Quase tão antiga quanto as primeiras civilizações humanas, produzida há milhares de anos, a cerveja é a bebida alcoólica mais consumida do mundo – entre todas as outras, só perde para água e para o café.
Os brasileiros ingerem 66,9 litros per capita por ano, muito mais que a segunda colocada, a cachaça, com 11,5 litros.
Além de fazer sucesso nas mesas de bares e restaurantes, a cerveja agora chega às bancadas de laboratórios e centros de estudos de universidades e instituições de pesquisa do país.
Os estudos, cursos e pesquisas sobre a bebida surgiram para atender à demanda de consumidores que querem começar a produzir em casa, do volume crescente de microcervejarias e da expansão do mercado de cervejas especiais.
“Vimos a necessidade de ampliar o conhecimento porque o consumo desse produto mudou muito nos últimos 10 anos”, explica o professor Mateus Junqueira, do campus de Sete Lagoas (MG) da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Ao lado de outros dois colegas, ele criou em 2015 o Grupo de Estudos em Cervejas Artesanais (GCERVA).
De acordo com ele, o consumidor brasileiro está em busca de informações sobre essas bebidas que, hoje, estão cada vez mais acessíveis para compra. “As cervejas comuns, produzidas pelos grandes conglomerados, terão espaço sempre garantido no mercado, pois o Brasil precisa da ‘cerveja refrescante'”, diz Junqueira. “No entanto, as artesanais ou especiais chegaram para ficar.”
No GCERVA, a cerveja é incluída nessa categoria quando é produzida por cervejeiros amadores, em suas casas, e utilizando equipamentos básicos, como panelas, fogareiro e fermentadores baratos e com baldes alimentícios adaptados, por exemplo.
Há quem também denomine cerveja artesanal aquela feita em microcervejarias, de maneira industrial, com regulamentação do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Segundo a própria pasta, em 2017 houve um crescimento de 37,7% no número de fábricas registradas no Brasil. De acordo com a Associação Brasileira das Cervejarias Artesanais (Abracerva), existem cerca de 650 fábricas artesanais no país. Ao fim de 2018, preveem, o número deve saltar para mil.
Para a doutora em microbiologia Luciana Rocha Brandão, do Laboratório da Cerveja, do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (ICB-UFMG), as novas exigências dos consumidores são as maiores responsáveis pelo aumento da demanda por cervejas especiais no Brasil.
“Com o crescimento desse mercado, criam-se novos hábitos entre os apreciadores da bebida, que passam a beber menos, mas com mais qualidade e apreciando melhor os sabores”, diz.
Essas são algumas das razões pelas quais não falta público nos cursos e pesquisas sobre a cerveja. Brandão explica que o objetivo do seu laboratório é dar suporte técnico e científico aos fabricantes artesanais da bebida. Isso é feito por meio de análises microbiológicas, tanto do produto acabado quanto de toda a cadeia produtiva para detectar possíveis contaminantes.
“A produção deve vir acompanhada do controle de qualidade microbiológico, serviço que ainda não era oferecido em Minas Gerais e em grande parte do país”, diz.
No caso do GCERVA, há reuniões semanais da equipe para discutir as técnicas da produção artesanal e os tipos de cerveja, avaliar a perspectiva do mercado de especiais e organizar minicursos e workshops.
“O objetivo é aproximar a universidade da sociedade, além de divulgar os trabalhos de iniciação científica, conclusão de curso e mestrado que são desenvolvidos em torno do tema”, explica o professor Juliano Cury, um dos idealizadores e coordenadores do grupo.
No Rio Grande do Sul – Estado com o maior número de cervejarias do país, 142 -, pesquisadores do Laboratório de Ensaios Térmicos e Aerodinâmicos (Leta), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), criaram o LabBeer.
A ideia é estudar o processo de fabricação de cerveja sob o olhar acadêmico, detalhando as etapas de produção. Nos trabalhos, são aplicados os conceitos aprendidos em aula, como os de termodinâmica, transferência de calor e massa, instrumentação de ensaios, automação de sistemas e metodologias laboratoriais.
Segundo o professor e coordenador do LabBeer, Paulo Smith Schneider, o desafio é entender o que o processo de fabricação de cerveja necessita, ditando as restrições de cada uma de suas etapas. “Elas podem ser velocidade da troca térmica, quantidade de energia investida, o material utilizado nos equipamentos, características geométricas e assim por diante”, explica.
Mas por que é necessário ciência para fabricar cerveja, se ela é feita com apenas quatro ingredientes básicos – água, malte, lúpulo e levedura?
Na verdade, não precisaria, mas ajuda. “Da mesma forma que uma pessoa faz um bolo sem entender a formação da rede de glúten e os mecanismos de expansão da massa, por exemplo, é possível fazer a bebida por meio de conhecimentos práticos. Aliás, ela foi feita assim por milênios”, diz o engenheiro de alimentos Flávio Luís Schmidt, da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) da Unicamp.
De acordo com ele, que realiza pesquisas e dá cursos sobre o tema, à medida que o conhecimento foi sendo adquirido, passou-se a fazer a bebida com preocupações em melhorar o sabor, economizar nos insumos, no tempo, entre outros aspectos. “Portanto, não concordo que é difícil fazer uma boa cerveja”, diz. ” Mas as pessoas que sabem o que estão fazendo erram menos.”
Embora fazer cerveja não requeira conhecimentos especializados, há muita pesquisa por trás disso. “Sem dúvida, hoje em dia essa bebida é um assunto muito investigado”, diz a professora Renata Medina da Silva, que ministra o Curso de Fabricação Caseira de Cerveja, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). “Não há um nome específico para esta ciência, em função de ela ter um caráter multidisciplinar.”
De acordo com ela, essa multidisciplinaridade inclui pesquisadores das áreas de História e Antropologia, que há muitos anos estudam a origem da produção de cerveja, bem como as diferentes aplicações e receitas que as diferentes civilizações passaram a fazer desta bebida ao longo do tempo. “Da mesma forma, temos químicos, bioquímicos, geneticistas, microbiologistas, gastrônomos, nutricionistas, biomédicos, médicos e odontólogos desenvolvendo pesquisa com o produto em inúmeros países do mundo”, acrescenta.
Cada um desses profissionais tem também o seu foco específico, seja a bioquímica dos fermentos, fermentos novos ou geneticamente modificados, a origem geográfica e a domesticação dos fermentos e de outros insumos ao longo dos anos. As propriedades nutritivas de diferentes receitas da bebida, assim como as implicações, positivas e negativas, do seu consumo sobre a saúde humana.
“Nosso curso tem o objetivo de tornar os alunos aptos a fazer cerveja em casa, com ferramentas simples e adaptáveis a qualquer residência”, diz. “Mas ele também almeja oferecer a eles a oportunidade de entender de forma completa as diferentes etapas do processo.”