O descompasso entre a esquerda e a classe trabalhadora evangélica

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O principal discurso do prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (PRB), desde sua campanha eleitoral era de que não misturaria religião com política. A “garantia” era de que o passado eclesiástico do bispo licenciado da Igreja Universal não se confundiria com sua atuação no cargo público, alcançado depois de amargar quatro derrotas nas urnas nos últimos 12 anos, duas em disputa para comandar o Estado e duas pela Prefeitura.

Desde o início de sua gestão, não é, porém, difícil encontrar situações que mostram a Igreja presente na esfera pública, seja via exaltações a líderes evangélicos nas casas legislativas ou mesmo em decisões acerca de políticas sociais estratégicas. Em junho, a imprensa noticiou o rebaixamento da Coordenadoria de Diversidade Sexual, que perderia autonomia para criar políticas públicas à população LGBT, além da redução da subvenção municipal para as escolas de samba, que tem levado a uma verdadeira queda de braço entre o prefeito e os carnavalescos.

A cientista política Clarisse Gurgel afirma que o estreitamento entre o Estado e a Igreja Universal, e seu consequente favorecimento, não é exclusivo do governo Crivella, “isso esteve presente, em certa medida, em todos os governos que o antecederam”. No entanto, reconhece um fenômeno relevante na atual gestão, “a expansão do privado no público”, fruto de uma forte articulação da Igreja com o empresariado. “Uma expansão do privado em dois sentidos: de universalização do particular e de aumento da privação do povo ”.

Em entrevista à CartaCapital, a especialista diz estar em curso um processo de evangelização da classe trabalhadora fortalecido pelo cenário de crise econômica e institucional. “Temos uma classe trabalhadora aflita, em busca de estabilidade, e a Igreja, que atende, de alguma forma, esta demanda.  Se a Igreja faz o papel de Estado, nos morros e favelas do Brasil, hoje, ela conta com uma sede na prefeitura do Rio de Janeiro. A esquerda precisa disputar esses espaços”

Carta Capital: Como explicar esse movimento de expansão da Igreja Universal na política e na sociedade?
Clarisse Gurgel:Tenho observado uma demanda crescente da população por disciplina e limitações morais. Sobretudo em um momento em que a classe trabalhadora não sabe o dia de amanhã, a busca é por acolhimento, segurança, definições, e a Igreja dialoga muito bem com isso, como fonte produtora de limitações e delimitações, através da culpa e da provação. Há algo aí que indica uma demanda por uma força repressora. Algo que, curiosamente, nos lembra a repetição, no universo da esquerda, de uma prática dos manifestantes de avançarem e recuarem, diante do bloqueio das forças policiais. A cada ataque de bombas de gás e efeito moral, um grupo de indignados recua para, aos poucos, retornar, sem maior propósito que não este de manter esta dinâmica de fuga e reencontro com um limite, uma delimitação. Portanto, podemos identificar uma demanda comum entre os que vão aos atos e os que vão aos cultos e que ganha feições disto que aparenta ser uma demanda por repressão. Talvez, falte a nós da esquerda lidarmos com isto que é enigmático, contraditório e que aponta para algum papel comunal da disciplina. Caso contrário, o que há em comum entre fiéis e militantes passa despercebido.

CC:  Há um descompasso entre as demandas da esquerda e da população?
CG: Sim. A esquerda hoje é permeada por um perfil de classe média, os moradores da zona sul da cidade. A grande reivindicação desse grupo aparece para nós como o de liberdade, de ausência de limitações, algo que tem a ver com a crise das instituições e dos próprios partidos. O curioso é como esta demanda assume feições do oposto, quando notamos isto que mais parece um pedido para que a repressão nos delimite. São os velhos porta-vozes do novo. Costumo dizer que o novo é fazer o velho de novo. A palavra de ordem do povo não é por liberdade e ausência de disciplina. A classe trabalhadora busca por limites e encontra na Igreja a ideia de segurança, de tranquilidade e de salvação. Assim, a igreja dá forma ao fiel. É sua formadora.

CCComo isso se agrava em um contexto de crise econômica?
CG: Temos um setor de esquerda com caprichos de liberdade e uma classe trabalhadora que demanda limites e segurança coexistindo em um momento que se opera a Reforma Trabalhista e se ventila a Reforma da Previdência. Antes se tinha o dono do escravo que “cuidava” dele, enquanto ele cuidava do trabalho para o senhor. Depois, ao perceber que isso era muito custoso, converte-se para o trabalho assalariado, em que o trabalhador cuida de si e do trabalho do patrão. Agora temos também o microempreendedor individual que é um sujeito que cuida de suas próprias feridas e do seu próprio trabalho e que é responsabilizado pelos possíveis fracassos. A Reforma Trabalhista é o ápice desse processo.

O empresariado joga a responsabilidade da geração de empregos no trabalhador, que passa a entender que a salvação é empreender com seu próprio negócio. E onde ele aprende isso? Na igreja, com quadros de peso como o Edir Macedo. É tudo muito bem articulado. Se por um lado a Igreja oferece segurança e as contenções necessárias para esse cidadão que se sente solto no mundo, por outro vai dizer que a salvação está nele próprio, o que parece ser um discurso progressista, e que não é por defender a salvação individual e não coletiva.

A Igreja Evangélica é uma salvação para o capital em crise. Não é mais uma preocupação do empresariado manter suas taxas de lucro garantindo consumo através do emprego, a ideia é transformar todo a massa em microempreendedor individual. As Igrejas Evangélicas são essa grande escola por trabalharem esse imaginário do patrimônio na sociedade, por promover as soluções individuais para problemas coletivos. Isso encontra um terreno muito fértil na crise do capital.

CCEsse movimento não é exclusivo da política praticada por Crivella, certo?
CG: Não. A crise se desenvolve de maneira desigual, mas combinada no país inteiro. No Rio de Janeiro, o Estado viveu a farra das Olimpíadas e da Copa do Mundo e deveria se responsabilizar fiscalmente por não administrar bem suas contas, quando não paga os profissionais da saúde e educação. No âmbito do município, Crivella deveria rever suas contas, suas políticas fiscais. Mas como o que está em prática é um projeto de flexibilização do Estado que começa no governo federal e chega às federações, a saída é entregar a política pública para o setor privado. O fiel, que não consegue ter acesso a saúde e educação, é visto como incompetente porque não soube empreender.

O imaginário da solução individual para os problemas coletivos tem raiz no calvinismo, no presbiterianismo, e permeia um processo crescente de evangelização do pobre, no Rio de Janeiro.

CC:  Em que medida a crise institucional contribui com essa dinâmica?
CG: O desgaste brutal da política faz com que se perca a referência do público. No imaginário das pessoas, a solução da crise não virá desse âmbito. Falar em política pública na gestão Crivella parece até um anacronismo. A política é algo sujo, impuro, então entre ficar com políticos é melhor ficar com empresários porque a sujeira nunca está neles. Na mesma medida, é melhor que o recurso público esteja na mão de um empresário do que na dos chamados “políticos”. Com essa perda de referencial, não faz mais sentido o aspecto público da política pública. Cada vez mais, cresce a ideia de que o dinheiro tem que estar na mão de quem faz, em um contexto em que a forma de fazer as coisas não importa. O que importa é alcançar resultados. Aí, o capitalismo alcança o reino do céu, dado que é em sua forma que se encontra a raiz da exploração do trabalho, a forma do valor de troca, do trabalho abstrato. Um mundo em que as pessoas fecham os olhos para a forma como as coisas são feitas é o paraíso para o capital.

CC: Quais são os riscos desse enxugamento do papel do Estado?
CG: O risco maior é de uma barbárie, a conjugação de pobreza e desorganização política.  É curioso como, em pouco mais de um ano de ofensiva conservadora mais intensa, desde o impeachment de Dilma, a sensação que temos é de que experimentamos um grau de desalento semelhante ao experimentado no auge da ditadura civil-militar brasileira, em que os militantes estavam todos presos, exilados, mortos e asilados. Isto porque não testemunhamos apenas, no Brasil atual, um crescente constrangimento sobre marxistas e pensadores críticos e uma retirada radical de direitos dos trabalhadores. Diferente das décadas de 60 e 70 no Brasil, presenciamos uma incomparável adesão da massa ao imaginário liberal. Temos, portanto, a perda da fé na política, no coletivo, no associativismo, a crença de que a solução passa pelo dinheiro e a promessa de um futuro de pobreza extrema. O nome desta síntese é barbárie: uma multidão de miseráveis, que desaprenderam a demandar uma forma organizada e coletiva de atuação, em partidos, sindicatos, em movimentos sociais, mas que preservam algo desta falta, desta necessidade.

CC: Como a esquerda poderia disputar esse espaço? Há chances de reverter o cenário?

CG: Um filósofo, Slavoj Zizek, sustenta que, na tríade – pai, filho e espírito santo – o espírito santo é a forma comunitária que assume a fé cristã. Diferente de muitas religiões que conduzem o homem a uma busca por um encontro consigo mesmo, de maneira solitária, o cristianismo seria uma instituição fundada na comunidade. Se há algo de particular e singular em Cristo, por ser um homem de poderes únicos, míticos, a comunidade cristã seria sua universalização, o espírito santo. Há uma passagem no Velho Testamento, no Livro de Atos, em que Paulo, tal como um militante orgânico, propaga as concepções de um profeta chamado Jesus Cristo, jamais por ele visto. Paulo, tal como um revolucionário, que defende o que nunca testemunhou, descreve a forma como Cristo era compreendido por todos, independente de suas etnias, culturas e línguas. Fazendo uso de parábolas, Paulo começa a narrar a história de um som que veio do céu, como de um vento impetuoso, que encheu as casas dos assentados, e de línguas de fogo que pousaram sobre cada um deles.

A esquerda poderia assumir esta forma impetuosa, cumprindo papel de produção de uma linguagem comum entre os que trabalham. Infelizmente, sua atuação hoje já não chega aos locais de moradia, o tráfico e a Igreja cuidaram de dificultar fortemente este exercício. Agora, em um contexto de Reforma Trabalhista, a esquerda terá maior dificuldade também de chegar aos locais de trabalho. A esquerda precisa olhar para ela mesma, encarar seu mal-estar, sua perda de fé, que é um fenômeno no Brasil muito novo, muito recente. É desta perda fé nos valores da esquerda que notamos a relevância de termos fé nas coisas. Assim, nos deparamos com uma categoria pouco usual em nosso vocabulário, mas que encosta na dimensão espiritual da prática militante. Com o momento vivido no Brasil, estamos todos sem fé na humanidade, no futuro, na política, nos partidos, nos companheiros de militância. Mas, repito, é desta ausência que somos convocados a pensar o papel da nossa fé na política.

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Crédito:  Ana Luíza Basílio /Revista Carta capital – disponível na internet 13/01/2018

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