Se instituições como a política e a Justiça são concebidas por seus responsáveis como uma confraria de interesses pessoais, à custa das pessoas, é inevitável que surja a tentação de soluções autoritárias para impor e decidir o que é bom e o que é mau, à margem do que a sociedade possa pensar.
E esse é um perigo real hoje no Brasil, onde o emblemático caso de Lula, com tudo o que arrasta de paixões e interesses e que pode condicionar o presente e o futuro do país, está revelando que o conceito de ética está desmoronando a ponto de não se saber mais onde começa a verdade e a mentira, a liberdade e a tirania.
Quando uma sociedade percebe que os principais responsáveis nacionais por lutar pelo princípio da ética – vista como o sal que impede que a democracia apodreça – são os primeiros a pisoteá-la e ajoelhá-la perante seus interesses, não há nada de estranho que ela acabe envenenada, dividida, incrédula e tentada a tomar a justiça nas suas próprias mãos. Nesse ponto, a explosão de violência é inevitável.
Quando magistrados, juízes e políticos (preciso dar nomes?) usam seu poder a favor ou contra os que consideram ser “deles”, em detrimento do princípio de que ela deve ser igual para todos; quando os que nomeiam os cargos consideram normal que os nomeados sejam gratos a esses padrinhos ou ao seu partido, mesmo que à custa de usar dois pesos e duas medidas; quando observamos esse conluio político judicial à custa da sociedade e até da Constituição, não é de estranhar que as pessoas nas ruas vejam isso como um grotesco espetáculo que não corresponde ao peso e à importância de uma sociedade como a brasileira.
Que Lula seja julgado como qualquer outro cidadão, nem com maior nem com menor rigor, já que a lei é igual para todos. Mas que a sociedade sinta de forma palpável que esse rigor da lei serve também com os outros personagens da política. Do contrário, não é de estranhar que acabe convencida de que existem réus de estimação e réus para serem perseguidos.
E quando uma sociedade se sente traída e burlada, não é difícil que caia na tentação de jogar a ética na sarjeta para fazer justiça com as próprias mãos. Pudemos ver isso nos últimos dias, depois da loucura judicial da ordem de domingo do juiz Rogério Favreto de tirar Lula da prisão, e tudo o que isso desencadeou no mundo político e judicial. Um episódio que serve para pôr sobre a mesa a irritação nacional contra as diversas instituições. O eco que isso produziu entre cidadãos de ambos os lados do espectro político foi significativo e aterrador. Por parte da esquerda, os tuítes violentos lançados à sombra do anonimato das redes, como os que diziam: “Eu queria libertar Lula com as minhas mãos, e com as mesmas matar Moro”, ou “Gente, é preciso mandar matar o Moro”. E pela direita, a divulgação do celular do juiz Favreto, que também culminaram em ameaças de morte a ele e à sua família, e até o tuíte do general Paulo Chagas, que, com a cara descoberta, incita à violência contra o juiz que mandou soltar a Lula: “Gauchada!!! O nome dele é Rogerio Favreto. É um desembargador petralha, está de plantão no TRF.4. Será fácil encontrá-lo para manifestar-lhe, com a veemência cabível, a nossa opinião sobre ele e a sua irresponsabilidade. Ele é mais um apaixonado pelo ladrão maior. Conversem com ele”.
Alguém poderá estranhar que a sociedade se sinta em guerra? Dividida em lados, como quem a governa, quando vê que aqueles em quem deveria confiar para que a deusa da justiça não seja estuprada a colocam aos pés de seus piores interesses?
Até nas guerras, nos campos de batalha, existem entre inimigos certas regras e pausas em que os soldados enfrentados param para conversar e até se confraternizar. Na guerra do Brasil, não parece haver nem momentos de pausa para refletir. Existirá alguém com autoridade e moralidade capaz de erguer a bandeira branca da paz, ou os políticos continuarão aproveitando o descontrole que criaram para continuar pescando nas águas revoltas?
Quando na Espanha, há mais de 40 anos, faleceu o ditador militar Franco, o país, ferido com mais de um milhão de mortos vítimas da guerra civil, estava partido em dois. O então futuro rei Juan Carlos, perante o cadáver do ditador, prometeu: “Serei o rei de todos os espanhóis”. Ali começou a difícil e ainda inacabada reconciliação nacional.
Quando em um país perde-se a medida para distinguir o bem do mal, onde a Justiça pode ter muitas caras e a ética aparece doente e desprezada, a democracia corre perigo de morte e abrem-se as portas dos fantasmas autoritários.
Artigo publicado na página do El PAÍS BRASIL – disponível na internet 13/07/2018
Nota: O presente artigo não traduz a opinião do ASMETRO-SN. Sua publicação tem o propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.