Problemas econômicos internos devido à covid-19 podem forçar chineses a rever grandes projetos de infraestrutura no exterior, o que seria um duro golpe nas aspirações geopolíticas do país asiático.
A pandemia do novo coronavírus, que começou na China e já afetou mais de 2 milhões de pessoas em todo o mundo, ameaça tirar dos trilhos um dos mais ambiciosos projetos do Império do Meio: a Iniciativa do Cinturão e Rota (ICR), também conhecido como a Nova Rota da Seda. Isso representaria um duro golpe nas aspirações de Pequim a se tornar uma superpotência.
A epidemia que já matou mais de 140 mil pessoas em todo o mundo está causando atrasos e interrupções nos projetos da ICR, que dependem fortemente de mão de obra e suprimentos chineses, na medida em que lockdowns e outras medidas abrangentes para conter o avanço do coronavírus impedem a chegada de trabalhadores e suprimentos aos canteiros de obras.
Projetos bilionários foram afetados na Indonésia, no Camboja, na Malásia, no Sri Lanka e no Paquistão.
As ambições globais de Pequim podem ser prejudicadas ainda mais por problemas econômicos internos que estão sendo acirrados pela pandemia, o que pode limitar a capacidade das instituições financeiras chinesas de ostentar em projetos no exterior, uma vez que estão ponderando entre os gastos com saúde e recuperação econômica e a concessão de empréstimos no exterior, apontou um relatório da empresa de consultoria nova-iorquina Rhodium.
O interesse dos credores chineses em conceder empréstimos externos também pode ser limitado por uma “avalanche de renegociações [da dívida]” que parece iminente em meio ao choque econômico mundial provocado pela covid-19, acrescentou.
O coronavírus é o mais recente revés da colossal Iniciativa do Cinturão e Rota por parte da China, muitas vezes descrita como a Rota da Seda do século 21 ‒ um gigantesco projeto de desenvolvimento de infraestrutura global bancado sobretudo por Pequim.
Mesmo antes do surto, o ambicioso projeto estava sofrendo com a desaceleração do crescimento econômico no Império do Meio, com as críticas de alguns países beneficiários aos altos custos do projeto e com acusações de práticas predatórias de empréstimos.
“A China não concederá os enormes empréstimos que vimos no passado, por exemplo para um grande projeto ferroviário, para um grande projeto portuário ou para um grande projeto de barragem”, disse à DW Agatha Kratz, principal autora do relatório.
“Os bancos chineses que estão enfrentando turbulências domésticas podem não ter tanta liquidez para fazer grandes novos empréstimos para os países em desenvolvimento. Além disso, eles podem ser criticados na opinião pública chinesa por desviar recursos muito importantes do mercado interno para mercados externos”, acrescentou Kratz.
Os bancos chineses já haviam começado a desacelerar os créditos para projetos da ICR muito antes da crise atual, à medida em que Pequim tentava melhorar suas práticas de concessão de empréstimos em reação a críticas globais. Espera-se que a pandemia acelere essa tendência.
“Um em cada cinco dólares que a China emprestou já estava potencialmente com problemas. Acrescentando-se a isso a covid-19, o que se tem é uma enorme percepção de que os padrões e a qualidade dos empréstimos devem melhorar”, disse Kratz.
Plano Marshall chinês
De acordo com uma estimativa anterior da mineradora BHP, os gastos totais em projetos relacionados à ICR podem chegar a quase 1,3 trilhão de dólares (R$ 6,8 trilhões) na década até 2023 ‒ mais de sete vezes o investimento feito durante o Plano Marshall dos EUA para reconstruir as economias europeias depois da Segunda Guerra Mundial.
Alguns chamam o projeto chinês de “novo Plano Marshall”, que pode reduzir substancialmente custos comerciais, melhorar a conectividade e ajudar definitivamente a tirar vários países da pobreza. Outros acusam a China de financiar países pobres para ampliar sua influência, mesmo que isso implique conceder empréstimos para projetos economicamente inviáveis.
Os críticos mencionam o Porto de Hambantota, no Sri Lanka, como um alerta para as armadilhas de dependência do financiamento chinês. A China terminou por assumir o controle do porto, estrategicamente importante, em 2017, depois que o Sri Lanka não conseguiu quitar o empréstimo chinês.
No entanto, um estudo de 2019 feito pela Rhodium, que analisou 40 casos de renegociações de dívidas chinesas com 24 países, mostrou que podem ser exageradas as acusações em torno da “armadilha da dívida” empreendida pela China, sendo o caso do Sri Lanka o único exemplo confirmado em que Pequim assumiu o controle de um ativo num país beneficiário.
A China, no entanto, não dispensa oportunidades para conseguir ganhos diplomáticos e se projetar como um parceiro de desenvolvimento confiável, especialmente num momento – o mandato do presidente Donald Trump – em que os EUA parecem estar cedendo esse papel.
Enquanto a pandemia afeta as economias globais e o desespero se instala, Pequim pode obter o mesmo efeito de “benfeitor”, gastando menos do que no passado, apontou o relatório da Rhodium.
“Dado o estresse provocado pela covid-19, qualquer apoio da China será bem-vindo”, disse Kratz. “Basta fazer doações, disponibilizar equipamentos para países em necessidade, fazer pequenos empréstimos a juros baixos para construir hospitais de campanha”, explicou.
A China já começou a enviar equipamentos e médicos para os países da ICR atingidos pelo coronavírus, incluindo a Itália. Pequim reagiu com irritação às afirmações ocidentais de que seus esforços de ajuda foram impulsionados pelo desejo de ganhar influência.
Reestruturação da dívida
A China também poderia usar as renegociações de dívidas como uma ferramenta para pedir favores políticos, por meio de adiamentos ou prorrogações do período de carência. Muitos dos países subsaarianos e latino-americanos devem de 30% a 40% de sua dívida externa total à superpotência econômica asiática. É provável que os mais pobres entre esses países não consigam pagar seus empréstimos, já que a pandemia está afetando suas economias.
Apesar das dificuldades financeiras que afetam suas instituições credoras, a China está bem posicionada para financiar seus gestos “altruístas”. A maioria dos empréstimos externos que o país asiático concedeu nos últimos 15 anos aconteceram por meio de bancos de desenvolvimento, como o Banco de Desenvolvimento da China (BDC) e o Banco de Importação e Exportação da China (Exim), que estão intimamente ligados ao governo chinês e têm enormes balanços patrimoniais.
“Muitos desses bancos contam com apoio do governo. E assim, se o governo chinês pensa que politicamente, devido à imagem que projeta para o mundo, é uma boa ideia fazer novos empréstimos ou adiar o pagamento, ou talvez perdoar parte da dívida, o que é altamente improvável, então esses bancos o farão”, concluiu Kratz.
Crédito: Deutsche Welle Brasil – disponível na internet 20/04/2020