Celso deve autorizar nesta segunda-feira a abertura de um inquérito para apurar as declarações de Moro, que acusou Bolsonaro de interferir politicamente na Polícia Federal para ter acesso a relatórios de inteligência. O pedido de investigação, apresentado pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, atinge não apenas Bolsonaro, como o próprio Moro, o que surpreendeu procuradores ouvidos pelo Estado.
Integrantes do Ministério Público Federal (MPF) apontam que Aras pediu ao STF a apuração de uma de uma série de crimes, entre eles denunciação caluniosa, o que pode fazer o inquérito se voltar contra o ex-ministro, caso as investigações não confirmem as acusações. Moro, no entanto, guardou provas. Segundo o Estado apurou, além de troca de mensagens no WhatsApp, o ex-ministro da Justiça possui áudios, que devem ser entregues aos investigadores em sua defesa.
“Não é comum que se apure ao mesmo tempo tanto o crime denunciado quanto o denunciante. Em regra, você primeiro investiga a acusação, e percebendo que o acusador mentiu, aí, sim, começa uma apuração por denunciação caluniosa”, avalia o advogado criminalista Davi Tangerino, professor da FGV-SP.
“O procurador-geral agiu sob o ponto de vista pragmático. Ao fazer desse jeito, Aras deu uma resposta, porque seria impossível ele não fazer nada, mas dá uma resposta pros dois lados.”
A expectativa dentro do Supremo é a de que a decisão de Celso de Mello autorizando a abertura do inquérito seja repleta de duros recados. Desde que Bolsonaro subiu a rampa do Planalto, o decano se converteu em uma das vozes mais críticas dentro da Corte aos excessos cometidos pelo chefe do Executivo. Celso já disse que o presidente “transgride” a separação entre os Poderes, “minimiza perigosamente” a Constituição e não está “à altura do altíssimo cargo que exerce”. “Ninguém, absolutamente ninguém, está acima da autoridade suprema da Constituição da República”, afirmou o ministro em entrevista ao Estado em agosto do ano passado.
O ministro se aposenta em novembro, quando completará 75 anos, abrindo a primeira vaga na Corte para indicação de Bolsonaro. Por uma ironia do destino, se o inquérito não for concluído até lá, o seu sucessor deve herdar a apuração e os demais processos do gabinete do decano.
Imparcialidade
Outro duelo de Moro, cujo desfecho é aguardado dentro do Supremo, é aquele em que a defesa de Lula acusa o ex-juiz de agir com parcialidade ao condenar o petista no processo do tríplex do Guarujá e assumir depois um cargo no primeiro escalão do governo Bolsonaro. O julgamento começou em dezembro de 2018, pouco depois do resultado das eleições presidenciais, mas foi interrompido na época por um pedido de vista (mais tempo para análise) de Gilmar Mendes.
Segundo o Estado apurou, a Segunda Turma do STF deve retomar no segundo semestre a análise sobre a atuação de Moro no caso de Lula. Isso porque, embora o Supremo tenha mantido — por videoconferência — a rotina de trabalho em meio à pandemia do novo coronavírus, o processo é considerado delicado demais, o que exigiria uma sessão com todos os cinco ministros do colegiado reunidos presencialmente.
O habeas corpus ganhou novos contornos após o vazamento de mensagens privadas entre Moro e procuradores de Curitiba divulgadas pelo site “The Intercept Brasil”. Até agora, o relator da Lava Jato, Edson Fachin, e a ministra Cármen Lúcia já ficaram ao lado de Moro. Além de Gilmar, faltam os votos dos outros integrantes da Segunda Turma: Ricardo Lewandowski e Celso de Mello.
Com a tendência de Gilmar e Lewandowski (ambos expoentes da ala do STF mais crítica à Lava Jato) de votar a favor de Lula, Celso deverá desempatar o placar, mais uma vez sendo decisivo. “O decano, involuntariamente, virou um certo eixo de gravidade em torno de alguns dos nós políticos mais importantes do STF nos próximo meses”, afirma Tangerino.
Celso também é relator de uma ação em que dois advogados pedem ao Supremo que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), seja obrigado a analisar um pedido de impeachment contra Bolsonaro que não foi apreciado até hoje. Na semana passada, o ministro fixou um prazo de 10 dias para que Maia preste informações ao tribunal — e incluiu formalmente o presidente da República no processo.
Episódio
Essa não é a primeira vez que a conduta de Moro passa pelo crivo de Celso de Mello. Em 2013, o ministro deu o único voto para que o então juiz fosse declarado suspeito em caso de evasão de bilhões de reais do Banestado. À época, Moro atuava na 2.ª Vara Federal de Curitiba, especializada em crimes de lavagem de dinheiro.
A defesa do doleiro Rubens Catenacci, condenado por remessa ilegal de divisas ao exterior, entrou com um habeas corpus no STF, alegando suspeição de Moro nas investigações. Os advogados questionaram o monitoramento de seus voos e o retardamento no cumprimento de uma ordem judicial.
Celso defendeu a anulação do processo, ao concluir que Moro tinha violado o direito fundamental de que todo cidadão deve ser julgado com imparcialidade. “Parece-me, em face do gravíssimo episódio do monitoramento dos advogados, que teria ocorrido séria ofensa ao dever de imparcialidade judicial”, disse. A Segunda Turma, no entanto, acabou rejeitando o pedido do doleiro.
Crédito: Rafael Moraes Moura, O Estado de S.Paulo – disponível na internet 27/04/2020