Palco de tensões desde a semana passada, quando um líder indígena morreu em meio a relatos de uma invasão de garimpeiros, a Terra Indígena Wajãpi desperta interesses por seus recursos minerais desde os anos 1960 e ocupa parte da Renca (Reserva Nacional do Cobre e Associados) – área na divisa do Pará e do Amapá que ganhou os holofotes em 2017, quando o então presidente Michel Temer (MDB) tentou extingui-la.
O conflito ocorre num momento em que o presidente Jair Bolsonaro (PSL) defende liberar a exploração mineral em terras indígenas brasileiras e em meio à expansão do garimpo ilegal por vários desses territórios, conforme mostrado por uma reportagem da BBC News Brasil na última quinta-feira (25/7).
O potencial minerário da área wajãpi é objeto de grande especulação. Embora seja cobiçado por garimpeiros, o subsolo da região jamais foi estudado em profundidade, e o relevo acidentado do território tende a dificultar operações mais vultosas.
Criação da Renca
Quando a Reserva Nacional do Cobre e Associados foi criada, em 1984, a Terra Indígena Wajãpi ainda não havia sido demarcada, o que só aconteceu em 1996. A criação da reserva travou as pesquisas minerais na região.
Em 2017, dias após o governo Temer extinguir a reserva numa tentativa de abrir o território para a mineração, a BBC entrevistou o geólogo Breno Augusto dos Santos, um dos maiores especialistas na área. Santos coordenava as pesquisas que a Vale, então uma empresa estatal, realizava no território nos anos 1980.
Após a criação da Renca, a Vale teve de suspender os trabalhos, pois a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), ligada ao Ministério de Minas e Energia, ganhou exclusividade para trabalhar no local.
Mas Santos disse que as pesquisas nunca avançaram. “Desde que criaram a Renca, nunca houve ali pesquisa mineral. Não se sabe qual o potencial real daquela área – ainda é uma grande incógnita”, ele afirmou à BBC, após a extinção da reserva.
Criticado por indígenas e ambientalistas, que temiam uma exploração desenfreada da região, Temer revogou em poucas semanas o decreto que acabava com a Renca. Com isso, a possibilidade de explorar legalmente minérios na reserva segue bloqueada.
Mineração em terras indígenas
A criação da Terra Indígena Wajãpi, em 1996, impôs outra barreira à pesquisa mineral no trecho da Renca que se sobrepõe ao território, pois a mineração em terras indígenas é hoje ilegal.
Segundo a Constituição de 1988, a liberação da atividade depende da aprovação de leis específicas pelo Congresso, o que nunca ocorreu.
Mesmo ao tentar extinguir a Renca, em 2017, o governo Temer disse que a mineração continuaria proibida nas duas terras indígenas que compõem a reserva (além da área Wajãpi, o território agrega parte da Terra Indígena Paru d´Este, das etnias Aparai e Wayana).
Muito do que se sabe sobre o potencial da região se deve à ação de garimpeiros. Sabe-se que há ouro, por exemplo, porque garimpeiros já extraíram o metal do território.
Segundo Breno Santos, há ainda duas reservas com potencial para exploração de titânio e fosfato em trechos da Renca fora do território wajãpi – o que poderia indicar a presença dos materiais também dentro da terra indígena.
Santos diz que, ironicamente, as pesquisas jamais detectaram a presença de cobre, metal que deu nome à reserva.
Extração de tantalita
Outra reserva existente no território wajãpi é a de tantalita, mineral composto nióbio e tântalo na mesma proporção que é usado pelas indústrias eletrônica e de vidro e que tem suas maiores reservas conhecidas no Brasil.
Dominique Tilkin Gallois, professora de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP) que trabalha junto aos wajãpi desde os anos 1970, diz à BBC que garimpeiros já extraíram tantalita no norte da terra indígena, atividade que teria provocado o envenenamento de membros da etnia.
Outros pontos do território sofreram com a ação de garimpeiros que buscavam ouro – e que começaram a transitar pelas bacias dos rios Jari e Amapari nos anos 1960.
Na década de 1970, a mineradora Icomi (Indústria de Comércio e Minérios) também se interessou pela área. Durante trabalhos de prospecção, técnicos a serviço da empresa se depararam com indígenas wajãpi até então isolados.
Epidemia de sarampo
Inicialmente apoiado pelos indígenas, o avanço do garimpo pela região do rio Karapanaty provocou um episódio traumático para a comunidade, conta Gallois no livro “Terra Indígena Wajãpi: da demarcação às experiências de gestão territorial”.
Ela diz que, nos anos 1970, os garimpeiros disseminaram o sarampo por cinco aldeias. A doença matou mais de 80 indígenas, segundo a antropóloga.
Em 1973, novas invasões de garimpeiros foram facilitadas pelas obras da estrada Perimetral Norte, com a qual a ditadura militar pretendia conectar o Amapá a Roraima, atravessando partes do Pará e do Amazonas.
A estrada cortou parte do território wajãpi, que ficava num dos extremos do projeto, mas foi abandonada antes de ser concluída.
Segundo Gallois, as experiências trágicas fizeram com que os indígenas se tornassem avessos ao garimpo.
“Eles estão denunciando e procurando as autoridades porque temem que essa experiência traumática seja vivida outra vez”, ela afirma à BBC.
Morte violenta de líder
Em nota divulgada no domingo (28/7), o Conselho das Aldeias Wajãpi (Apina) diz que o líder Emyra Wajãpi “foi morto de forma violenta” perto de sua aldeia na última segunda-feira (22/7), quando não era acompanhado por outros indígenas. Segundo a nota, parentes do líder “encontraram rastros e outros sinais de que a morte foi causada por pessoas não indígenas”.
O texto diz que, na sexta-feira (26/7), membros da comunidade encontraram um grupo de não-índios armados, que teriam se instalado em uma aldeia e ameaçado os moradores. Nesta segunda-feira, a Funai divulgou uma nota na qual diz que sua coordenadoria no Amapá encaminhou para a presidência do órgão um memorando “informando sobre um possível ataque de garimpeiros à Terra Indígena Wajãpi”.
A Polícia Federal abriu um inquérito para investigar a morte do líder.
Quem são os wajãpi, guardiões de terra cobiçada por garimpeiros ilegais e mineradoras
O povo wajãpi é guardião de uma terra rica em ouro e ferro de cerca de 607 mil hectares, uma área equivalente a quatro cidades de São Paulo delimitada pelos rios Oiapoque, Jari e Araguari, no oeste do Amapá.
Chegaram ao local depois de uma travessia épica pelo rio Amazonas. Descendentes dos Guaiapi, falantes da língua da família Tupi, os wajãpi saíram do baixo rio Xingu, no norte do Pará, no século 18 rumo ao território hoje ocupado pelo Amapá e pela Guiana Francesa.
Sempre mantiveram o estilo de vida, tradições, rituais e autonomia. Vivem da caça e da agricultura e tentam defender sua terra como podem – com arcos, flechas, lanças e até armas de fogo, estas devidamente registradas e autorizadas pela Polícia Federal, segundo eles, e com a ajuda de organizações governamentais e não governamentais.
Homologada e registrada em 1996, a terra indígena wajãpi, localizada entre os municípios amapaenses de Pedra Branca do Amapari e Laranjal do Jari, é cobiçada por garimpeiros e caçadores de peles de animais e tem sido alvo de invasões frequentes.
Desde os anos 1970, os wajãpi têm uma relação conturbada e traumática com garimpeiros e mineradores. No início dos anos 1970, uma epidemia de sarampo, disseminada após contato com homens brancos, causou a morte de quase cem indivíduos wajãpi, incluindo adultos e crianças.
Na semana passada, a morte do cacique Emyra Waiãpi e duas invasões relatadas pelo Conselho das Aldeias Wajãpi colocaram em evidência o alto nível de tensão na região no momento.
Em nota divulgada no domingo, 28 de julho, o Conselho das Aldeias Wajãpi disse que um grupo de invasores armados entrou na sexta-feira (26) na aldeia Yvytotõ, ocupou uma casa e ameaçou os moradores, que fugiram no dia seguinte do local.
No sábado, moradores de outra aldeia, a Karapijuty, teriam avistado um possível invasor nos arredores.
O cacique Emyra Waiãpi havia sido encontrado morto no dia 22 – a Polícia Federal, que foi ao local com representantes da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do batalhão de operações especiais da polícia do Amapá, abriu inquérito para investigar a morte dele.
Bolsonaro põe em dúvida assassinato de líder indígena
Ao comentar a morte do cacique no Amapá, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) disse não haver indício forte de que ele tenha sido assassinado.
Foi a primeira vez que o presidente se manifestou sobre o incidente. “Não tem nenhum indício forte que esse índio foi assassinado lá. Chegaram várias possibilidades, a PF está lá, quem nós pudermos mandar nós já mandamos. Buscarei desvendar o caso e mostrar a verdade sobre isso aí”, afirmou o presidente, ao deixar o Palácio da Alvorada na manhã desta segunda-feira (29).
De acordo com a nota do conselho wajãpi, não houve testemunhas, mas parentes examinaram o local e “encontraram rastros e outros sinais de que a morte teria sido causada por pessoas não indígenas”.
Além de colocar em dúvida o assassinato, Bolsonaro também reiterou que sua intenção é regulamentar o garimpo e autorizar a exploração de minérios dentro de território indígena.
“É intenção minha regulamentar garimpo, legalizar o garimpo. Inclusive para índio, que tem que ter o direito de explorar o garimpo na sua propriedade. Terra indígena é como se fosse propriedade dele. Lógico, ONGs de outros países não querem, querem que o índio continue preso num zoológico animal, como se fosse um ser humano pré-histórico”, afirmou o presidente.
Para Bolsonaro, as demarcações indígenas estão “inviabilizando o negócio” no Brasil.
História de resistência
Segundo Fiona Watson, pesquisadora da ONG Survival International, a história dos wajãpi é de resistência, resiliência e sobrevivência. “Eles são os guardiões da floresta. Dependem da floresta e mantêm uma relação espiritual com ela. Por isso, resistem a tudo que pode destruí-la”, diz.
Watson declara não se opor à mineração em terras indígenas desde que seja uma escolha dos guardiões da terra, que pertence à União. “Tem que ter o consentimento dos índios, a decisão tem que ser deles porque a terra é deles”, afirma, argumentando que o governo deveria se empenhar mais em proteger as terras indígenas uma vez que a legislação atualmente proíbe mineração em terras ocupadas por indígenas.
Os wajãpi, por exemplo, são contra a exploração mineral em seu território. Apesar de serem considerados um povo festivo e amistoso, eles declararam guerra aos garimpeiros e às mineradoras depois de colecionarem experiências traumáticas.
Primeiro contato
Hoje, são aproximadamente 900 wajãpi vivendo em 49 aldeias. Na Guiana Francesa, no alto rio Oiapoque, vivem outros 1.100.
“Mas esse povo quase desapareceu nos anos 1970”, conta Watson, lembrando que os wajãpi foram vítimas de malária e sarampo contraídos depois do contato com não-índios.
O primeiro contato com a Fundação Nacional do Índio (Funai) foi em 1973, quando a rodovia Perimetral Norte BR-210 começou a ser construída na região onde estavam os wajãpi.
No ano seguinte à chegada da Funai, eram apenas sete dezenas deles, segundo relatou um ex-chefe do posto local da Fundação ao Jornal do Brasil em 1993.
A estrada facilitou o acesso às terras protegidas pelos wajãpi. Chegaram caçadores, garimpeiros e, mais recentemente, empresas de mineração demonstraram interesse em explorar na região jazidas de ouro, cassiterita, manganês e tântalo.
Mas a antropóloga da Universidade de São Paulo (USP), Dominique Gallois, estudiosa do povo wajãpi, relatou no Facebook que “experiências trágicas” dos wajãpi com garimpeiros são anteriores à chegada da Funai.
Entre 1971 e 1973, escreveu Gallois, levas de garimpeiros invadiram a bacia do rio Karapanaty, explorando ouro nas proximidades da aldeia Karavõvõ.
“Prometiam trazer mercadorias e conseguiram apoio dos índios, que os abasteciam com caça, lenha e alimentos. Na verdade, depois de cerca de um ano de convivência conturbada, fugiram e deixaram a população de cinco aldeias da região infectadas com sarampo”, relatou a professora.
Segundo ela, mais de 80 adultos e crianças morreram, “abandonados pelos que se diziam seus amigos”.
Gallois diz que a Funai chegou mais tarde, em 1973, “para afastar os índios do trajeto da estrada Perimetral Norte, construída na época e abandonada em 1976”, depois de ter avançado cerca de 30 quilômetros para dentro da área indígena.
Estratégia de defesa
“Pouco a pouco, os wajãpi encontraram estratégias para se defender e logo que sabiam da presença de invasores, os procuravam, amarravam e levavam à Funai para que fossem entregues à Polícia Federal”, escreveu a professora, dizendo que esses episódios aconteceram várias vezes entre 1985 e 1992.
Em 1994, eles criaram o Conselho das Aldeias Apina para reivindicar direitos e passaram a denunciar de forma mais organizada e sistemática as sucessivas tentativas de ingresso. O Conselho, que tem site e diretoria com mandato, tem também um documento com detalhes sobre as tradições do povo wajãpi.
Eles são reconhecidos por manter o equilíbrio entre o passado e o presente, vivem dos recursos da floresta e mantêm rituais e tradições curiosas – como, na hora do casamento, dar a própria irmã para se casar com o irmão da noiva ou se casar também com a irmã solteira da noiva.
Quem escolhe o nome da criança wajãpi são os avós e os pais. “Nós usamos os nomes de nossos antepassados para colocar nome nas crianças”, explicam. Crianças podem se chamar pelo nome, mas quando se é jovem ou adulto, não. “É impossível chamar a pessoa pelo nome próprio, senão ela fica brava”, explicam – os wajãpi se chamam pelo grau de parentesco.
Há palavras que só as mulheres falam e outras que apenas os homens pronunciam.
‘Não fazemos festa sem beber’
Os wajãpi são festeiros. Celebram a pesca, a colheita, têm 57 celebrações diferentes. “Não fazemos festa sem beber. A festa é uma troca, de quem dá caxiri e quem vem cantar e dançar”. O caxiri, bebida fermentada à base de mandioca, é preparado pelas mulheres da aldeia.
Ele é usado também em rituais mais doloridos. As meninas, depois da primeira menstruação, recebem picadas de formigas “para ficar forte”. A mãe dá à filha o caxiri para não sentir dor e o pai – ou alguém que trabalha, é caçador e fala bem – busca e aplica a formiga.
“Eles mantêm o estilo de vida e os rituais. Mas também interagem, em especial os mais jovens”, diz Fiona Watson, da ONG Survival International, dizendo que eles são conscientes de que precisam se defender como podem.
Os wajãpi também têm escolas, postos de saúde e salas de reuniões.
Muitos falam português e, os que têm direito a usar armas de fogo fizeram em 2018 testes de tiro, avaliação psicológica e comportamental, sob a supervisão da Polícia Federal e do Ministério Público Federal.
Uma wajãpi no governo Bolsonaro
Há também wajãpi no Exército e no governo Bolsonaro.
Silvia Nobre Wajãpi, de 42 anos, fez parte da equipe de transição do presidente Jair Bolsonaro (PSL) e, em abril, foi nomeada secretária de Saúde Indígena.
Segundo reportagem da Folha de S.Paulo, ela já foi moradora de rua, vendedora de livros, atriz, atleta, fisioterapeuta e primeira índia militar – entrou para o Exército em 2010.
O Ministério da Saúde informa, em seu site, que ela nasceu numa tribo wajãpi, no interior do Amapá. Aos quatro anos, sofreu um acidente e foi levada para a cidade a fim de ser operada.
Como não podia voltar para a aldeia, devido aos graves problemas de saúde, foi criada, inicialmente, por um professor que iniciou a alfabetização de Silvia. “Silvia sempre manteve os laços com o seu pai, cacique Seremete, na aldeia para onde volta uma vez por ano nas férias”, diz o Ministério da Saúde.
Apesar de terem conseguido manter o estilo de vida, tradições e rituais mesmo depois do contato com não-índios e, ao mesmo tempo, interagir com não-índios, Fiona Watson, da Survival International, alerta que episódios como as invasões recentes mostram que o povo wajãpi está em situação vulnerável.
“Ninguém esperava que, tantos anos depois, surgisse novamente o pesadelo das invasões de garimpeiros. Voltou à tona o medo das violências e da contaminação por doenças”, escreveu Dominique Gallois, da USP.