Com as contas públicas desequilibradas, o governo Jair Bolsonaro pode ficar sem dinheiro já nas próximas semanas para oferecer crédito barato aos produtores rurais e pagar despesas cruciais como Bolsa Família e aposentadorias do INSS.
Para evitar esse problema, o Planalto precisa que o Congresso aprove em até duas semanas autorização para emitir quase R$ 249 bilhões em dívida.
Se o Congresso não autorizar a União a fazer essa captação de recursos se endividando, o presidente terá uma escolha difícil na ponta da caneta: cancelar as despesas e agravar a crise econômica do país ou mantê-las e correr o risco de sofrer um processo de impeachment.
Por trás desse possível dilema está a chamada “regra de ouro” – norma constitucional que proíbe o governo de fazer dívidas para bancar despesas correntes (gastos com administração e serviços públicos, como salários de servidores, benefícios sociais, vacinas, material escolar, contas de luz, etc), salvo se houver autorização expressa do Congresso.
O objetivo da restrição é evitar um descontrole da dívida pública e garantir que gerações futuras não tenham de arcar com despesas feitas no passado.
“Pode até não aprovar (o crédito suplementar de R$ 248,9 bilhões), mas aí você está diante de um quadro que é eventualmente de colapso social e econômico”, alertou o secretário de Macroavaliação Governamental do Tribunal de Contas da União (TCU), Leonardo Albernaz, durante audiência na Comissão Mista de Orçamento (CMO) do Congresso há duas semanas.
O relator do Projeto de Lei que trata do tema, deputado Hildo Rocha (PMDB-MA), apresentará na quarta-feira (05/06) seu texto para votação na CMO, recomendando a liberação do crédito.
A expectativa é de que o valor seja aprovado e, no mesmo dia, a matéria seja votada em sessão conjunta do Senado e da Câmara convocada pelo presidente do Congresso, senador David Alcolumbre (DEM-AP).
Rocha diz que o governo é o culpado pela demora na análise do pedido – o Executivo solicitou autorização para o crédito extra em março, mas demorou a enviar informações solicitadas pela CMO. “Estamos correndo contra o tempo”, criticou.
Entenda melhor em quatro pontos as polêmicas em torno da regra de ouro.
1 – Quais despesas estão em risco?
Quando o governo enviou ao Congresso o pedido de crédito suplementar de quase R$ 249 bilhões, disse que o grosso (cerca de R$ 204 bilhões) seria para cobrir as despesas com aposentadoria do INSS.
Outros R$ 30 bilhões iriam para o benefício social concedido a idosos e deficientes em situação de pobreza extrema (Benefício de Prestação Continuada, o BPC).
O restante estava previsto para Bolsa Família (R$ 6,6 bilhões) e “subsídios e subvenções econômicas”, como o Plano Safra (R$ 8,2 bilhões).
“Eu acho que o Congresso vai aprovar, mas fica a tensão até ser aprovado. Você imagina uma pessoa que recebe da Previdência, como é que ele faz com a notícia de que eventualmente no mês que vem pode não ter o benefício? Essa pessoa vai evitar consumir, vai poupar. A própria expectativa já gera um impacto econômico”, explicou à reportagem o economista Manoel Pires, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre-FGV).
O secretário de política agrícola do Ministério da Agricultura, Eduardo Sampaio Marques, também reforçou a urgência da aprovação para garantir o planejamento dos produtores rurais.
Ele destacou na audiência pública da CMO que o grosso da safra brasileira é plantado a partir de setembro, por isso, o Plano Safra precisa ser lançado neste mês, dando tempo ao fazendeiro para fazer o financiamento.
“Não posso deixar passar de junho porque aumenta a imprevisibilidade para o setor”, apelou aos parlamentares.
Não está claro, porém, qual o valor real de dívida que o governo precisa contrair. O próprio Tesouro Nacional reviu para R$ 146,7 bilhões a necessidade de financiamento por causa de receitas financeiras acima do esperado, com operações do Banco Central e devolução de títulos públicos que haviam sido repassados ao BNDES.
Apesar disso, a equipe econômica insiste para que o Congresso aprove os R$ 248,9 bilhões, afastando qualquer risco de descumprimento da regra.
Se o crédito não for aprovado, Albernaz, do TCU, prevê que o governo acione o Supremo Tribunal Federal para poder executar as despesas sem incorrer em crime de responsabilidade.
“É impensável falar recursos para BPC. Se isso acontecer, é o Supremo que provavelmente vai entrar em ação, e vai mandar pagar. E a gente vai estar na mesma situação, dívida para custear despesas correntes”, ressaltou, ao defender a aprovação do crédito suplementar.
2 – Regra de ouro em xeque
O princípio da regra de ouro – norma adotada também em outros países – é evitar que o governo se endivide para custear despesas presentes que não beneficiarão gerações futuras, que terão de pagar a dívida depois com seus impostos.
Dessa forma, a Constituição estabelece que a União só pode fazer novas operações de crédito no limite do valor previsto para investimentos, como, por exemplo, obras que melhoram a infraestrutura do país.
Esse princípio é alvo de controvérsia entre economistas, já que parte das despesas correntes, como gastos em Educação e Ciência e Tecnologia, também geram benefícios de longo prazo.
Além disso, alguns países têm flexibilizado a regra para evitar ajustes fiscais muito duros, que possam agravar crises econômicas. Foi o que aconteceu com o Reino Unido e Alemanha após a turbulência financeira internacional de 2008, nota Manoel Pires.
“Quando o país passa por situação de crise, a regra de ouro acaba imponto um ajuste fiscal muito abrupto. Ao não haver interesse em fazer esse ajuste por questões sociais, os países que eu estudei abandonaram a regra de ouro e impuseram regras alternativas que tornassem esses ajustes mais graduais”, ressaltou.
Alguns estudiosos das finanças públicas também têm criticado a aplicação da regra no Brasil porque, efetivamente, ela não tem sido capaz de evitar o aumento do endividamento público nem o corte dos investimentos.
“A regra tem um objetivo que, em tese, é nobre, mas o desenho é ruim. Ela é inócua”, disse Albernaz, na audiência da CMO.
Os investimentos federais, que somaram de R$ 77,5 bilhões em 2014, estão previstos para apenas R$ 33,6 bilhões neste ano, mas tendem a ficar abaixo disso.
Já a dívida pública bruta passou de 63% do PIB em 2014 para quase 80% hoje. Esse aumento reflete a necessidade de emitir novos títulos públicos para pagar os juros da dívida, já que há cinco anos o governo não consegue economizar para cobrir essa despesa.
3 – Como o país chegou a essa situação?
A encrenca de hoje é reflexo de anos de desequilíbrio nas contas públicas – desde 2014, a União tem apresentado rombos bilionários, acumulando déficit de R$ 550 bilhões em cinco anos. A previsão é de novo resultado negativo neste ano.
Segundo o economista Manoel Pires, pesquisador do Ibre-FGV, isso reflete um crescimento acelerado das despesas, puxado por gastos obrigatórios como as aposentadorias, ao mesmo tempo em que se vê uma expansão menor da arrecadação devido ao fraco desempenho da economia.
Os dados do Tesouro Nacional mostram que as receitas federais cresceram acima das despesas por cinco anos seguidos, de 2012 a 2016, período quase todo governado por Dilma Rousseff. A situação se inverteu nos dois últimos anos do governo de Michel Temer, em que foi implementado um controle mais rígido das despesas, mas não foi suficiente para trazer as contas para o azul.
“O que vemos hoje é reflexo da irresponsabilidade fiscal do governo Dilma”, crítica Zeina Latif, a economista-chefe da XP Investimentos.
Apesar do desequilíbrio por anos seguidos, algumas especificidades da regra de ouro brasileira acabaram evitando que a trava no endividamento para cobrir despesas correntes fosse acionada antes, destaca Manoel Pires.
Isso porque foram usadas receitas financeiras obtidas pela União, como lucros do Banco Central (por exemplo, quando o dólar se valoriza elevando o valor das reservas internacionais em reais) ou o pagamento de repasses concedidos no passado ao BNDES. “São operações que reduzem a necessidade de emissão de dívida”, explica o pesquisador do Ibre.
Novas regras aprovadas no Congresso, porém, vão reduzir bastante esse tipo de repasse do Banco Central, enquanto os pagamentos do BNDES, que chegaram a R$ 130 bilhões em 2018, tendem a perder fôlego.
4 – Como resolver o problema?
A Instituição Fiscal Independente do Senado (IFI) projeta que o governo terá de pedir créditos suplementares anualmente até 2026, quando finalmente a União deve voltar a ter saldo positivo nas contas públicas.
“A gente é pródigo em criar regras fiscais, mas não em cumprir as regras. Cumprir significa fazer o arroz com feijão, cortar gastos, aumentar receitas, ou fazer uma combinação dessas duas coisas”, disse aos parlamentares o diretor-executivo da IFI, Felipe Salto.
A principal proposta do governo para controlar as contas é a reforma da Previdência, já que o envelhecimento da população tem provocado aumento acelerado dos gastos com aposentadorias.
Essa medida, porém, tem impacto gradativo ao longo dos anos e não vai impactar imediatamente no cumprimento da regra de ouro.
Para Manoel Pires, um ajuste deveria também passar por medidas que aumentem a receita, com reversão de parte das renúncias fiscais, como as desonerações da Zona Franca de Manaus ou limitação do Simples.
Ele também defende que seja aprovada uma emenda constitucional que modifica a regra de ouro.
Na sua avaliação, em vez de prever que o Congresso possa autorizar créditos suplementares, seria melhor ter “gatilhos” automáticos para a redução dos gastos e aumento de despesas.
“É preciso dar instrumentos para que o governo, uma vez descumprida a regra de ouro, possa voltar a controlar dívida e aumentar investimento”, argumenta.
“Por exemplo, a Constituição poderia limitar o crescimento da folha de pessoal (gastos com contratação e salário dos servidores) pela inflação enquanto a regra de ouro estiver sendo descumprida, ou reverter as renúncias tributárias em 20%”, exemplifica.