Mesmo se o nível de confinamento fosse igual ao de bairros ricos, comunidades pobres teriam até o triplo de mortes, afirmam pesquisadores. Para eles, só autoridades locais poderão solucionar epidemia no Brasil.
Quase todos os dias, com ou sem pandemia, a diarista Joceliane Gomes Santos de Freitas, 29 anos, sai de casa às 7h em Barra do Ceará, comunidade de Fortaleza onde mora com o marido e os dois filhos de 4 e 8 anos. Caminha por uma hora até chegar ao trabalho – “é preciso economizar com a condução”, diz. O marido encontrou um emprego mês passado, após três anos desempregado, e agora trabalha como porteiro das 18h às 6h. Sem creche, quem cuida dos filhos é a mãe dela, idosa, que viaja semanalmente de outro município para isso.
Na casa de três cômodos, a torneira é decorativa. É preciso acordar todos os dias às 3h para pegar água, que chega apenas a uma bica do lado de fora, com baldes. O álcool em gel e os produtos de limpeza são garantidos por doações.
Para quem mora em bairros como Barra do Ceará, o home office e a quarentena são ficção. Mesmo com a ajuda de R$ 600 que Freitas tem recebido do governo federal, não é possível abrir mão do trabalho. “A gente tem medo de pegar coronavírus, mas tem que buscar o alimento.”
Em Fortaleza, uma das capitais mais desiguais do país e a que tem o segundo maior índice de infectados com coronavírus por 100 mil habitantes, a pandemia escancarou a disparidade socioeconômica e mostrou que quem vive em locais de baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) tem mais chances de se infectar e morrer.
Conforme dados obtidos com exclusividade pela DW Brasil, no bairro Meireles, com IDH próximo da Noruega, com um nível de confinamento de 70% – a meta estadual –, a taxa de infectados é de 6%, e a de letalidade, de 0,5%.
Já em Barra do Ceará, com IDH inferior a países como o Sudão do Sul, se houvesse o mesmo nível de isolamento, a taxa de infectados seria de 16%, e a de letalidade triplicaria, o que mostra que o coronavírus avança mais rapidamente e de forma mais letal em comunidades carentes, segundo os autores do estudo.
O levantamento, feito pelo grupo interdisciplinar de pesquisadores Ação Covid-19, mostra que a necessidade de confinamento é maior em áreas mais pobres – justamente onde é mais difícil manter a população em casa devido a um conjunto de fatores que facilitam a transmissão, como saneamento inadequado, educação deficiente, moradias lotadas e má nutrição, que se refletem no IDH.
Enquanto o nível de confinamento de Meireles se manteve em 70% – ainda considerado insuficiente pelos pesquisadores, que dizem ser necessário atingir 80% –, em Barra do Ceará esse nível foi de 50%, diante de uma necessidade calculada de 86%.
Os números oficiais, mesmo considerando a subnotificação, já dão uma noção da diferença. Barra do Ceará, de 1º de abril até 26 de maio, registrou 400 casos de coronavírus e 58 mortes, ou uma taxa de mortalidade de 14,5%, enquanto em Meireles houve 649 casos e 27 vítimas, ou uma mortalidade de 4,2% nesse período.
O bairro carioca de Copacabana é outro exemplo. Para achatar a curva de infectados, os pesquisadores estimam que o confinamento teria de ser aumentado da meta de 70% para ao menos 80%. Na comunidade Pavão-Pavãozinho, que fica dentro de Copacabana, o índice ideal seria de 92%.
“Não é fácil conseguir tanto isolamento. Exige medidas integradas, com a cooperação de todas as esferas de poder, movimentos sociais, iniciativa privada e população”, diz o cientista da computação Carlos dos Santos, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC).
Políticas públicas locais
Esses altos níveis de confinamento não são factíveis, especialmente nas comunidades pobres, onde a maior parte da população precisa sair de casa para trabalhar. “Esse nível de confinamento não é real, mas mostra que é preciso ter ações voltadas especificamente para essas comunidades”, diz a física Patricia Camargo Magalhães, da Universidade de Bristol, que faz parte do grupo de pesquisadores.
Segundo o presidente da Central Única de Favelas (Cufa), Preto Zezé, a dificuldade maior é a alimentação. “Como a pessoa vai ficar em casa se ela não tem o que comer e precisa sair para trabalhar e comprar comida?” Além disso, lembra, são os moradores de comunidades como essas que estão em trabalhos hoje considerados essenciais, como supermercados e postos de gasolina.
“O nível de confinamento social é muito difícil para esses territórios, até a noção de casa é diferente, a rua muitas vezes faz parte da casa. O que tem de ser feito é diminuir a chance de transmissão de pessoa para pessoa, dar condições para as pessoas não se contaminarem, ter equipamento individual, renda, porque as pessoas estão saindo de casa para trabalhar”, afirma o economista José Paulo Guedes Pinto, professor da UFABC, que também faz parte do grupo Ação Covid-19.
Segundo o economista, o sucesso do Brasil no controle da epidemia dependerá das gestões locais. “O governo federal já colocou um pouco o limite de onde vai atuar. O Brasil vai sair dessa dependendo muito do poder local, com o município levando água para a comunidade, por exemplo, deixando de podar árvores em bairros ricos para levar o essencial para bairros pobres.”
Para o professor e pesquisador da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, que trabalha com projeções no grupo de pesquisadores Covid-19 Brasil, é necessário estabelecer metas distintas de confinamento para bairros diferentes. “Fortaleza tem claramente duas pandemias”, diz, em referência ao estudo.
No caso de Fortaleza, a prefeitura afirma estarem sendo realizadas ações voltadas especificamente para combate à covid-19 em bairros e grupos mais vulneráveis socioeconomicamente, o que inclui a distribuição de 130 mil cestas básicas e a transferência de R$ 200, em parcela única, para feirantes, autônomos e ambulantes cadastrados no município.
Organizações sociais têm feito parte do trabalho. Em Barra do Ceará, a Cufa auxiliou 4 mil famílias com 300 mil reais distribuídos em vale-gás, vale-alimentação – com um voucher digital que só pode ser usado no comércio local –, auxílio em dinheiro a mães, que representam quase metade das chefias de família no bairro, entre outras ações. A verba vem principalmente de doações de empresas.
No dia 17 de março, a prefeitura de Fortaleza decretou situação de emergência em saúde pública e definiu medidas como a suspensão de aulas e eventos públicos. Mas somente em 8 de maio estado e município decretaram um isolamento social mais rígido, com restrição na circulação de pessoas e veículos em espaços públicos, permitida somente com justificativa, como busca a serviços essenciais.
Crédito: Deutsche Welle Brasil – disponível na internet 29/05/2020