A controversa ideia de expandir para a região de Cerrado a chamada moratória da soja, um pacto firmado em 2006 que freou parte do desmatamento da Amazônia gerado pelo avanço do plantio da leguminosa, ganhou um novo ingrediente nesta semana.
No primeiro estudo científico quantitativo realizado para a eventual adoção dessa medida no Cerrado brasileiro, um grupo internacional de pesquisadores concluiu que a medida, se implementada até 2020, impediria a conversão direta de 3,6 milhões de hectares de vegetação nativa em terras agrícolas nos 30 anos seguintes – área maior do que o tamanho da Bélgica. Com um adendo importante: isso não evitaria o avanço da agricultura de soja no país – apenas “organizaria” de um jeito mais sustentável seus locais, priorizando áreas já desmatadas anteriormente.
Segundo o levantamento dos cientistas, mais de 80% dessa área que poderia ser protegida está na região conhecida como Matopiba – entre os Estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia – a chamada nova fronteira agrícola brasileira.
O trabalho acadêmico foi divulgado nesta semana pelo periódico Science Advances. “Quando não há fiscalização e a governança é fraca, acordos do setor privado se tornam relevantes para combater o desmatamento e a perda de vegetação nativa”, resume à BBC News Brasil uma das autoras da pesquisa, a matemática brasileira Aline Soterroni, cientista do Instituto Internacional de Análise de Sistemas Aplicados, na Áustria.
No entendimento de pesquisadores e ambientalistas, acordos como a moratória da soja têm mais eficácia do que leis justamente por serem pactos firmados entre os setores envolvidos – e não regras verticais que precisam de fiscalização de órgãos públicos.
Mas a proposta de expandir a moratória da soja para proteger o Cerrado enfrenta resistência de grandes empresas e da chamada bancada ruralista, influente grupo de parlamentares com ligação ao agronegócio. Em nota divulgada no mês de junho, a Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aposoja) se posicionou “totalmente contrária” a qualquer pacto do gênero para o bioma. A entidade ressaltou que “o agro é sustentável”.
A Cargill, uma das maiores multinacionais do setor, também se manifestou. Em carta aberta aos produtores rurais brasileiros, a companhia americana afirmou que entende que esta não seria a solução mais adequada para os problemas ambientais. “A moratória não endereça os desafios sociais, econômicos e, em última análise, ambientais”, diz trecho do documento. “E é muito provável que cause consequências, mesmo que não intencionais, para agricultores e comunidades que dependem da agricultura para subsistência.”
A origem da moratória da soja
Em 2006, um pacto foi firmado entre governos, agroindústria e organizações de defesa ambiental: ninguém compraria soja produzida em região de desmatamento da Amazônia. No ano passado, balanço divulgado pelo Ministério do Meio Ambiente mostrou que a política deu resultados: a média anual de desmatamento nos 89 municípios participantes caiu 85% depois do acordo.
Nos últimos anos, ativistas e organismos ambientais têm sugerido uma medida semelhante para proteger o Cerrado. “A principal causa de desmatamento no cerrado é a expansão do agronegócio sobre a vegetação nativa. Entre 2007 e 2014, 26% da expansão agrícola ocorreu diretamente sobre vegetação de Cerrado. Quando considerada somente a região do Matopiba – porções de Cerrado dos Estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia -, que é a principal fronteira do desmatamento, 62% da expansão agrícola ocorreu sobre vegetação nativa. Em relação às pastagens, análises recentes apontam que, entre 2000 e 2016, 49% da expansão no Matopiba ocorreu sobre o cerrado. Note-se que, muitas vezes, a área desmatada para pastagem torna-se, posteriormente, área de uso agrícola”, ressalta manifesto da organização World Wide Fund for Nature (WWF).
“O setor privado aprendeu que é possível produzir sem provocar novos desmatamentos diretamente associados à sua cadeia produtiva, como é o caso de sucesso da moratória da soja na Amazônia”, prossegue o posicionamento da ONG.
De acordo com o estudo de Aline Soterroni, a moratória da soja no Cerrado não impediria o avanço da produção da mercadoria. “A área da soja projetada para 2050 ficaria reduzida em apenas 1 milhão de hectares, se a moratória começar a funcionar em 2020”, explica ela. “Isso corresponde a uma redução de 2% da área de soja no Brasil projetada para 2050.” Para efeitos de comparação, se o atual Código Florestal fosse cumprido rigorosamente na região, ele evitaria, no mesmo período, o desmatamento de um quarto desse total (0,9 milhão de hectares).
Soterroni lembra que as proteções ambientais para o cerrado são baixas. “No cerrado, além dos níveis de proteção da vegetação nativa, definidos pelo Código Florestal de 2012, serem baixos, não há cumprimento dessa lei”, aponta.
Um outro efeito benéfico da medida, segundo o mesmo estudo, é que nos mesmos 30 anos ela significaria uma redução de 8% do total de emissões de carbono do País.
China e Europa
O estudo recém-publicado também comparou quais os riscos representam os dois principais clientes do Brasil – China e União Europeia – para esse cenário de desmatamento. “Surpreendentemente os riscos são semelhantes. Apesar de o volume de soja produzido no Cerrado para o mercado chinês ser 2,5 vezes maior do que aquele que vai para a União Europeia. Isso acontece porque a Europa compra de traders com atividades próximas das áreas de remanescentes de vegetação nativa no Cerrado.”
A pesquisadora espera que o estudo possa ser utilizado em futuras tratativas comerciais internacionais, como nas negociações atuais entre União Europeia e Mercosul, que pode condicionar a compra da produção brasileira à preservação ambiental.
De acordo com o levantamento, 25,4 milhões de hectares de terras na região de Cerrado, desmatadas anteriormente, já são adequadas para o uso agrícola – duas vezes o tamanho da Inglaterra. “Com a extensão da moratória da soja para o Cerrado, os resultados da modelagem indicam que a soja irá expandir, sobretudo, em áreas de pastagens e áreas não produtivas que podem ser consideradas, em grande parte, pastagens degradadas. Uma pequena intensificação das pastagens libera terra suficiente para a soja expandir no Cerrado sem a necessidade da conversão de vegetação nativa”, explica ela.
Cerrado em risco
Soterroni e sua equipe quantificaram o impacto da medida na fauna e na flora nativas. Entre plantas e animais – tanto vertebrados quanto invertebrados – 4.800 espécies autóctones são potencialmente ameaçadas pelo desmatamento da região. De acordo com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), hoje são 624 espécies de flora ameaçadas de extinção no bioma e 138 de fauna – sendo 95 vertebrados. “Alguns exemplos da fauna são o lobo-guará e o tamanduá-bandeira”, cita a cientista brasileira.
A pesquisa levanta a necessidade de um olhar mais cauteloso para o Cerrado brasileiro, bioma com gradiente de vegetação que vai desde formações campestres a formações florestais e que é menos “pop” do que a Amazônia e a Mata Atlântica, por exemplo. “Estima-se que metade do Cerrado já foi convertida, e que existam menos de 20% de vegetação nativa remanescente, ou seja, que não foi antropizada”, afirma Soterroni.
A pesquisadora afirma que acompanha atentamente o cenário. De um lado, “a falta de fiscalização e o não cumprimento das leis ambientais”. De outro, “a demanda crescente por commodities como soja e carne”. Segundo ela, um estudo mostrou que das fazendas de soja avaliadas na porção Amazônia do estado do Mato Grosso, 65% não cumprem o Código Florestal, mas cumprem a moratória da soja.
Na modelagem científica utilizada pelos pesquisadores eles procuraram saber também quanto se perde com o atraso da implementação da moratória do cerrado na soja, considerando a demora de o projeto sair do papel. Para tanto, avaliaram três cenários: se a medida estivesse em vigor desde 2015, se ela for iniciada em 2020 ou se apenas começar em 2025.
“Os resultados indicam que esse atraso na implementação da moratória da soja no cerrado pode causar uma perda média de 140 mil hectares por ano no bioma”, diz a cientista. Isso equivale à área do município de São Paulo.