O que explica o aumento dos casos de HIV no Brasil?

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Durante muito tempo, o Brasil celebrou vitórias na luta contra o vírus da aids. Mas nos últimos anos cresceu o número de novas infecções. Para especialistas, menos campanhas e conservadorismo estão ligados à alta.

O Sistema Único de Saúde (SUS) foi por muito tempo considerado modelo na luta contra a epidemia de HIV/aids. Desde 1996 o Estado brasileiro garante a tratamento gratuito dos pacientes nos hospitais públicos, assim como o fornecimento de coquetéis de medicamentos.

Desde então, a expectativa de vida após um contágio com HIV subiu de cinco para 12 anos. O Ministério da Saúde estima que atualmente cerca de 866 mil brasileiros sejam soropositivos, dos quais mais de 500 mil recebem acompanhamento clínico pelo SUS.

No entanto, nos últimos tempos o número das novas infecções pelo vírus voltou a crescer, segundo um estudo da Unaids, o programa das Nações Unidas para combate à HIV/aids, criado em 1994. Se em 2010 houve 44 mil novas infecções por HIV no Brasil, em 2018 elas chegaram a 53 mil: um acréscimo de 21%, muito superior ao aumento médio em toda a América Latina, de 7%. O que está dando errado no Brasil?

“Atrás disso está um baixo número de ações de prevenção nos últimos anos no país”, afirma à DW Veriano Terto Jr., vice-presidente da Associação Interdisciplinar de Aids (Abia). Tanto o governo federal como as autoridades locais reduziram drasticamente suas campanhas públicas.

“Houve simplesmente um silenciamento sobre a aids, um descaso, um relaxamento por parte dos governos como também por parte de escolas, na questão da prevenção”, diz.

Para a especialista em aids Wilza Villela, além de uma redução das campanhas de conscientização, o aumento do número de casos também está ligado ao conservadorismo. “Os governos precisaram fazer concessões às forças conservadores, para garantir a governabilidade”, aponta a médica e psiquiatra.

Segundo a especialista, sempre houve nas escolas resistência às aulas de educação sexual e ao esclarecimento sobre doenças sexualmente transmissíveis, mas antes a pressão por parte das autoridades era maior. Nos últimos anos, fortaleceu-se a resistência contra a distribuição de preservativos nas escolas, com os docentes mostrando disposição sempre menor de colaborar, afirma.

“Os programas nas escolas ficaram muito esvaziados, porque você não tem uma pressão de política pública para isso”, diz Villela. 

Fim da cooperação com a sociedade civil

Com a início da crise econômica e financeira a partir de 2013, além disso, o Tesouro não cortou apenas as verbas para as campanhas de educação, como também suspendeu a cooperação com a sociedade civil. Até então, as ONGs eram a espinha dorsal das campanhas contra a aids. Em vez disso, a responsabilidade pelo esclarecimento foi entregue ao SUS.

“Foi correto em tese, mas deu errado na prática”, avalia Villela. “Os profissionais do SUS podem ser super bem intencionados, mas são pessoas comuns, com todos os preconceitos que todo mundo tem. Assim, as ações de prevenção de aids passam a entrar no pacote do programa de saúde da família. Imagina: o agente comunitário vai às casas, e se for falar de camisinha, vai falar aquela coisa frouxa e as coisas politicamente erradas – as coisas sobre gays que todo mundo fala.”

Assim, o SUS concentrou as campanhas nos grupos de risco tradicionais: prostitutas, dependentes de drogas e homossexuais masculinos. Contudo sem o trabalho das ONGs não se tem acesso a esses grupos, explica Villela. Pois muitas mulheres passam de uma vida normal à prostituição, e vice-versa; enquanto é comum viciados em drogas simplesmente morrerem ou irem parar nos meios do crack – um problema especialmente agudo em metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo, aponta a especialista. Os homossexuais, por sua vez, relaxaram em relação ao uso de preservativos com o passar do tempo, avalia.

Assim, as autoridades adotaram uma nova estratégia: “Já que ninguém usa camisinha, vamos testar todo mundo, e várias vezes. Tem um certo deslocamento do discurso para medicalizar cada vez mais e ser menos comportamental”, explica Villela. Em 2019 a previsão é que sejam realizados 16 milhões de testes de HIV, enquanto há dois anos ainda eram 11,8 milhões.

Resistência ao uso de camisinha

Outra tendência é a resistência crescente ao uso de preservativos. As autoridades até distribuíram cerca de 100 milhões deles só no Carnaval, porém uma pesquisa de 2018 demonstrou que, entre os jovens, o uso de camisinhas vem diminuindo, tanto na primeira relação sexual com alguém, como no sexo com um parceiro fixo.

A frequência minguante das campanhas nas escolas resultou que, quanto mais jovens os consultados, menos provável o emprego de preservativos. Consequentemente, as infecções entre jovens de 15 a 19 anos subiram de três para cada 100 mil habitantes em 2006, para 5,4 em 2016.

“A camisinha sempre foi uma barreira. Mas quando havia política pública competente, você conseguia derrubar os números da aids, mesmo com essa relutância”, afirma Villela. Desse modo, a disposição de usar preservativos cresceu desde a década de 1990 até mais ou menos 2007, aponta.

Para Terto, é simplista demais a justificativa de que a queda na disposição ao uso se deva ao progresso da medicina, pois saber que existem medicamentos não resulta forçosamente em leviandade.

“As pessoas continuam com medo do HIV e do estigma. Mas, ao mesmo tempo, muita gente não gosta ou cansa de usar o preservativo. Não há uma racionalidade tão clara, tipo ‘não gosto de usar camisinha, mas tenho que usar’. Não é bem assim: há contradições nas cabeças das pessoas, ambiguidades”, diz.

Por isso, os aconselhamentos continuam sendo importantes. Terto percebeu nessas ocasiões uma postura cada vez mais conservadora. Segundo ele, não se fala mais de prevenção nem de sexualidade. “Mas a sexualidade, o sexo, é a principal via de transmissão”, diz.

Estigma como obstáculo

Ao mesmo tempo, muitos seguem acreditando que só os grupos de risco clássicos estão ameaçados. “O estigma continua sendo o maior obstáculo para a prevenção e o tratamento da aids no Brasil. Ainda temos uma taxa de diagnóstico tardio muito alta, por volta de mais de 30%. Isso é muito para um país com acesso universal aos medicamentos. O estigma afasta as pessoas de um diagnóstico mais precoce.” Muitos pacientes só descobrem que estão infectados quando começam os sintomas.

Quado questionado se o Brasil segue sendo um exemplo global na luta contra a doença, Terto afirma: “O Brasil não é mais um modelo. Temos boas experiências que deveriam ser mantidas. O Brasil mostrou que um país em desenvolvimento e com vontade e visão política pode fazer um programa de acesso universal e derrubar a taxa de mortalidade.” Nos últimos anos, entretanto, faltou o apoio tanto dos governos locais quanto das agências internacionais para a aids, diz.

“A garantia de acesso a tratamento público e gratuito para todo mundo ainda é um modelo, mesmo nesse contexto de testar e tratar”, ressalta Villela. “Isso aumentou muito o número de pessoas em tratamento. Antigamente a gente começava o tratamento quando a carga viral já estava muito alta. Agora não: está infectado, se inicia o tratamento.”

Mas o quadro é outro quando se trata de prevenção: “Na dimensão da prevenção e do apoio à sociedade civil, [o Brasil] já deixou de ser exemplo, tanto que os números aumentaram. Aí, a nota é zero”, diz a especialista.

Crédito: Deutsche Welle Brasil – disponível na internet 02/12/2019

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