“Minerva e a torcida”

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Minerva, conhecida pelos romanos, era uma deusa grega (da guerra, da sabedoria, das artes, da estratégia, da paz, da razão e da justiça) de nome Atena, como nos diz a mitologia. Presidira o julgamento de Orestes, que, por vingança ao seu pai, matara sua mãe e o amante. A pena dura de matricídio, a morte, fez com que o deus Apolo considerasse um julgamento justo e, portanto, enviasse a filha de Júpiter para presidir e deliberar um veredito. Com uma votação apertada, em que as acusações partiam de seres infernais (Erínias), primitivos, a encarnação da vingança, capazes de castigar, representados com chicotes e tochas na busca de transgressores da moralidade, deu-se o empate, cabendo a Minerva a escolha de um dos lados, absolvendo o acusado, num sinal de clemencia diante da dúvida instituída caracterizado como o “voto de Minerva”, uma decisão, uma escolha que, na medida do possível, deveria se assemelhar aos atributos designados à deusa: sabedoria, paz, razão e justiça.

O voto de desempate na Suprema Corte no julgamento sobre a constitucionalidade e a vedação da prisão fruto da condenação em segunda instância, conforme estatuído no artigo 5.º, inciso LVII, da Constituição: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, ou seja, um princípio estabelecido que trata da “presunção de inocência” e que se refere a um direito fundamental, necessário à própria sociedade e passível à submissão a erros, descasos ou excessos por parte de um estado acusador; ou seja, somente depois de esgotados os recursos comprobatórios da inocência, sem o que, qualquer réu poderá ser privado da liberdade.

Em tese, o voto consagra o resultado do colegiado, não mais havendo diversas interpretações – políticas, ideológicas, homiléticas (para agradar as correntes ou os rumores e humores das ruas) e a própria hermenêutica jurídica – e, portanto, claro, decisivo, taxativo – embora ofuscado pela possibilidade de se alterar a regra do jogo ao ser sinalizado que o Legislativo poderia fazê-lo, “dica” externada pelo próprio “Minerva”.

No jargão futebolístico, “jogar para a torcida” para, em seguida, “vencer notapetão”, em que caberia à “torcida” perdedora recorrer extracampo, subvertendo as regras na intenção de agradar aos eternos punitivistas ressentidos e de se eximir da inclinação do voto. 

Nada bom. Vivemos a polarização ideológica, as idiocracias dos grupos sociais, as idiossincrasias políticas, fanatismos inculcados de ressentimento, adultos infantilizados com sanha punitivista, defesa da impunidade, justiceiros “walking deads”, fakes, e notícias tuitadas: características de uma sociedade capaz de sacrificar seus direitos e suas garantias individuais, como as conquistas sociais coletivas, por total e insano desprezo à justiça.

Politiqueiros ansiosos a surfar numa onda conveniente criam cizânias partidárias e apoiam

Luiz Fernando Mirault Pinto: Físico e administrador – pesquisador aposentado do Inmetro. [email protected]

o insustentável; a derrubada de cláusula pétrea numa proposição fraudulenta (PEC) cuja interpretação, até então aprovada pela Corte, traria instabilidade jurídica e política ao País, cabendo ao Legislativo medidas que atenderiam ao anseio popular midiático, afirmativa essa que fere a inteligência dos “pensantes”.

Afirmar que a prisão em segunda instância é um salto civilizatório é tripudiar com o direito do cidadão; qualquer cidadão poderá estar submetido a injustiças, dúvidas tendenciosas e parciais, condenadopor delações forjadas, convicções dirigidas ou fatos indeterminados, num veredito tipo “copia e cola”. Desse filme já estamos “carecas”.

 Uma desavença, um acidente de trânsito, envolvido em autodefesa, depositário infiel, são eventos que, quando mal interpretados midiaticamente, são passíveis de recaírem sobre pessoas inocentes, atingindo-as, retirando-lhes a liberdade caso não se permitam os recursos juridicamente admitidos nessa audiência.

O “voto de Minerva” representa na mais alta Corte da Justiça do País o resultado do juízo, não havendo espaço discordante, definindo a lei e seu cumprimento, apesar do eterno “jus espeniandidos Erínias”.

Crédito: Luiz Fernando Mirault Pinto/ Correio do Estado – disponível na internet 26/11/2019

Nota: O presente artigo não traduz a opinião do ASMETRO-SN. Sua publicação tem o propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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