Por que a lei abuso de autoridade se tornou campo minado para Bolsonaro

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O presidente Jair Bolsonaro (PSL) tem até esta quinta-feira para decidir quais pontos vetará da lei de abuso de autoridade aprovada há três semanas pelo Congresso. Nesta terça, ele adiantou que poderá derrubar quase 20 dos 45 artigos na nova legislação.

O adiamento da decisão até o limite do prazo reflete a “sinuca de bico” em que se encontra o presidente. De um lado, sofre intensa pressão de parte da população, que entende que a lei vai enfraquecer o combate à corrupção, ao prever punições para policiais, promotores e juízes que fizeram mau uso de seu poder para prejudicar ou beneficiar alguém.

De outro lado, corre o risco de irritar a maioria dos parlamentares, desgastando sua relação com o Congresso. O presidente tem propostas impopulares pela frente a serem apreciadas, em especial no Senado, como a Reforma da Previdência e a indicação de um dos seus filhos, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), para assumir a embaixada brasileira nos Estados Unidos.

O presidente chegou a dizer nesta terça, em café da manhã com jornalistas do jornal Folha de S.Paulo, que seu filho perderia muitos votos com os vetos e, por isso, seguraria mais um pouco a formalização da indicação.

“Olha, estou ali, entre a cruz e a espada, porque, se eu vetar tudo, crio um problema com parte do Congresso e, obviamente, a população vai aplaudir. Se eu não vetar nada, crio um problema com a população”, reconheceu o próprio presidente, na semana passada, segundo relato da líder do governo no Congresso, deputada Joice Hasselmann (PSL-SP),

Queda de popularidade, aumento de vetos?

O alcance dos vetos sinalizado por Bolsonaro ficou acima do defendido pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, que divulgou uma lista de 11 artigos a serem derrubados. Entre eles, estão os que tornam crimes: decretar prisão “em manifesta desconformidade com as hipóteses legais”; constranger o preso a produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro; submeter o preso ao uso de algemas quando “manifestamente não houver resistência à prisão”; e “impedir, sem justa causa, a entrevista pessoal e reservada do preso com seu advogado”.

Na avaliação do cientista político Rafael Cortez, da Tendências Consultoria, o aumento do desgaste do presidente Bolsonaro “elevou os incentivos políticos” para que ele vete um trecho maior da lei, em aceno aos que veem ameaças ao combate à corrupção, mesmo que isso signifique desgaste com o Congresso.

Segundo pesquisa do Instituto Datafolha realizada no final de agosto, a reprovação do presidente alcança 38% da população, uma alta em relação ao patamar de 33% auferido no levantamento realizado no início de julho. Já o índice dos que consideram o governo regular passou de 31% para 30%, enquanto o dos que acham a gestão ótima ou boa recuou de 32% para 29%. O restante (2%) não soube responder.

Além disso, 44% dos entrevistados disseram que não confiam na palavra do presidente, enquanto 36% confiam eventualmente e 19%, sempre.

Bolsonaro foi eleito prometendo fortalecer o combate à corrupção no país. Seu compromisso com essa agenda, porém, tem sido colocado em xeque por uma série de fatores, a começar pelas investigações contra outro filho seu, o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), para apurar possível desvio de verbas do seu antigo gabinete na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. O parlamentar, aliás, votou a favor da lei que agora está na mesa do seu pai para sanção ou veto presidencial.

Já nas últimas semanas, o presidente deixou claro que não pretende indicar um nome com autonomia para comandar o Ministério Público Federal no lugar da atual procuradora-geral da República, Raquel Dodge, assim como deu declarações que minimizavam a importância de Sérgio Moro e ameaçou intervir na Polícia Federal (PF).

“Se eu não posso trocar o superintendente (da PF no Rio de Janeiro), eu vou trocar o diretor-geral (Maurício Valeixo). Se eu trocar hoje, qual o problema? Está na lei. Eu que indico, e não o Sergio Moro. E ponto final”, disse Bolsonaro, em uma dessas ocasiões.

Para Cortez, um número reduzido de vetos representaria “mais um momento de conflito com o ministro da Justiça”, ministro que ainda goza de grande apoio popular, mesmo após o escândalo da “Vaza Jato” – série de reportagens do site The Intercept Brasil que indicam possíveis ilegalidades da Força Tarefa da Lava Jato e de Moro quando era juiz dos casos da operação em Curitiba.

“Se os eventos das mensagens (entre autoridades da Lava Jato reveladas pelo site The Intercept Brasil) sugeririam o presidente ganhando maior autonomia em relação a Sergio Moro, o desgaste nas pesquisas torna cada vez mais importante para o presidente fidelizar essa parcela do eleitorado que responde a sinais no campo ao combate à corrupção e no campo do distanciamento do esquerdismo”, observa Cortez.

“Me parece que o cenário mais recente vai no sentido de aumentar a ambição dos vetos na lei de abuso de autoridade”, acrescenta.

Reação à Lava Jato?

Os críticos à nova lei de abuso de autoridade, que atualiza a legislação de 1965, dizem que ela é uma reação à Lava Jato. Já seus defensores afirmam que se trata de coibir o desrespeito aos direitos dos cidadãos pelo aparato repressor do Estado.

Se a lei sob análise de Bolsonaro já existisse no Brasil desde 2014, quando começaram as apurações da Lava Jato, ela daria margem para que policiais, procuradores e juízes envolvidos nas investigações fossem punidos em pelo menos quatro ocasiões. Moro poderia ter incorrido em crime ao divulgar a conversa entre os ex-presidentes Lula e Dilma, em 2016, assim como ao determinar a condução coercitiva do ex-presidente no mesmo ano, sem antes ter convocado seu depoimento.

O mesmo Moro e o atual diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, poderiam ter cometido crime na “guerra de liminares” envolvendo a soltura do ex-presidente Lula, em julho de 2018. Policiais federais talvez fossem punidos por algemar e acorrentar os pés de Sérgio Cabral, em 2018.

Para a Associação dos Juízes Federais (Ajufe), o projeto “prejudica fortemente as instituições de Estado destinadas à aplicação da lei e à persecução de práticas criminosas, vulnera a separação dos poderes e a independência do Poder Judiciário e do Ministério Público e fornece poderosa ferramenta de retaliação contra Juízes/as, Promotores/as, Policiais e Fiscais em benefício de pessoas acusadas”.

A nova lei gerou repúdio mesmo entre alguns juristas críticos dos métodos da Lava Jato, como o juiz do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro João Batista Damasceno, membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

Na sua avaliação, a lei permitirá perseguição a juízes que contrariem interesses políticos, ao mesmo tempo em que pode não ser efetiva entre os que de fato realizam abusos, dado o corporativismo dentro do Judiciário e do Ministério Público. “Não será com lei penal que vamos resolver o problema do autoritarismo no Brasil”, disse à reportagem.

Por outro lado, o projeto recebeu apoio de deputados e senadores de vários partidos, e de várias orientações ideológicas. Em nota, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) também se manifestou a favor do texto, lembrando que a aplicação da lei dependerá de promotores e juízes.

“Os grandes avanços obtidos nos últimos tempos no combate à corrupção não serão atingidos pela nova Lei que pune o abuso de autoridade, até pelo fato de que tal análise será feita pelo Ministério Público e julgado por um integrante do próprio Poder Judiciário”, diz a nota.

O relator da proposta na Câmara, deputado federal Ricardo Barros, disse ao jornal O Globo que pelo menos quatro pontos não deveriam ser retirados da legislação: a condenação por negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos autos de investigação; a possibilidade de perda do cargo, mandato ou função pública a partir da condenação (em caso de reincidência); a condenação por obtenção de prova por meio manifestamente ilícito; e decretar prisão ou deixar de conceder liberdade em manifesta desconformidade com a lei.

Para o deputado Luiz Flávio Gomes (PSB), também defensor da nova lei, apenas poucos artigos deveriam ser vetados, por não estarem bem redigidos.

É o caso, na sua avaliação, do artigo que pune a autoridade que algemar presos mesmo “quando manifestamente não houver resistência à prisão, internação ou apreensão, ameaça de fuga ou risco à integridade física do próprio preso, internado ou apreendido, da autoridade ou de terceiro”.

“O presidente pode votar dois ou três artigos, mas se desfigurar a lei, pode gerar um grande mal estar com o Congresso”, disse à BBC News Brasil.

Antes de entrar para a política, Gomes atuou como promotor de Justiça, juiz e advogado. “A lei estabelece que será preciso provar que a autoridade teve intenção de prejudicar a pessoa, ônus que caberá a quem acusa a autoridade. O Congresso teve o cuidado de cercar (a lei) de várias cautelas para que não haja abuso na lei de abuso”, ressalta ainda, ao defender a proposta.

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