A cada nova escalada da crise brasileira, autoridades apressam-se a garantir: “as instituições estão funcionando”. Mas estariam funcionando bem? Sucessivos embates entre os Poderes da República – Executivo, Legislativo e Judiciário – indicam que o equilíbrio entre eles têm dado “tilt”, ou seja, sinais de falha. E o risco que isso traz, destacam analistas ouvidos pela BBC Brasil, é o de perda de confiança na democracia.
O mais recente episódio de tensão gira em torno do afastamento do senador Aécio Neves (PSDB-MG), determinado há uma semana em decisão apertada da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, que entendeu que o tucano usa seu mandato para atrapalhar a operação Lava Jato.
Como não há previsão na Constituição autorizando que a corte suspenda o parlamentar, o Senado pretende votar nesta terça-feira um requerimento para derrubar a decisão do STF.
Para Rubens Glezer, professor de Direito Constitucional da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o equilíbrio entre os poderes começou a falhar na controversa prisão do senador Delcídio do Amaral (ex-PT-MS) e se aprofundou em outros momentos.
Ele cita as decisões contraditórias do Supremo ao primeiro barrar a nomeação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como ministro de Dilma Rousseff para depois autorizar a de Moreira Franco no governo de Michel Temer – ambas suspeitas de servir para lhes dar foro privilegiado.
Na sua avaliação, a crise que o país atravessa não decorre de um desenho ruim de funcionamento das instituições brasileiras, mas da “má qualidade dos atores nas três esferas de Poder”.
“Temos um Legislativo e um Executivo altamente comprometidos com escândalos de corrupção e uma Suprema Corte que, em vez de estabelecer regras claras, interfere nessa relação voluntariamente, casuisticamente”, critica.
O cientista político José Alvaro Moisés, professor da USP, ressalta que é normal haver certa tensão entre as instituições, já que o princípio do “equilíbrio entre os Poderes” prevê justamente que cada um atue para conter excessos dos outros. “O problema é quando se passa desses patamares normais de tensão, o que talvez esteja acontecendo”, nota ele.
Em meio aos sucessivos embates entre Poderes, pesquisa do Instituto Datafolha divulgada neste domingo mostrou queda no percentual dos eleitores brasileiros que concordam com a noção de que a democracia é sempre melhor do que outras formas de governo – o índice caiu de 66% em dezembro de 2014 para 56% agora.
“Se há uma desconfiança persistente nas instituições, isso passa para a democracia. É muito grave, pois pode vir a solapar a legitimidade da democracia”, afirma Moisés.
Nesse cenário, ainda que sob muitas críticas, tem aumentado o discurso a favor de uma “intervenção militar”. “Algo inimaginável há três anos”, nota Glezer.
Confira abaixo os principais momentos de tensão protagonizados entre os Poderes nos últimos anos e como eles revelam falhas nas relações institucionais.
1) Prisão de Delcídio
Delcídio do Amaral, então líder do governo Dilma no Senado, foi preso por decisão unânime do Supremo em novembro de 2015, acusado de atrapalhar as investigações da Lava Jato. Ele foi gravado oferecendo R$ 50 mil mensais à família de Nestor Cerveró para tentar convencer o ex-diretor da Petrobras a não fechar um acordo de delação premiada.
A decisão dividiu juristas e gerou reação de parte dos senadores, já que a Constituição prevê que parlamentar só pode ser preso em flagrante ou por crime inafiançável (terrorismo, racismo, tráfico de drogas, entre outros).
Apesar disso, o Senado confirmou por 59 a 13 a manutenção da prisão. Delcídio depois firmou acordo de delação premiada e ganhou o benefício da prisão domiciliar, mas acabou cassado por seus pares.
“A prisão do Delcídio é o momento em que Judiciário assume a agenda anticorrupção, mas faz isso com soluções excepcionais, de ocasião. Foi também uma chancela (do Supremo) de que havia corrupção no governo, o que teve reflexo no processo de impeachment”, afirma Glezer.
Por outro lado, o professor considera que a decisão de ministros do STF de não prender Aécio, embora seu caso se assemelhe ao de Delcídio, mostra um certo “voluntarismo” nas decisões que não seria positivo.
2) Nomeação de Lula
Encurralada por enormes manifestações de rua, Dilma decidiu em março de 2016 colocar Lula como ministro da Casa Civil. O ato, no entanto, acabou barrado por decisão monocrática do ministro do STF Gilmar Mendes, que considerou que a nomeação do ex-presidente visava lhe dar foro privilegiado, tirando as investigações contra ele da primeira instância.
A decisão foi fundamentada em gravação de telefone entre Dilma e Lula que o juiz Sergio Moro tornou pública – posteriormente, o Supremo considerou a divulgação desse grampo ilegal.
Já em fevereiro de 2017, pedido semelhante contra a nomeação de Moreira Franco ministro de Temer foi rejeitado monocraticamente por outro ministro do Supremo, Celso de Mello.
Para o professor da FGV, o grande problema nesse caso foi não ter havido uma decisão colegiada do Supremo, o que poderia ter evitado a incongruência das decisões.
“O ministro Gilmar Mendes tomou monocraticamente uma decisão inédita de barrar um ministro, com efeito que era de ‘tudo ou nada’ para o governo vigente, e nunca levou o caso ao plenário. Depois outro ministro toma decisão oposta no caso Moreira Franco. Mais uma vez é uma situação de voluntarismo, de falta de controle e de falta de regra (no Supremo)”, destaca Glezer.
3) Afastamento de Eduardo Cunha
Cunha foi afastado em maio de 2016 da Presidência da Câmara e do seu mandato de deputado, acusado de usar o cargo para atrapalhar investigações da Lava Jato e o andamento do processo que poderia levar a sua cassação no Conselho de Ética da Casa.
Outro argumento usado pelo relator do caso, o falecido ministro Teori Zavascki, para fundamentar o afastamento foi que Cunha era réu em uma ação penal no Supremo e por isso não poderia estar na linha sucessória da Presidência da República, ou seja, no comando da Câmara.
Sua decisão foi referendada pelos outros dez ministros – o mesmo argumento, porém, depois acabou rejeitado pela corte para afastar Renan Calheiros do comando do Senado (ver mais abaixo).
Mas a principal controvérsia nesse tipo de ação de afastamento, que está em discussão novamente no caso de Aécio, é que a Constituição não prevê a possibilidade de afastamento do mandato por decisão do STF – a princípio, apenas os próprios parlamentares podem cassar seus pares.
Como já havia um movimento na Câmara para cassar Cunha, a maioria dos deputados ficou a favor da intervenção do Supremo e o peemedebista acabou sendo cassado em setembro do ano passado.
4) Afastamento de Aécio
No entanto, um dos problemas do afastamento de Cunha, considera Glezer, é que o STF criou uma nova forma de intervenção no Legislativo, mas sem prever “mecanismos de controle” sobre ela. É justamente a controvérsia que apareceu agora, no caso de Aécio, sobre o Senado poder ou não derrubar a decisão da Corte.
Para alguns juristas, se a Constituição permite que o Senado pode reverter uma decisão de prisão, então também deve poder derrubar o afastamento.
“A lógica do sistema de freios e contrapesos (entre os Poderes) é de que se você tem um poder interferindo no outro, o que é normal, possa haver uma reação de algum dos outros poderes”, afirma Glezer.
O Supremo acabou marcando para o dia 11 o julgamento que analisará se o Senado pode derrubar a decisão da corte – a presidente Cármen Lúcia decidiu dar urgência ao caso para tentar amenizar a crise com o Legislativo.
Já Moisés considera que a reação do Senado é muito mais um movimento corporativista de autoproteção. Embora Aécio tenha sido gravado em uma conversa com o dono da JBS, Joesley Batista, pedindo R$ 2 milhões e também descrevendo sua atuação para tentar frear a Lava Jato com novas leis no Congresso e intervenções na Polícia Federal, o Senado nem mesmo abriu um processo contra ele no Conselho de Ética.
“Essas decisões do STF estão num contexto de nova fase que está se vivendo no Brasil de levar ao cumprimento da lei e fazer com que a lei coíba a impunidade. Eu interpretaria muito mais nessa linha do que um erro jurídico”, afirmou.
A defesa de Aécio diz que os R$ 2 milhões eram apenas um pedido de empréstimo e questiona a legalidade da delação da JBS.
5) Afastamento de Renan Calheiros
Em dezembro de 2016, o ministro do STF Marco Aurélio decidiu afastar Calheiros da Presidência do Senado, sob a justificativa de que ele não poderia estar na linha sucessória da Presidência da República sendo réu em ação penal no Supremo, um dos argumentos usados contra Cunha.
Com apoio da mesa diretora do Senado, Renan decidiu não cumprir a determinação até que o plenário do STF decidisse se mantinha ou não a liminar de Marco Aurélio. Os senadores fizeram fortes críticas à interferência no comando da Casa por meio de uma decisão monocrática.
A maioria da corte acabou decidindo a favor de Renan, determinando que ele poderia continuar no comando do Senado, mas não poderia assumir a Presidência na ausência de Temer ou do presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Nessa hipótese, que não chegou a ocorrer, o comando do país ficaria temporariamente nas mãos da presidente do STF, Cármen Lúcia.
Para Glezer, o “voluntarismo” e o excesso de decisões monocráticas do Supremo acaba provocando a erosão da autoridade da corte, com o consequente desrespeito de decisões. Outra determinação individual de Marco Aurélio, mandando a Câmara dar seguimento ao pedido de impeachment contra Temer, também nunca foi cumprida.