Desemprego parece uma palavra radioativa. A impressão é que ninguém quer falar muito sobre o assunto. “O quê? Desemprego?” As pessoas acham que já sabem tudo que é preciso saber sobre esse tema, já ouviram tudo antes. “Para que voltar a falar sobre isso?”, parecem dizer aqueles que evitam o assunto, uma pergunta não vocalizada, mas sempre presente. É assim que desempregados e subempregados de diferentes idades e níveis educacionais ouvidos por ÉPOCA nas últimas seis semanas veem a reação de familiares, amigos e conhecidos quando o tema vem à tona. Foi nesse ambiente de quase negação coletiva, de forma lenta, porém constante, que o problema ganhou proporções inéditas.
• O Brasil vive sua pior crise de desemprego desde que dados nacionais começaram a ser coletados periodicamente, nos anos 70;
• O país nunca teve tanta gente desempregada e subutilizada por um tempo tão longo;
• Nenhum outro país da América Latina, com a óbvia exceção da caótica Venezuela, está há três anos com taxa de desocupação superior a 10% — e a previsão é que ela continue assim até, pelo menos, 2020;
• O Brasil tem, desde 2017, a maior taxa de desocupação entre as maiores economias do mundo;
• O que acontece no Brasil hoje não foi visto em boa parte dos países mais ricos após uma das maiores crises do capitalismo, no final da década passada;
• Ao fim do primeiro semestre, havia 13 milhões de brasileiros em busca de emprego, ou 12,3% da mão de obra disponível. Um contingente ainda maior, de 29 milhões de trabalhadores — 25% do total —, está na ingrata condição de subutilizados;
• Nunca o índice de “desalentados” — pessoas que desistiram de procurar emprego — foi tão alto. Pela pesquisa mais recente, eles são 4,9 milhões.
“Era meia-noite e meia. Tocou uma corrida. Era de Perdizes para Moema ( dois bairros de São Paulo ). O nome do passageiro era George. Parei na frente de um prédio e havia dois homens. Um parecia bem alcoolizado. Tanto que entrou no carro e logo dormiu. O outro era o George. Começamos a conversar, e ele contou que era brasileiro e morava em Londres. Foi para a Inglaterra há 30 anos, depois de se formar, numa época difícil no Brasil. Logo falou a frase que escuto pelo menos uma vez por dia: ‘Dá para ver que você não é um motorista de Uber normal’. Em seguida, contou que foi à Inglaterra para fugir de uma crise aqui, casou com uma inglesa, tem filhos e uma empresa de TI. Eu disse para ele que estou pensando em imigrar para o Canadá, mas está difícil. Me falta coragem.”
Rafael Assumpção, de 36 anos, é casado, pai de três meninos e mora em Barueri, em São Paulo. Engenheiro de produção, com MBA e vários anos de experiência em empresas como Unibanco Seguros e Porto Seguro, completou 1.000 corridas na Uber na véspera da primeira entrevista a ÉPOCA. Todos os dias da semana, Assumpção acorda cedo, sai de casa antes das 6 da manhã, roda até perto da hora do almoço. Muitas vezes consegue voltar para casa, onde come com as crianças e as leva para a escola. Perto do fim da tarde, por volta das 17 horas, pega os meninos, vai para casa descansar um pouco e volta a rodar pelas ruas das 19:30 até meia-noite, 1 da manhã. Faz 8 mil quilômetros por mês. Usando uma metáfora comum entre os que estão desempregados ou subempregados, Assumpção disse que “está no mercado” desde o ano passado, depois de quatro anos como gerente em duas empresas diferentes. Pela rede social LinkedIn, vê, assim como outros engenheiros na mesma situação, que há muitas opções de emprego no Canadá. De 2015 até o ano passado, o número de brasileiros aceitos como imigrantes pelo governo canadense subiu quase 130%. Em 2015, não apareciam nem entre as 25 principais nacionalidades aceitas. Em 2018, já estavam na 14ª colocação. Assumpção e a família não pretendem engordar esse número. Ainda não desistiram do Brasil.
A mulher, formada em letras, está fazendo uma nova formação em comércio exterior. Assumpção também tem investido em educação. Atualmente está no meio de um curso de capacitação executiva com duração de dez meses na Fundação Instituto de Administração (FIA), órgão privado fundado por professores da Universidade de São Paulo (USP). Assumpção contou que essa é a primeira vez que fica desempregado. Nunca teve problemas para se recolocar. Agora, a dificuldade, disse, “está tremenda”. Ele tem razão. Na avaliação de José Pastore, presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da Federação do Comércio de São Paulo e uma das maiores autoridades no assunto, o Brasil já passou por outros momentos difíceis no passado, mas a crise atual está sendo muito mais profunda e demorada do que a ocorrida nos anos 80. Em 2015 e 2016, o Produto Interno Bruto (PIB) — a soma de todas as riquezas produzidas no país em período determinado — encolheu 3,5% e 3,3%, respectivamente. A recuperação foi anêmica, um crescimento de somente 1,1% em 2017 e também no ano passado. Essa é a causa da seca inédita que se abateu sobre o mercado de trabalho.
Muitas das pessoas a quem Assumpção sempre procurou para se aconselhar e pedir ajuda também estão desempregadas. A renda familiar, que já foi de R$ 15 mil mensais, caiu para menos da metade. A palavra que usa para definir seu estado de espírito é resiliência. Primeiro cortou os gastos com luz e água fazendo uma reunião com os três filhos e pedindo economia. Depois disso vieram cortes com celulares, TV a cabo, internet, academia e seguro do carro. Os gastos com as compras de supermercado também foram reduzidos. Viagens nas férias foram suspensas. A que fizeram ao Chile em 2017 ficou na memória. Foi a primeira vez que os meninos viram neve. O mais moço até torceu para o Chile na última Copa América por causa disso.
Neste ano, o filho do meio saiu de uma escola particular para fazer o segundo ano do fundamental numa pública. Chegou lendo e fazendo todas as operações básicas a uma classe em que ninguém estava alfabetizado. Assumpção percebeu o retrocesso e disse que isso dói demais. Sua esperança é que o filho passe no vestibulinho da Fundação Instituto de Educação de Barueri (Fieb), autarquia da prefeitura, que tem uma escola-modelo gratuita, já frequentada pelo filho mais velho. Em 2016, quando as taxas de desemprego chegaram a dois dígitos — e deles não saíram mais —, a competição na Fieb era de 7,28 crianças por uma vaga no primeiro ano do fundamental. No ano passado, a proporção era de 19,1 candidatos por vaga. O drama da família Assumpção, obviamente, não se resume a Barueri nem ao estado de São Paulo. Desde 2014, a queda no número de matrículas de escolas privadas de ensino básico tem sido, na média, de 0,3% ao ano no Brasil. Em Brasília, a redução é de 1,1%, no Rio 1,2% e em Minas 2,1%. Como o dinheiro está curto, Assumpção cogita cortar o curso particular de inglês do filho mais velho, que tem mostrado um avanço grande. O pai disse sofrer muito quando pensa em tirá-lo de algo que vê que está dando tanto resultado. É quando pensa na educação dos meninos que a emoção toma conta. “Estou quase chorando. O negócio é dolorido às vezes”, disse com a voz trêmula.
O economista Mauro Nikuma, de 47 anos, colega de Assumpção no curso de capacitação executiva da FIA, contou que também passou por um período de grande tristeza, quando a autoestima caiu muito. Desde 2015, Nikuma está em busca de um emprego que lhe dê mais segurança. Já por dois períodos engordou o orçamento com a Uber. Atualmente está trabalhando como pessoa jurídica na empresa de um amigo. Disse que conseguiu superar a depressão quando se deu conta de que o problema não era pessoal, mas sim estrutural. Não era só ele que tinha perdido o emprego. Eram milhões de brasileiros. Nikuma se ressente de não ter administrado melhor suas reservas financeiras. Entrou na armadilha que muitos não conseguem evitar: achando que logo se recolocaria, gastou em oito meses o que acha que poderia ter durado dois anos. A força para deixar para trás a vergonha de buscar uma alternativa menos nobre que seu emprego anterior veio quando soube da história de um desempregado que esperou ficar totalmente endividado para reagir.
O mineiro Fabiano Barocelli, engenheiro químico de 47 anos com mestrado na área, é especialista em poluição atmosférica e vive em Belo Horizonte com a família. Foi para “o mercado” em agosto de 2017, quando a multinacional em que trabalhava como gerente decidiu fechar a operação no Brasil no meio da recessão econômica. “Comecei a acompanhar os filhos no Minas Tênis Clube, algo que minha mulher fazia antes. Aí as pessoas passaram a perguntar: ‘Você não tem nada para fazer, não? Ganhou na loteria?’. Na hora que eu falava ‘desempregado’, ficava um clima esquisito. Nunca fiquei sem trabalho antes. Mas agora evito a palavra desemprego, digo que estou correndo atrás. Sou consultor autônomo, auditor do Inmetro, o que é verdade. E também estou procurando trabalho. Viver de consultoria é muito volátil. Gostaria de estar empregado hoje, de poder me programar. Mas não quero, de maneira alguma, dar a impressão de que sou vítima. Não gosto de ler reportagens sobre desemprego. O termo é um palavrão. Ele parece que vai comendo você por dentro.
“O ENGENHEIRO RAFAEL ASSUMPÇÃO JÁ FEZ TODOS OS CORTES QUE ACHAVA POSSÍVEL. O PRÓXIMO NA LISTA É O INGLÊS DE UM DOS FILHOS. É QUANDO PENSA NA EDUCAÇÃO DOS MENINOS QUE A EMOÇÃO TOMA CONTA. ‘ESTOU QUASE CHORANDO’”
Barocelli fez uma tentativa como pessoa jurídica numa empresa, assim como o economista Nikuma, mas a experiência acabou não durando muito. Nesse meio-tempo, engatou como professor universitário na faculdade de engenharia da faculdade Una, do grupo Ânima, em Divinópolis, a duas horas e meia de carro de Belo Horizonte, o que possibilitou um rendimento seguro mínimo. Quando saiu da multinacional, continuou pagando o plano de saúde. Ao ir para a Una, pediu migração para o plano de saúde da faculdade, bem mais barato. Um dia antes de falar com ÉPOCA, Barocelli soube que a Una não ofereceria mais as disciplinas que ele lecionava e que estava sendo desligado. Sua energia agora é para tentar prorrogar o plano da faculdade e não entrar no grupo dos mais de 3 milhões de pessoas que perderam acesso à cobertura médico-hospitalar privada desde janeiro de 2015, de acordo com a Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge). Em vários estados, essa saída provocou uma nova demanda por serviços estatais. Em São Paulo, por exemplo, a Secretaria de Saúde estima que o número de usuários exclusivos do SUS bateu recorde em 2019, o que não se explica somente por questões demográficas, mas pela crise.
Barocelli nunca parou de tentar se recolocar, mas às vezes tem a impressão de que é muito qualificado para as vagas existentes. É isso que sente ao saber dos salários que estão sendo ofertados. Há propostas para engenheiros em que a remuneração oferecida é de R$ 4 mil. Recentemente, procurou a ajuda da Stato, uma empresa de recolocação com sede em São Paulo. Com a orientação das consultoras, participou de um processo de seleção e foi até o estágio final. Com sotaque mineiro, disse que sentiu o “cheirim” da cadeira. Rosa Chofakian, consultora sênior da Stato, contou que, no primeiro semestre de 2019, o número de clientes aumentou 20% em relação ao mesmo período do ano passado. A empresa tem presença em seis cidades (São Paulo, Campinas, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba e Joinville) e está abrindo filiais em outras quatro (Taubaté, São José dos Campos, Salvador e Manaus).
“TRABALHADORES VEEM A PRODUTIVIDADE CAIR AO FICAREM FORA DO MERCADO. QUANDO RETOMAM OS EMPREGOS, SÃO COMO ATLETAS FORA DE FORMA. A SOCIEDADE COMO UM TODO PERDE COM A DESOCUPAÇÃO DE LONGO PRAZO”
Ao menos uma vez por semana a paulistana Nadir Caroline Souza Martins Lima, de 34 anos, sai da casa de três cômodos — quarto, cozinha e banheiro —, que divide com o marido e três filhos no bairro do Grajaú, extremo sul da capital paulista, com destino ao centro da cidade. “Vou olhar vagas de trabalho que divulgam nos postes de ruas, como 24 de Maio e Barão de Itapetininga. Estou sem emprego desde dezembro do ano passado, quando fui despedida. Eu trabalhava no departamento de retenção de clientes de uma operadora de cartões de crédito. Ligava para gente com dívidas atrasadas. Recebia um salário de R$ 1.200”, disse. Com o salário do marido, Kenon, de 33 anos, encarregado de entregas de uma grande cervejaria, a renda familiar beirava os R$ 3.500. Mas isso foi antes de ela perder o emprego.
Até a economia do Brasil entrar em parafuso no governo de Dilma Rousseff, a família de Lima era o retrato da ascensão social de brasileiros de origem humilde que haviam conquistado uma segurança financeira inédita numa sociedade profundamente desigual. Em razão da proliferação de empregos com carteira assinada entre 2003 e 2014, uma massa de trabalhadores antes dependentes da economia informal ou desocupados ganhou renda para, enfim, entrar no mercado de consumo. Chamada de nova classe média, ou classe C, essa fatia da população ganhou perto de 40 milhões de integrantes na década passada, segundo a Fundação Getulio Vargas (FGV). Assim como muita gente da classe C, Lima vivia num ritmo constante de comprar e experimentar. Antes de ir morar com Kenon, acumulava bicos como empregada doméstica e entregadora de panfletos em semáforos. O casal está junto desde 2006, mas o casamento só aconteceu mesmo em 2011, com uma festa em casa para 50 familiares e amigos. Nessa época, o padrão de vida do casal deu uma boa melhorada porque ela fixou-se num emprego como operadora de call center. A lua de mel do casal foi no Rio. A renda extra permitiu que eles trocassem a mobília e fizessem viagens todo ano para visitar familiares em Tatuí, no interior paulista. Deu também para investir em educação: em 2013, ela ingressou no curso de geografia numa faculdade privada perto de casa. O diploma veio quatro anos mais tarde.
A conquista do ensino superior coincidiu com a volta das incertezas financeiras. O sonhado emprego de professora de geografia não veio. No máximo, Lima conseguiu estágios não remunerados em escolas públicas. Ela disse que hoje sofre por ter escolhido uma carreira estagnada pela crise e que, por isso, emendou uma graduação de pedagogia prevista para acabar em 2020. Quer trabalhar com alfabetização de crianças, mas os seis meses de desemprego têm colocado o desejo à prova. Assim como quase 4 milhões de brasileiros que desde 2014 foram empurrados de volta às classes D e E, sua família viu o padrão de vida despencar. Mimos aos filhos Arthur Henrique, de 13 anos, Vinicius, de 9, e Nicollas, de 4, como bolachas recheadas e iogurtes ou visitas à lanchonete Habib’s do bairro aos domingos, estão cancelados. A família acumula uma dívida de R$ 3 mil de IPTU. Apesar do apuro, Lima segue investindo R$ 343 na mensalidade do curso de pedagogia, mas a situação não está fácil. Se não arranjar emprego até o mês que vem, disse que vai trancar a faculdade. “Está me dando desespero essa situação. No passado, eu conseguiria emprego de telemarketing no mesmo dia. Hoje, nem isso”, afirmou. Atualmente, ela está aceitando qualquer trabalho.
Nos últimos meses, a paulistana Yasmin Teles, de 18 anos, tem enfrentado percalços comuns a muitos jovens que estão ingressando no mercado de trabalho agora. Filha de pai mestre de obras e mãe dona de casa, Teles concluiu o ensino médio em dezembro de 2018 numa escola pública nos arredores da casa onde mora com os pais e uma irmã, no Itaim Paulista, bairro pobre no extremo leste da capital paulista. Talvez a vida de Teles estivesse mais fácil caso ela tivesse feito uma formação técnica — apenas um em dez estudantes brasileiros terminam o ensino médio com essa formação, segundo a Confederação Nacional da Indústria. Especialistas em mercado do trabalho gostam de lembrar que países conhecidos pela alta empregabilidade de jovens costumam investir muito mais nesse tipo de formação.
Sem o curso técnico, Teles sonha em ingressar no corpo de bombeiros. Recentemente, por conta própria, foi a uma unidade do corpo de bombeiros na região central da capital paulista para buscar detalhes sobre o processo seletivo. Lá, descobriu que o ingresso é por concurso público. A próxima seleção só deverá ocorrer no ano que vem. A ideia original era conseguir um emprego, economizar e pagar um cursinho para o concurso da área militar ou o vestibular da faculdade de fotografia. Desde a formatura no ensino médio, há sete meses, já disparou o currículo para mais de 60 vagas na tentativa de obter um cargo de auxiliar administrativo. Até agora, nenhum retorno. “Os empregos requerem experiência, mas como vou ter isso sendo que nunca trabalhei?”, perguntou-se a jovem enquanto aguardava, ao lado da mãe, sua vez de deixar o currículo numa fila diante de uma agência de empregos da Rua Barão de Itapetininga, no centro de São Paulo, numa manhã gelada do fim de junho. À sua frente estão mais de 20 candidatos — a grande maioria mais velhos e experientes que ela.
Teles está no pior dos cenários no drama do desemprego. Entre jovens de 18 a 24 anos, a desocupação bateu 27% no país no primeiro trimestre de 2019. É, com folga, a maior taxa entre a população adulta. Mas o pior de tudo é o ritmo acelerado do desemprego entre os jovens. Em cinco anos, dobrou a fatia de brasileiros até 24 anos fora do mercado de trabalho. Há quem vislumbre oportunidades perdidas nas próximas décadas por causa do enorme contingente de jovens desempregados agora. Para o economista Daniel Duque, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da FGV, a atual geração de jovens terá por toda a vida uma parte do potencial de renda e de produtividade perdida.
Isso vale para quem terminou o ensino médio e também para quem tem diploma universitário. O paraense Sérgio Renato Bentes, de 30 anos, formado em administração em uma faculdade privada de Belém, fez estágio na mineradora Vale, tentou alguns concursos no norte do país e acabou vindo tentar a sorte em São Paulo há dois anos. Hoje faz entregas de comida pelo iFood de bicicleta. Boa parte da acumulação de capital humano responsável pela produtividade de um trabalhador vem não apenas dos estudos, mas das habilidades ensinadas no ambiente de trabalho. Sem a chance de ter uma experiência profissional em sua área logo cedo, jovens como o paraense Bentes correm o risco de ver sua renda futura comprometida ao começar uma carreira tardiamente. Como disse Bruno Ottoni, professor de economia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e pesquisador da FGV, o peso do desemprego recai de forma mais dramática, obviamente, sobre quem está desocupado, mas a verdade é que toda a sociedade sente. Quando o mercado de trabalho voltar a se aquecer e as vagas começarem a aparecer de novo — sim, isso há de acontecer um dia —, essas pessoas que ficaram fora do mercado ou subempregadas por muito tempo não estarão aptas a produzir a pleno vapor. Serão como atletas fora de forma. Com isso, a roda da economia como um todo vai girar de maneira menos eficiente. Todo mundo perde.
“O ADVOGADO SOUSA CRUZ FOI À RUA COM UMA FAIXA E CONSEGUIU EMPREGO. DEPOIS, RECEBEU DEZENAS DE MENSAGENS DE ADVOGADOS SEM EMPREGO PEDINDO DICAS DE COMO VOLTAR AO MERCADO DE TRABALHO”
Cansado de esperar pela retomada da economia, o advogado piauiense Witalo de Sousa Cruz, de 26 anos, tomou uma medida extrema. Quem passou pela W3, uma das principais vias da Asa Norte de Brasília, no dia 4 de junho, viu o advogado de terno, sapato e gravata pretos e uma alinhada camisa branca perto de um semáforo. Sousa Cruz segurava uma faixa com os seguintes dizeres: “PRECISO DE EMPREGO. SOU FORMADO EM DIREITO. TENHO CARTEIRA DA OAB, EXPERIÊNCIA NA ÁREA JURÍDICA E ADMINISTRATIVA. POR FAVOR ME DÊ UMA OPORTUNIDADE!”. Junto estava o número de seu celular. A jornada começou às 7 horas e durou até pouco antes do meio-dia. “Tive medo de que outros advogados fossem contra minha medida por estar desvalorizando nossa classe”, disse mais tarde. “Mas minha situação era de desespero.”
Morador de Brasília há sete anos, Sousa Cruz nunca trabalhou por mais de um ano num mesmo emprego. Logo após a formatura, trabalhou por sete meses como assistente jurídico numa banca da capital especializada na área médica. Então, em abril do ano passado, foi contratado para um cargo comissionado numa repartição do governo do Distrito Federal responsável pela concessão de alvarás de construção na cidade-satélite de Recanto das Emas, onde mora com a namorada. Em janeiro deste ano, com a mudança de governo, entrou na lista dos demitidos pelo tradicional “decretão”, em que governadores recém-empossados fazem um pente-fino nos cargos comissionados em busca de posições para acomodar aliados. O advogado perdeu o salário de R$ 2.200 e teve de adiar o sonho de levar a namorada ao altar. A ideia de estender uma faixa numa via movimentada de Brasília partiu dos pais da namorada.
A ideia era ficar no semáforo durante pelo menos quatro dias para chamar bastante a atenção. Não foi necessário. Alguns motoristas pediram o currículo de Sousa Cruz ali mesmo. Depois do almoço, o advogado abriu o celular e viu que havia recebido mais de 300 mensagens pelo WhatsApp. No meio delas, dezenas de propostas de emprego. No dia seguinte, Sousa Cruz teve 12 entrevistas. A proposta escolhida foi a do setor de advocacia de uma construtora. “Meus novos colegas do escritório e até o presidente da OAB do Distrito Federal me parabenizaram pela atitude.” O salário, de R$ 2.200, é igual ao do cargo comissionado de onde saiu em janeiro e metade do padrão para um advogado júnior em Brasília, de acordo com dados da agência on-line de empregos Glassdoor. Ainda assim, Sousa Cruz demonstra estar contente com sua atitude. Nas semanas seguintes, depois de sua história viralizar na internet, recebeu dezenas de mensagens de advogados. Em todas, a mesma demanda: os colegas de profissão estavam sem emprego e pediam dicas de como voltar ao mercado de trabalho. O economista José Eustáquio Diniz Alves, pesquisador do IBGE e uma das maiores referências no país em relações do trabalho, resumiu a situação ao dizer que temos milhões de pessoas que não conseguem exercer o direito humano básico que é ter um emprego decente. É esse o grande nó que o país precisa tratar de desatar.