Acordo entre Mercosul e UE enfrenta resistência na França

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Governo francês diz “não estar pronto” para ratificar pacto comercial. Sindicatos e políticos do país criticam o tratado, temendo prejuízos, por exemplo, pelas diferenças nos padrões de qualidade entre os blocos.

A França “ainda não está pronta” para ratificar o acordo de livre-comércio entre a União Europeia (UE) e o Mercosul, fechado na semana passada após duas décadas de negociações entre os dois blocos.

“Vamos observar em detalhe e, em função desses detalhes, decidiremos. Por enquanto, a França não está pronta para ratificar”, disse a porta-voz do governo francês, Sibeth Ndiaye, em entrevista à emissora francesa BMF TV nesta terça-feira (02/07).

Ela adiantou que, assim como foi feito durante as negociações para aprovar o acordo comercial entre o Canadá e a UE, a França pedirá garantias ao Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, países que integram o Mercosul. O pacto, cuja aprovação foi amplamente celebrada pelos governos sul-americanos, é o maior tratado bilateral de comércio já assinado pelo bloco europeu.

    
Agricultores franceses temem invasão de produtos sul-americanos e diferença nos padrões de qualidade
Agricultores franceses temem invasão de produtos sul-americanos e diferença nos padrões de qualidade

Por sua vez, o ministro francês do Meio Ambiente, François de Rugy, frisou que “a nova Comissão Europeia e sobretudo o Parlamento Europeu irão analisar minuciosamente esse acordo antes de ratificá-lo”. A confirmação, segundo ele, só virá “se o Brasil respeitar os seus compromissos”.

“É preciso lembrar a todos os países, entre eles o Brasil, de suas obrigações. Quando assinamos o Acordo de Paris colocamos em prática uma política que permite atingir objetivos de redução de emissão de gases de efeito estufa e de proteção da Floresta Amazônica”, disse Rugy em entrevista à rádio Europe 1.

A França é um dos países que mais vem demonstrando resistência ao acordo, temendo possíveis efeitos negativos sobre seu setor agrícola e a chegada maciça de produtos sul-americanos em seu mercado. Os pecuaristas do país, dependentes de subsídios europeus e de produção bem mais baixa, temem não conseguir competir com as “fábricas de carne” da América do Sul.

As duas partes consideram o acordo como um forte sinal em favor do livre-comércio e do multilateralismo, numa época marcada pelo crescente protecionismo nos Estados Unidos, envolvidos em disputas comerciais com a China e em divergências com a UE.

Na França, porém, o acordo foi criticado por políticos tanto de esquerda quanto de direita, bem como por alguns membros do partido República em Marcha, do presidente Emmanuel Macron. O fazendeiro e membro da legenda governista Jean-Baptiste Moreau se posicionou contra a importação de produtos agrícolas do Brasil, país que, segundo afirmou, possui “um dos setores agrícolas mais perversos em todo o mundo”.

A Federação Nacional dos Sindicatos de Produtores Agrícolas da França – a maior entidade do setor no país – criticou a discrepância entre as exigências impostas a agricultores e criadores europeus e as impostas aos sul-americanos. “Não podemos usar anabolizantes, hormônios, certos antibióticos, além de pesticidas”, reclamou um porta-voz do órgão, citado pelo jornal Folha de S. Paulo. “As normas de bem-estar do animal são bem mais severas aqui.”

A Confederação dos Agricultores Alemães (DBV) considerou “inaceitável” o acordo, afirmando que ele poderá comprometer o futuro de diversas empresas familiares da Alemanha. O DBV teme que exigências distintas em relação a proteção ambiental e climática, emprego de antibióticos e pesticidas, assim como uma salvaguarda imperfeita do mercado europeu, venham a provocar distorções mercadológicas dramáticas, principalmente no que diz respeito à carne bovina e de aves e ao açúcar.

“Não é aceitável a Comissão Europeia assinar esse acordo totalmente desequilibrado. Esse tratado comercial é pura dupla moral”, censurou o presidente da DBV, Joachim Rukwied. Ele instou os chefes de Estado e governo, assim como o Parlamento Europeu, a protegerem os padrões regionais para agricultura e gêneros alimentícios. “A agricultura não pode ser sacrificada em favor da indústria automobilística”, criticou.

Para o Partido Verde alemão, o acordo comercial é uma “decisão fatal para a proteção do clima e os direitos humanos”: “Esse tratado não pode ser concluído”, exigiu a porta-voz da bancada parlamentar verde para assuntos de comércio, Katharina Dröge.

O acordo deverá também enfrentar forte resistência no Parlamento Europeu. Membros das legendas verdes ameaçam obstruir o acordo em meio a preocupações com o meio ambiente e com as políticas ambientais dos governos sul-americanos, principalmente, o brasileiro.

“Vergonha a Comissão Europeia pactuar com Jair Bolsonaro, que ataca democratas, LGBTs, mulheres e a Amazônia e homologou 239 pesticidas desde janeiro. Os verdes europeus lutarão sem descanso para bloqueá-lo”, declarou no Twitter o europarlamentar francês Yannick Jadot, da bancada verde no Legislativo europeu.

A bancada verde no Europarlamento aumentou de 50 para 75 cadeiras após as últimas eleições europeias em maio, com bom desempenho entre os eleitores alemães e franceses. A aprovação do acordo em Estrasburgo necessitará de maioria simples entre os 751 membros.

Uma vez aprovado o acordo, passam a valer as provisões comerciais, como tarifas de importação e cotas. Entretanto, o conteúdo político do tratado necessitará da aprovação de cada um dos 28 parlamentos nacionais da UE – ou 27, com a saída do Reino Unido.

“Há um ciclo de envenenamento por agrotóxicos entre Brasil e Europa”

Acordo de livre-comércio entre Mercosul e UE levanta questão sobre os impactos para os consumidores. Segundo pesquisadora da USP, químicos exportados da Europa para o Brasil já retornam ao prato dos europeus.    

Drones lançam pesticidas sobre plantação de milho na China
Drones lançam pesticidas sobre plantação de milho na China

Depois de a União Europeia e o Mercado Comum Sul-Americano (Mercosul) negociarem durante anos, será firmado um tratado de livre-comércio, criando um mercado de 760 milhões de consumidores onde já se permutam bens no valor de 87 bilhões de euros.

Até o fim, o protecionismo agropecuário europeu foi um obstáculo. Sobretudo o Brasil conta que vai dispor de um novo mercado para soja, laranjas e carne bovina. No entanto, para os consumidores europeus, essa não é necessariamente uma boa notícia, adverte Larissa Mies Bombardi, professora e pesquisadora do Laboratório de Geografia Agrária da Universidade de São Paulo (USP).

Em 2017, Bombardi publicou um estudo mostrando que 30% dos agrotóxicos permitidos no Brasil não tinham mais registro aprovado na União Europeia UE, incluindo dois dos dez mais vendidos. Além disso, sua pesquisa mostrou as diferenças entre os limites de resíduos de agrotóxicos permitidos em alimentos e na água nos dois locais.

Há a perspectiva de que, através do acordo Mercosul-UE, os consumidores da União Europeia recebam de volta, em alimento, aquilo que os conglomerados químicos europeus exportaram até então na forma de agrotóxicos.

Em entrevista à DW, Bombardi fala sobre a ligação entre o uso de pesticidas no Brasil e a Europa.

DW: Como é o emprego de pesticidas no Brasil?

Larissa Mies Bombardi: O Brasil e os Estados Unidos são os países que mais usam pesticidas em todo o mundo. No Brasil, cerca de um milhão de toneladas são pulverizadas anualmente. Mais de 500 pesticidas são permitidos aqui, dos quais 150 são proibidos na UE. O glifosato é de longe o pesticida mais vendido, mas o debate de alto nível na Europa sobre seus perigos ainda nem começou no Brasil.

E como foi a evolução do uso de pesticidas ao longo dos anos?

Nos últimos dez anos, a aplicação de pesticidas cresceu 150%, na mesma medida que as intoxicações agudas por pesticidas.

Isso se deve à ampliação das áreas cultivadas ou ao aumento das resistências?

Sobretudo à ampliação. As áreas cultivadas se alastraram a partir do cerrado central, cada vez mais em direção à Amazônia. A superfície para soja, por exemplo, quase dobrou entre 2002 e 2015, de 18 milhões de hectares para 33 milhões de hectares.

Segundo um estudo do Instituto Nacional de Câncer (Inca), cada brasileiro ingere, em média, cinco litros de pesticidas por ano, devido aos vestígios nos alimentos.

Esse cálculo não é meu, mas documentei que no Sul, onde ficam as grandes áreas agropecuárias, são lançados de 12 a 16 quilos de agrotóxicos por hectare. Na Europa é um quilo, na Bélgica, até dois.

A que se devem essas enormes diferenças?

O argumento oficial é que há mais pragas agrícolas nos trópicos. Mas isso se deve também ao modelo de agricultura industrial, baseado na manipulação transgênica, cujas sementes são resistentes ao glifosato, sendo 70% dos pesticidas aplicados na soja transgênica, milho e açúcar. São monoculturas gigantescas: somente a área de cultivo de soja é de quatro vezes o tamanho de Portugal. Além disso, as autoridades são bem generosas no estabelecimento de valores-limite.

Pode dar um exemplo?

Na soja, toleram-se na União Europeia vestígios de até 0,05 miligrama de glifosato por quilo, no Brasil são 10 miligramas, portanto 200 vezes mais. Na água potável, o país permite vestígios 5 mil vezes superiores aos da UE.

Não vigora um princípio de prevenção no Brasil?

Não. Quando, por exemplo, um agrotóxico é registrado, a licença nunca vence nem está submetida a reavaliações periódicas, como na UE.

Manifestação contra a Bayer em Bonn
Manifestação contra a Bayer em Bonn

Os plantadores de soja afirmam que o glifosato não é muito tóxico e muito melhor do que todas as alternativas.

Sobre isso se pode discutir. O glifosato é considerado pouco tóxico, mas isso se refere à toxicidade aguda, sem considerar os danos de longo prazo. Estudos da Organização Mundial da Saúde (OMS) sugerem que ele seja cancerígeno.

E quanto ao meio ambiente? Os agrotóxicos não se decompõem no contato com a água?

Não, eles não desaparecem, são armazenados no solo e no lençol freático e matam os microrganismos existentes.

Quais são as consequências?

O solo se torna infértil, como descobrimos em pesquisas na universidade. A fertilidade do solo não tem só a ver com minerais, mas também com microrganismos biológicos, os quais são mortos por inseticidas e fungicidas.

Então em 20 anos as plantações de soja vão se transformar em deserto?

Sim, os estudos indicam que no médio prazo isso vai acontecer.

E o que isso tem a ver com a Europa?

Existe um ciclo do envenenamento. A maior parte dos pesticidas vem dos Estados Unidos e União Europeia. Conglomerados químicos como a Monsanto, Bayer ou Syngenta também exportam para países terceiros os pesticidas proibidos na Europa. A maior parte desses produtos químicos e dos danos fica naturalmente no Brasil, mas uma parte volta para Europa, na forma de alimentos exportados.

Crédito: Deutsche Welle Brasil – disponível na internet 03/07/2019

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