sempre me deu a entender que é muito apaixonado por ela. Ela é sua quarta esposa e se tornou uma figura muito poderosa na Rocinha, embora não seja muito popular na comunidade.
Sua autoridade vem do fato de ser casada com o Nem, não de sua personalidade. Ela vem do Complexo da Maré, é uma forasteira. E, sobretudo, é uma mulher. Do ponto de vista sociológico, sua história é muito interessante. A tradição no tráfico de drogas no Rio não é particularmente amigável a mulheres. E certamente não em posições de liderança. Então é uma situação incomum.
Claramente havia muita tensão entre o Rogério e a Danúbia. A única coisa que eu ainda não entendi é se a Danúbia estava agindo motivada por sua própria ambição ou se estava representando de fato o Nem. Eu suspeito que se trate mais da primeira opção, mas essa é só uma interpretação minha.
BBC Brasil – Como a operação da ADA se distingue das outras? Há muito foco na personalidade dos líderes, como vemos até hoje na influência da figura do Nem, mesmo preso desde 2011?
Glenny – A ADA nasceu com muito sangue, a partir de uma ruptura no Comando Vermelho (CV) nos anos 1990, que se deu com muitas mortes. É a mais jovem facção das três (cariocas). Quando o Nem assumiu o controle da Rocinha, ele adotou o estilo de um de seus antecessores, o Lulu (Luciano Barbosa da Silva, que chefiou a comunidade antes dele e foi morto pelo Bope em 2004).
A sua marca foi usar menos violência e se concentrar mais em corromper a polícia e construir uma rede de serviços sociais para assegurar o apoio da comunidade. Essa é uma das marcas da ADA, mas em outras favelas a facção é mais violenta, por causa das ameaças do CV e do Terceiro Comando Puro (TCP).
A desvantagem é que a Rocinha é uma das maiores, se não a maior, distribuidora de cocaína do Rio. É muito valorizada e disputada. Por outro lado, é uma comunidade difícil de invadir se você não tem apoio interno e um contingente grande o suficiente.
BBC Brasil – Nos últimos dias, moradores da Rocinha disseram que o Rogério vinha impondo a cobrança de taxas por serviços como distribuição de gás, métodos associados a milícias. Você acha que o Nem poderia querer tirá-lo por isso?
Glenny – Como eu disse, não estou certo de que o Nem estivesse ativamente tentando se livrar dele. Não temos provas disso ainda. Mas certamente o Nem não aprovaria a troca do modelo que ele implementou por outro mais adotado pelas milícias, contrariando o que foi tradição na Rocinha nos últimos 18 ou 19 anos.
Depois de um período muito violento entre os anos 1990 e o começo dos anos 2000, a Rocinha teve o que os moradores consideram seus anos de ouro, com o sistema introduzido por Lulu e seguido e ampliado por Nem.
O Rogério não se fez nenhum favor ao impor novas taxas de pagamento aos moradores, cobrando taxas para mototaxistas operarem, pela distribuição de gás, esse tipo de serviço. Há muita insatisfação dentro da Rocinha com o Rogério e com a maneira como ele vinha chefiando a favela.
BBC Brasil – Você teve uma série de conversas com o Nem nas entrevistas que deram origem ao seu livro. Como o descreve?
Glenny – Eu passei um total de 31 horas com ele. O Nem é uma pessoa que não age espontaneamente. Ele pensa muito antes de tomar qualquer decisão e gosta de discutir as opções com outras pessoas. Fica ansioso no processo, mas quando chega a uma decisão tende a levá-la adiante. Ele é calmo.
Se tivesse tido uma educação melhor, acho que seria uma empresário bem-sucedido, porque tem carisma e sabe tomar decisões. Mas a tese do meu livro é que ele se permitiu ser preso porque achou excessiva a tensão de ser dono do morro.
BBC Brasil – Você diz que tem estado em contato constante com moradores da Rocinha. Que sensação que eles têm te passado?
Glenny – O sentimento é de preocupação generalizada. As pessoas estão extremamente assustadas e apreensivas. Não sabem como a situação vai se desenrolar, mas sabem que ainda não terminou.
Está na natureza dos conflitos em favelas que, quando eles acontecem, explodem sem aviso prévio. Podem ocorrer a qualquer hora. Os períodos de disputas podem ser longos ou curtos, mas eles geralmente são sangrentos. Isso está na memória coletiva da Rocinha. E quando você tem tiroteios dentro de uma favela, as chances de danos colaterais são enormes.
E o pano de fundo é que, como todo mundo sabe, o Estado não está funcionando direito. Isso cria muita tensão para a polícia. Nas imagens de domingo, vimos que os policiais da UPP estavam se escondendo e evitando confronto.
BBC Brasil – Que tipo de mensagem isso transmite para os criminosos?
Glenny – Significa que o Estado está cedendo o monopólio da violência para os traficantes na favela. É difícil não sentir raiva da administração Sérgio Cabral (ex-governador do Rio, preso em Bangu e condenado nesta semana a 45 anos de prisão por um esquema que teria movimentado R$ 220 milhões em propina entre 2007 e 2014).
Quando Cabral era governador, o Beltrame (o ex-secretário de Segurança Pública José Mariano Beltrame) fez um bom trabalho em estabelecer a UPP policial. E o governo do Rio falhou consistentemente em investir em uma UPP social. Esse era o combinado, com as UPPs você teria a polícia nas favelas e a partir daí incrementaria o investimento social nas comunidades.
Mas esse investimento social nunca aconteceu, e isso levou o Estado a perder ainda mais credibilidade nas favelas. Atualmente o governo do Estado, do (governador Luiz Fernando) Pezão, do (secretário de Segurança) Roberto Sá não tem qualquer credibilidade dentro das favelas, porque as UPPs já não existem mais, a não ser no nome.
BBC Brasil – Essa crise é o pano de fundo para o confronto que estamos vendo na Rocinha?
Glenny – Há dois panos de fundo que precisam ser considerados. O primeiro é a instabilidade nas relações entre o Comando Vermelho (CV), o Terceiro Comando Puro (TCP) e a Amigos dos Amigos (as três maiores facções criminosas do Rio), e o papel que o Primeiro Comando da Capital (o PCC, fundado em São Paulo) vem desempenhando no Estado.
O PCC está envolvido nessa luta entre as facções, fornecendo armamentos à ADA e ao TCP. Você deve lembrar as rebeliões que explodiram nas prisões neste ano, incluindo decapitações. Foram fruto de uma disputa entre o PCC e o Comando Vermelho. E uma das formas de o PCC atingir o CV é fortalecendo seus inimigos, fornecendo armas para suas facções rivais no Rio.
O outro contexto importante é o colapso absoluto das UPPs. É aqui que vemos o verdadeiro impacto da falência efetiva do Estado do Rio. Não há recursos para segurança, e a ajuda federal, com o envio do Exército para o Rio, não teve qualquer impacto na redução da criminalidade. A comunicação entre as lideranças militares e as polícias do Rio é atroz. Não há uma estratégia de segurança integrada.
O Rio enfrenta uma crise econômica e política severa, há enorme tensão em Brasília com a Lava Jato, há o escândalo da JBS, há tudo isso ao mesmo tempo. Estamos vendo uma guerra de facções irromper, que considero ainda pequena – mas as instâncias estaduais e federais são incapazes de lidar com ela.
Tradicionalmente, e particularmente desde que o Nem passou a chefiar a favela em 2005, a Rocinha tem níveis de criminalidade e homicídio muito mais baixos que outras favelas. Se as coisas estão ruins na Rocinha, você sabe que a situação é grave.
BBC Brasil – No ano passado, quando você esteve na Flip, você considerou que o Rio não teria problemas de segurança até as Olimpíadas, mas depois disso a coisa tendia a piorar.
Glenny – A Olimpíada foi um buraco negro de atividades corruptas. Quando a Copa e a Olimpíada passaram, ficou evidente que o Brasil tinha navegado nos preços altos das commodities sem fazer melhorias estruturais à economia e ao sistema político. Então a Olimpíada pôde ser vista pelo que foi: uma brincadeira muito danosa à cidade do Rio de Janeiro.
A UPP foi introduzida em parte para mostrar para o mundo lá fora que o Rio seria uma sede segura para os jogos. E muitos diziam que quando a atenção internacional se desviasse, a situação se deterioraria rapidamente. E é isso que estamos vendo.
BBC Brasil – Você vê alguma saída para o problema?
Glenny – No momento, temos a atuação do Exército no Rio, mas isso não resolve o problema. A solução é colocar as finanças do Rio nos trilhos e adotar políticas sérias – na verdade, acho que o Brasil precisa considerar seriamente a descriminalização e legalização da posse de drogas por uso pessoal, seguindo o exemplo de outros países do continente americano.
Isso não vai resolver o problema do varejo de drogas, mas vai tirar uma quantidade enorme de pressão de cima da polícia, em um momento em que a polícia precisa de apoio, dada a instabilidade da situação.
BBC Brasil – Depois de passar tanto tempo fazendo pesquisa na Rocinha, como você se sentiu ao ver as imagens dos conflitos nos últimos dias?
Glenny – Não fiquei surpreso. Mas fiquei muito entristecido. E apreensivo por estar longe. Gostaria de estar lá para acompanhar melhor o que está acontecendo e tentar comunicá-lo para o resto do mundo, porque não tem a atenção que merece.