Restrição de foro privilegiado em pauta no STF atinge apenas 1% dos 54.990 beneficiados

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O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma no início de maio a discussão sobre mudança no modo como deputados federais e senadores são investigados, processados e julgados. Pelas regras atuais, eles estão submetidos apenas aos tribunais de instâncias superiores – o chamado foro privilegiado.

A discussão estava parada desde novembro do ano passado, quando o ministro Dias Toffoli pediu vista (maior tempo para análise) do processo. A maioria dos magistrados, no entanto, já se posicionou a favor da restrição dos privilégios para políticos, que passariam a ser exclusivos aos casos ocorridos durante o mandato e em decorrência dele.

A mudança atingiria 594 parlamentares, cerca de 1% do total de beneficiados pelo foro, 54.990, de acordo com um estudo divulgado pela Consultoria Legislativa do Senado no ano passado.

No dia 27 de março, Toffoli liberou o processo, conforme a assessoria de imprensa da corte. Nesta sexta-feira, a presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, o incluiu na pauta do dia 2 de maio.

O resultado parcial é de 8 a 0, com a ressalva de que Alexandre de Moraes apresentou divergências no voto em que concordou com o relator, Luís Roberto Barroso. Ele propõe restrição menor para o foro, que valeria também para crimes comuns, e não apenas aos relacionados à função.

Congresso Nacional
Congresso Nacional – Direito de imagem PEDRO FRANÇA/AG. SENADO Image caption Discussão no Judiciário pode mudar rito de processos contra autoridades

Também em novembro do ano passado o assunto chegou a avançar na Câmara, quando a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 333/2017 foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). A proposta teria impacto muito maior do uma eventual decisão do STF, já que prevê a extinção do foro especial para praticamente todas as funções que hoje gozam do benefício.

A PEC aguardava, sem previsão, votação em comissão especial e no plenário da Casa. A intervenção militar no Rio de Janeiro, contudo, colocou a medida na geladeira, já que, enquanto estiver em vigor, ela paralisa a discussão e votação de projetos que alterem a Constituição.

Estátua representa a Justiça em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília
Estátua representa a Justiça em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília – Direito de imagem FELLIPE SAMPAIO/SCO/STF – Image caption Em meio a placar de 8 a 0, Dias Toffoli pediu vistas e interrompeu processo que poderia limitar atual abrangência do foro

Quem tem direito?

A estimativa da Consultoria Legislativa do Senado é de que 54.990 autoridades tenham hoje foro privilegiado.

Assim, a mudança discutida pelo Supremo atingiria cerca de 1% dos beneficiados atuais – os 513 deputados federais e os 81 senadores. Barroso estima que, com a limitação discutida no STF, cerca de 90% dos casos envolvendo políticos que estão hoje na corte seriam enviados a instâncias inferiores.

O julgamento havia sido iniciado em junho de 2017, mas foi interrompido com o pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes, retomado em novembro e suspenso novamente por Toffoli.

Trata-se de uma questão de ordem relativa à Ação Penal 937, que analisa a situação do prefeito de Cabo Frio (RJ), Marquinho Mendes (PMDB).

Denunciado por compra de votos nas eleições de 2008, o político cumpriu o mandato, tomou posse da cadeira de deputado federal em 2015 como suplente de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e, em 2016, foi eleito pela terceira vez para a prefeitura de Cabo Frio, fazendo com que seu processo mudasse de foro diversas vezes.

Manifestantes em frente ao Congresso Nacional
Manifestantes em frente ao Congresso Nacional – Direito de imagem PAULA CINQUETTI/AG. SENADO – Image caption Brasil é recordista no número de autoridades com foro privilegiado

Na primeira sessão, Luís Roberto Barroso, Marco Aurélio Mello, Rosa Weber e a presidente da corte, Cármen Lúcia, se posicionaram a favor da restrição. Na votação de novembro, Alexandre de Moraes, Celso de Mello, Edson Fachin e Luiz Fux também votaram pela limitação.

Apesar de já ter maioria do colegiado, a decisão do Supremo só tem validade quando todos os magistrados emitirem voto e a decisão for publicada em acórdão.

O texto que está na Câmara, por sua vez, prevê o fim do foro especial para praticamente todas as autoridades hoje previstas na lei. As exceções seriam o presidente da República, seu vice e os presidentes da Câmara, do Senado e do STF.

Ainda de acordo com o estudo da Consultoria Legislativa do Senado, 38.431 funções têm direito a foro, entre políticos, ministros de Estado, juízes, promotores. As Constituições estaduais preveem ainda o benefício para outras 16.559 mil funções, entre prefeitos, secretários, procuradores, vereadores e defensores.

A mudança discutida no STF é mais branda que a da Câmara, explica o assessor legislativo da Câmara Newton Tavares Filho, porque a corte não tem a prerrogativa de alterar a Constituição, mas apenas de interpretá-la. A extinção do foro, por exigir uma mudança da Carta, precisa passar pelo Legislativo.

Como funciona em outros países

Autor de um estudo técnico que compara o sistema brasileiro com o de 16 outros países, Tavares Filho afirma que no resto do mundo o foro especial é restrito a poucos líderes, um número que dificilmente passa de algumas dezenas – presidentes da República, do Senado, da Câmara, primeiros-ministros.

Ele é utilizado em diversos países sob a justificativa de proteger cargos públicos-chave de perseguição política. A ideia é permitir que autoridades sensíveis a represálias e intimidação sejam julgadas por tribunais isentos.

“A questão é que nós não temos provas concretas dessa isenção”, pondera o especialista, ressaltando que Brasil é recordista no número de autoridades com foro privilegiado.

Prédio do Departamento de Justiça dos Estados Unidos
Prédio do Departamento de Justiça dos Estados Unidos – Direito de imagem REUTERS – Image caption No que diz respeito ao foro privilegiado, EUA tem sistema oposto ao do Brasil

Em muitos casos, a prerrogativa se limita aos delitos relacionados ao cargo e não abrange os crimes comuns, como no Brasil. Os crimes de responsabilidade, que ensejam os processos de impeachment, têm um conjunto de regras à parte, que também varia a depender do país.

O sistema que mais se assemelha ao brasileiro é o da Espanha, onde todos os parlamentares têm direito a foro privilegiado e, por isso, são julgados apenas pela Câmara Penal do Tribunal Supremo. “Estamos falando de algumas centenas de pessoas, isso já é uma situação excepcional”, diz Tavares Filho.

A lista também é longa na Colômbia, onde os congressistas – além de alguns magistrados, determinados agentes do Ministério Público, procurador-geral, controlador-geral etc. – estão sob a competência da Corte Suprema.

Os Estados Unidos são o extremo oposto. Nem o presidente americano tem prerrogativa de foro. Esse é um privilégio restrito a alguns diplomatas, embaixadores e cônsules – ou seja, é uma questão mais ligada ao direito internacional.

Na Alemanha, o foro existe apenas para o presidente, que é julgado pela Corte Constitucional em casos de impeachment, previsto para qualquer violação da lei constitucional ou da lei federal. Para ser aberto, o processo precisa passar por uma moção no Bundestag e no Bundesrat, equivalentes à Câmara e ao Senado.

A constituição francesa, por sua vez, dá imunidade ao presidente, que não pode ser sujeito a nenhuma ação, ato de instrução ou ato persecutório perante nenhuma jurisdição ou autoridade administrativa enquanto estiver no cargo. Os casos de impeachment tramitam em uma corte especial formada por membros do Congresso.

Em 1993, os ministros de Estado franceses perderam o foro privilegiado na Suprema Corte e passaram a ser julgados pela Cour de Justice de la République, formada por 12 parlamentares e 3 juízes, apenas nos casos em que os delitos estão diretamente ligados ao cargo. O órgão foi definido como “jurisdição de exceção” pelo presidente Emmanuel Macron, que é favorável à sua supressão, em declaração dada no fim do ano passado.

Como já foi no Brasil

Collor caminha em frente ao Palácio do Planalto
Direito de imagem ELZA FIUZA/AG. BRASIL – Image caption No Supremo, Collor foi absolvido por falta de provas em ação penal que o acusava de corrupção passiva

Mas se hoje o Brasil se destaca pelo alcance das categorias com foro especial, a situação já foi ainda mais abrangente.

Até 1999, a prerrogativa de foro por função no Brasil valia mesmo depois do fim do exercício funcional – no caso dos políticos, do mandato. A previsão foi estabelecida pela Súmula 394, editada em 1964 e cancelada pelo próprio STF.

Foi ela que garantiu que o ex-presidente Fernando Collor fosse julgado em 1994 pelo Supremo na ação penal que apurava a prática de corrupção passiva. Ele foi absolvido por falta de provas.

A mudança na regra permitiu que as denúncias contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por exemplo, fossem enviadas à primeira instância. Ele foi preso no último dia 7, depois de condenado a 12 anos e um mês por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

O presidente em exercício continua sendo processado e julgado pelos ministros do STF, mas apenas com autorização da Câmara dos Deputados. O caso que ganhou destaque no ano passado envolvendo Michel Temer é ilustrativo nesse sentido. Ele foi denunciado pela Procuradoria-Geral de República (PGR) duas vezes, mas o plenário da Casa bloqueou o prosseguimento. O processo fica parado até o peemedebista deixar o Planalto e, depois disso, será enviado à primeira instância.

O ex-ministro do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) José Augusto Delgado lembra que até recentemente os governadores também gozavam da blindagem do Legislativo. Para que fossem processados no STJ, era preciso que as assembleias estaduais permitissem.

Duas decisões do STF de maio de 2017, uma delas envolvendo processo que tinha como réu o governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT), mudaram a jurisprudência sobre o assunto.

“Eu passei 17 anos no tribunal, recebi vários processos contra governadores. Em nenhum deles a assembleia permitiu que eles se tornassem réus”, diz Delgado, que integrou o STJ entre 1995 e 2008.

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