Ciência mostra que a corrupção vai moldando áreas cerebrais de um indivíduo ao ponto de ele deixar de se constranger quando age de forma desonesta
Ela está nas manchetes dos jornais, na Bíblia, no Código de Hamurábi, no livro indiano Arthashastra, do século 4 antes de Cristo. Acompanhando o homem em sua trajetória pela Terra, a corrupção continua atualíssima e, se na Antiguidade clássica intrigava filósofos como Aristóteles — autor de De generatione et corruptione —, hoje é estudada por cientistas, que tentam encontrar, no cérebro, os mecanismos associados à desonestidade.
Corrupção, como ensina o Houaiss, não é só subornar ou tomar para si o que não lhe pertence. Trata-se de “depravação de hábitos, costumes etc.”, refere-se à devassidão moral. Ao investigar a fisiologia do corrupto, as pesquisas debruçam-se tanto sobre sociopatas que prejudicam os outros sem sentir o menor remorso quanto sobre o cidadão comum, dito “de bem”, que, contudo, é capaz de aproveitar o quebra-quebra em uma manifestação de rua para saquear o supermercado.
Não que o cérebro seja o “culpado” pela desonestidade. É quase o contrário disso. Se, de fato, alguns psicopatas exibem estruturas e funções cerebrais diferentes do que se considera normal, como a interrupção de circuitos neuronais associados a empatia, medo e culpa, elas não levam necessariamente ao crime. Estudos estimam em 1% a 3% o índice de psicopatas na população mundial, e a maioria deles não vai se desviar das normas sociais ao longo da vida. Por outro lado, nem todo corrupto — sistêmico ou de ocasião — apresenta alguma alteração na atividade dos neurônios. O que os estudos mostram é como o comportamento imoral vai moldando o cérebro, até que ele se acostume a burlar as regras. Isso os cientistas já conseguiram visualizar em exames de imagem como ressonância magnética funcional.
“O que sempre me preocupou não são os serial killers, mas o que aconteceu na Iugoslávia de 1991 a 2001”, ilustra o psiquiatra Pedro Antônio Schmidt, pesquisador do Instituto do Cérebro da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Inser/PUC-RS). Um dos palestrantes da conferência Mecanismos cerebrais da corrupção, que inaugurou o Congresso Brain 2018, na semana passada, em Gramado, Schmidt refere-se à guerra na região dos Bálcãs que deixou quase 98 mil mortos e foi marcada pelos estupros em massa nas zonas de conflito. “De repente, começou um ódio; vizinhos que eram amigos se tornaram inimigos. Como alguém vira assassino? Como acha o.k. estuprar a filha do vizinho? Essas pessoas não eram assassinas antes, como passam a aceitar esse tipo de coisa?”, questiona.
Outro comportamento citado por Schmidt é a alta tolerância do brasileiro com contraventores, como Aniz Abrahão David, que reuniu celebridades e políticos na festa de arromba que comemorou seu aniversário, no ano passado; e mesmo com criminosos. “Quando o ex-jogador de futebol Bruno saiu da cadeia com um habeas corpus do ministro Marco Aurélio de Mello, ele tinha um fã-clube. Mas ele não era mais um goleiro, era um assassino.” Bruno Fernandes foi condenado a 22 anos de prisão pelo assassinato e a ocultação de cadáver da ex-namorada Eliza Samudio, além do sequestro do filho que teve com ela. Mostrando uma foto de pessoas na estrada, cheias de sacolas na mão, o psiquiatra contextualiza: “Esse caminhão frigorífero tombou no interior do Paraná. As pessoas saquearam a carga. Não eram pessoas miseráveis, elas não estavam passando fome. São tipos de atitudes que nós, brasileiros, temos há muito tempo”, lamenta.
O cérebro se adapta à desonestidade, diz o pesquisador, citando um artigo publicado em outubro de 2016 na revista Nature Neuroscience. O trabalho da Universidade College London (UCL) e da Universidade de Duke identificou alterações na amígdala, estrutura cerebral associada ao medo e à resposta de fuga/luta, à medida que os atos desleais vão sendo repetidos. “Suspeitávamos que deveria haver um princípio biológico básico que contribui para esse fenômeno, chamado de adaptação emocional”, conta Tali Sharot, professora de neurociência cognitiva da UCL. Neil Garrett, pesquisador da mesma instituição, explica que o processo adaptativo é um princípio-chave no estudo de como o cérebro processa informação sensorial. “Se você entra em uma sala repleta de fumaça de cigarro, o cheiro inicial será muito forte. Depois de alguns instantes, o seu sistema olfativo vai se ajustar à presença da fumaça, e você vai percebê-la bem menos”, ilustra.
Encorajados
A hipótese dos pesquisadores era a de que a adaptação emocional também pode ocorrer na tomada de decisões. “Especificamente, queríamos saber se nos adaptamos a situações que, inicialmente, consideramos aversivas, como trapacear, ser infiel e mentir”, afirma Garrett. Isso poderia ser constatado caso a resposta emocional, com o tempo, começasse a enfraquecer. Para verificar a tese, os pesquisadores desenvolveram uma série de testes, dos quais participaram 55 pessoas com idade entre 18 e 65 anos. Os voluntários trabalharam em pares — atores contratados pela equipe — em uma tarefa, que consistia em pedir que o outro adivinhasse a quantidade de dinheiro contido numa jarra cheia de moedas de centavos de libras. Eles foram informados que, dependendo da resposta (certa, superestimada ou subestimada), poderiam se beneficiar, favorecer o outro ou obter vantagens para ambos.
Outra regra do jogo: os participantes poderiam mentir à vontade. O resultado mostrou que os voluntários não apenas trapacearam, como o fizeram cada vez mais, caso fossem beneficiados. Nas situações em que a desonestidade traria vantagens financeiras a eles e aos pares, os voluntários se mostraram ainda mais estimulados a passar por cima da verdade, sugerindo, segundo os pesquisadores, que isso parecia tornar a mentira mais aceitável. No fim, para verificar a reação do cérebro, os cientistas repetiram o teste com 25 pessoas que, dessa vez, participaram da tarefa enquanto eram escaneadas pelo exame de ressonância magnética funcional.
“O que descobrimos foi que, à medida que o tempo passava, as respostas das áreas associadas à emoção, especialmente na amígdala, diminuíam nos participantes que estavam mentindo bastante. Isso sugere que o ato de dizer mentiras reduz a resposta emocional do nosso cérebro à desonestidade e nos encoraja a contar mentiras maiores no futuro”, explica Neil Garrett. Em um dos testes do estudo, os pesquisadores conseguiram mostrar, inclusive, que a diminuição na atividade cerebral é um preditor do aumento subsequente do nível de trapaça. “Acredito que essa foi a primeira evidência empírica de que o comportamento desonesto vai aumentando quando se repete”, diz o pesquisador. A neurocientista Tali Sharot explica: “Normalmente, quando mentimos para obter alguma vantagem disso, a nossa amígdala produz um sentimento negativo, limitando até onde podemos ir com a mentira. Mas, conforme trapaceamos, essa reação vai reduzindo até se tornar muito fraca..” Nesse momento, mentir já não causa constrangimento ao desonesto.
Como os psicopatas
Daí a importância de frear o comportamento desonesto, observam especialistas. “Quando os corruptos começam a roubar, podem se sentir culpados, mas, então, se acostumam com isso e não se importam mais. Se não forem punidos, esse comportamento ficará cada vez mais normal”, observa Antoine Bechara, professor de psicologia da Universidade de Southern Califórnia e especialista no processo de tomada de decisões, que também foi palestrante na conferência Mecanismos cerebrais da corrupção.
O neurocientista compara o cérebro do corrupto sistêmico, incluindo políticos desonestos, ao de um psicopata, cuja amígdala funciona de maneira diferente do restante da população. “O psicopata verdadeiro tem uma patologia real no córtex pré-frontal. Ele não se sente obrigado a seguir as regras”, diz Bechara. “A raiz do comportamento corrupto está na recompensa. Nós não agimos dessa forma porque conseguimos controlar nosso comportamento e, na minha opinião, fazemos esse controle por causa da punição. Se o corrupto não é condenado pela Justiça, não há razão para deixar de se comportar de maneira desonesta”, acredita.
Da paz à agressão
O episódio da guerra da Bósnia lembrado pelo psiquiatra Pedro Antônio Schmidt no congresso Brain 2018 já foi observado em muitos outros conflitos, como na Libéria e em Ruanda. Em tempos de paz, pessoas de grupos étnicos distintos vivem em harmonia. Porém, tornam-se inimigas da noite para o dia, podendo cometer atrocidades que nunca imaginaram ser capazes, ao se deflagrar um confronto armado.
Pesquisadores do Instituto Max Planck, na Alemanha, acabaram de publicar um estudo no qual tentam responder por que a violência pode alcançar esse nível entre pessoas que sempre conviveram pacificamente. A pesquisa investigou o comportamento de estudantes do leste da Eslováquia em relação a ciganos.
Para examinar o comportamento hostil, os pesquisadores pediram aos jovens que participassem de um jogo no qual poderiam prejudicar o outro. Pelas regras, dois jogadores recebem dois euros cada e, simultaneamente, escolhem pagar 20 centavos para reduzir o rendimento do opositor em um euro ou simplesmente manter o dinheiro inalterado. Os jogadores permanecem anônimos e jogam um contra o outro apenas uma vez.
Intencional
Os pesquisadores usaram uma lista de nomes típicos para informar aos participantes se o par era integrante da população majoritária eslovaca ou da minoria cigana. Além disso, o experimento foi projetado de forma que três jovens da mesma turma tomassem a decisão um após o outro — portanto, eles sabiam qual tinha sido a escolha dos colegas que jogaram anteriormente.
Os cientistas descobriram que o comportamento de deliberadamente prejudicar o opositor foi significativamente influenciado pelas escolhas dos pares. Além disso, quando achavam que estavam jogando contra ciganos (identificados pelos nomes lidos pelos pesquisadores), os estudantes se mostraram ainda mais agressivos. “A hostilidade dobrava quando dirigida aos ciganos, o que não aconteceu contra pessoas dos próprios grupos sociais”, observaram os autores do trabalho.
“Nossos resultados sugerem que normas sociais fracas podem levar a uma mudança súbita no comportamento individual em relação a outro grupo étnico, passando da boa convivência à agressão. Por isso é, importante processar e punir crimes de ódio”, disse, em nota, Jana Cahlíková, pesquisadora do Max Planck.
Vulneráveis
Nos últimos anos, os atos de agressão a esse povo aumentaram no país europeu e vizinhos. Segundo o relatório da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia (UE), divulgado em abril, um em cada três ciganos é vítima de assédio na UE. Além disso, as condições de vida são bem distintas das de outros moradores do continente: 80% dos ciganos estão em risco de pobreza, contra 17 % da média geral.
* A repórter viajou a convite da organização do Brain 2018