As Fronteiras da Inovação

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A julgar pela percepção corrente após o advento da internet comercial, o fluxo de inovações do tempo presente não encontra nenhum precedente. Talvez, para este grande público, o impacto causado pelos aparatos digitais hoje seja comparável somente às radicais transformações promovidas pela primeira Revolução Industrial. É curioso notar, no entanto, que um fenômeno tão aclamado por seu caráter alegadamente único e julgado como marca maior destes tempos pode ter paralelos subestimados e muito elucidativos ao longo de toda a nossa história.

The problems are solved, not by giving new information,
but by arranging what we have known since long.
Ludwig Wittgenstein (1953

Neste artigo, compartilho minha visão sobre a inovação a partir do caso chinês (tecnologia), do mercado (economia) e da linguagem (filosofia). Meu objetivo é apontar para a construção histórica dessa noção, e seus efeitos para a concepção corrente do significado da inovação. É razoável crer que a profusão de gadgets que vêm modelando nossas vidas é incomparável a de outros períodos da história. Entretanto, parece existir um fator em comum no que motiva, potencializa ou limita a aplicação da inovação ao longo de nossa história, e ao redor do mundo. Os métodos e ideias pelos quais a inovação se expressa, inclusive, ajudam a circunscrever com maior clareza o conceito para além do senso comum, responsável por associá-lo apenas ao que é original ou revolucionário. Meu desejo é apontar a inovação como aquilo também imprescindível a uma sociedade que é sempre expressa no tempo, e sujeita, portanto, a transformações.

Estas noções e dilemas iniciais conduzem à reflexão do que chamo de fronteiras da inovação; constituindo, basicamente, as variáveis tecnológicas, econômicas e filosóficas que estão no limite das reflexões referentes ao tema. Não se trata aqui de uma análise isolada de um fenômeno pontual, como a expansão da tecnologia da informação ou da crescente facilidade de acesso a ela nas duas últimas décadas. O que se propõe é a discussão em retrospecto das diferentes formas como foi utilizado o termo inovação a fim de compreender em maior detalhamento como foi construída a acepção hoje dominante. Com isso, vem à tona uma perspectiva analítica capaz de apontar com clareza eventuais traços (originalidade, autenticidade, identidade) e processos criativos que melhor especifiquem a inovação, algumas de suas causas e de seus desdobramentos, além de diferenciá-la de outros fenômenos.

TECNOLOGIA

Behind an able man there are always other able men.
Provério chinês

A expressão chinesa shanzhai tem como significado “fortaleza de montanha” e, reza a lenda, era utilizada para designar o espaço no qual criminosos se instalavam a fim de fugir do alcance das autoridades. Numa espécie de versão oriental da saga de Robin Hood, faz parte do imaginário popular chinês a história de bandidos que, roubando dos ricos para dar aos pobres, buscavam fazer justiça à sua própria maneira. Nos tempos correntes, tal fantasia parece ter inspirado a realidade do fenômeno tecnológico shanzhai, que se materializou na China contemporânea e agora se espalha pelo mundo freneticamente.

O que antes era pejorativamente chamado de xing-ling (em alusão à baixa qualidade e ao uso de marcas infames por parte dos aparatos digitais produzidos no país) vem se consolidando como um inspirador, aberto e colaborativo modelo de inovação. Com a abertura econômica das últimas décadas, a China virou uma espécie de chão de fábrica dos maiores celeiros de invenções tecnológicas. Diante do fluxo de capital e do grande know-how adquirido com a produção de gadgets para terceiros, muitas empresas chinesas não hesitaram em tirar proveito de tais recursos para suprir demandas locais e, com isso, impulsionar as vendas em mercados até então pouco explorados. O que isso significa? Enquanto a China literalmente construía os sonhos de consumo das economias ocidentais mais ricas, esses bens permaneciam inacessíveis à esmagadora maioria da população do país. A solução encontrada para fechar esta equação foi a subversão do marketing e da estratégia das maiores marcas do mundo hi-tech.

O mesmo espírito DIY (Do It Yourself) que saía das garagens de jovens nerds americanos na década 70 e que levou figurões como Jobs e Wozniak da Apple a criar dispositivos capazes de realizar chamadas DDD gratuitamente (as famosas blue boxes), passou a emanar também das fortalezas (shanzhais) da China. Dispondo de alto conhecimento técnico, mão-de-obra especializada e componentes de qualidade comparável à de qualquer aparelho de ponta lá manufaturado, bastava recriar as marcas e design. Nesses casos, a propriedade intelectual nunca foi vista como um impedimento.

Diante de condições para não apenas lançar regionalmente mas também exportar em larga escala similares que chegam a custar 6 vezes menos, é possível compreender porque, já em 2010, muito antes da ascensão internacional de grandes marcas chinesas, a soma de aparelhos shanzhai comercializados já respondia por nada menos do que 20% de todos os smartphones do globo.

Uma lição interessante do caso é de que o sucesso não veio unicamente das meras cópia ou diferenciação por preço. A inovação foi, e continua sendo, um fator essencial para alavancar as vendas em mercados para os quais as grandes marcas como Apple e Samsung pouco se voltaram.

Com custo médio de fabricação em torno dos 20 dólares, sendo comercializados por até 120, os telefones chineses deixaram para trás o estigma de pouca durabilidade e mau desempenho. No lugar disso, passaram a conter funcionalidades únicas e de grande valia para as necessidades peculiares do usuário médio de países em desenvolvimento. Um ótimo exemplo é o fato de muitos serem compatíveis com o uso mais de um cartão SIM (chip).

Algo que parecia não fazer sentido nos EUA ou na Europa representava para o consumidor brasileiro a possibilidade de escolher a operadora móvel com as tarifas mais baixas para cada ocasião, enquanto era útil para o chinês que deseja separar o número de contato de sua empresa daquele utilizado para falar com a família. Isso sem falar na economia de custos por roaming, serviço que sai caro em deslocamentos no solo asiático. Passados alguns anos , hoje essa funcionalidade se generalizou, incorporada até mesmo por marcas tradicionais. O processo interessante aqui é o da inovação periférica validada por pequenas marcas à qual as tradicionais posteriormente aderiram.

Por meio de uma cultura que prioriza a melhoria contínua — sintetizada pela prototipagem, praticamente nos moldes da “tentativa e erro”, em lugar de um planejamento estratégico rígido, os números de shanzhai evidenciam três pontos: o quão bem-sucedido foi em satisfazer às “franjas” dos mercados emergentes, o quanto ainda pode crescer e como podemos aprender com ele. Trata-se de uma aplicação generalizada da cultura do remix, em que a recombinação daquilo que se tem à disposição — mais do que a criação pura, dão o tom da inovação, enquanto o caráter aberto ou colaborativo é responsável por levar tudo o que emerge desta profusão tecnológica ao maior número possível de indivíduos, em especial aos que mais necessitam.

Como indica o provério chinês, por trás de um homem hábil há sempre outros homens hábeis. E quantos mais destes poderão nascer diariamente, na era em que a inovação de toda uma geração atropela vorazmente as tradições.

ECONOMIA E MERCADO

Smart companies will get out of the way and help the inevitable to happen sooner. The Cluetrain Manifesto (1999)

Oexemplo da China mostra como a implementação de sistemas abertos e colaborativos por meio dos quais empresários e consumidores podem interagir é uma solução de benefício mútuo. Neste universo em que a forma e o conteúdo de diferentes serviços, a exemplo da Wikipedia, parecem emergir cada vez mais dos próprios usuários, a adoção de mecanismos colaborativos não é proveitosa somente para o empreendedor inovador, como também necessária.

Quanto à teoria econômica, o predominante entendimento de que as inovações tomam forma do lado da oferta encontra suporte até mesmo em estudos preliminares sobre o desenvolvimento econômico, como aqueles propostos por Joseph Schumpeter já no começo do século passado (vide a Teoria do Desenvolvimento Econômico, de 1911). Ao expor o conceito de destruição criadora como motor do capitalismo, o economista identificava a inovação como uma força disruptiva responsável por tirar da estática os aparentes equilíbrios de mercado, que favoreceriam a centralização. Assim, o inventor que introduzia as lâmpadas elétricas no comércio local era, ao mesmo tempo, agente direto da promoção de uma nova e admirável tecnologia, capaz de gerar lucros para si e bem-estar para os mais diversos clientes, e algoz de todos os concorrentes que dispendiam recursos na produção e na venda de velas.

Assim, vantagem natural do empreendedor, que já dispunha de inúmeros recursos dispostos a fim de atingir os consumidores deveria prevalecer para que houvesse o progresso. Se quisermos identificar as medidas adotadas como consequência desse pensamento, basta uma breve análise da evolução dos subsídios e das rígidas garantias de direitos por propriedade intelectual, assegurados aos produtores, diante da expectativa de que a inovação surja pela busca estrita de maior lucratividade e da possível eficiência disso decorrente.

Entretanto, como aponta Eric Von Hippel, pesquisador do MIT, duas importantes e nem sempre lembradas dimensões referentes ao tema portam a capacidade de mudar sensivelmente o cenário. Determinados em grande parte pela tecnologia, os custos de projeto e os requisitos comunicacionais impactam diretamente a eficácia dos modelos de inovação priorizados por diferentes teorias. Isso quer dizer que tanto usuários em particular quanto sistemas abertos e colaborativos podem superar o antigo paradigma de máxima inovação como uma proposta exclusiva de “grandes empreendedores”. Bastaria, para tal, estarmos diante de condições ideais nas quais as etapas de projeto e produção fossem marcadas por grande digitalização e modularização, enquanto fosse crescente e de custo cada vez menor a oferta de serviços digitais de comunicação. Até mesmo para o leitor desatento, não é difícil perceber que a realidade atual se aproxima profundamente das condições preconizadas por Von Hippel.

Em primeiro lugar, é interessante levar em conta que mesmo com o produtor sendo responsável por ofertar um novo serviço, método ou ideia, não se pode garantir que aquilo esteja em sua forma ou utilização ótimas, conforme concebido pela figura do “projetista”. Pelo contrário, em muitos casos a capacidade de refinar um dado produto está intimamente ligada ao uso recorrente por um ser humano, dado que este é quem tira proveito direto de uma reinvenção a ele oferecida e, por conta disso, vê-se incentivado, por oportunidade ou necessidade, a melhorá-lo continuamente.

Adam Smith, filósofo escocês, em sua obra mais famosa (An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, 1776) já apresentava conclusões que corroboram o papel central do usuário nos redesenhos que culminam em inovação:

“A great part of the machines made use of in those manufactures in which labor is most subdivided, were originally the invention of common workmen, who, being each of them employed in some very simple operation, naturally turned their thoughts towards finding out easier and readier methods of performing it.”

Mais recentemente, pesquisas quantitativas, inclusive, afirmam que o mesmo pode ser identificado para um significativo número de outras áreas. Diferentes análises empíricas indicam um valor que oscila de 6% a 40% para a margem de consumidores que se envolvem na modificação/melhoria direta dos produtos que adquirem. Esses números se tornam ainda maiores para a indústria ligada à tecnologia esportiva, na qual pesa o engajamento com grande proximidade de usuários dos calçados, roupas e materiais de suma importância para o desempenho final de um atleta. Em semelhante proporção, os avanços no mercado de processamento por semicondutores — que impulsionariam a revolução computacional iniciada na década de 70 — chegam a ter 80% de suas conquistas associadas aos usuários finais, sem os quais o subsequente ciclo virtuoso de inovações cada vez mais rápidas e menos custosas não se formaria.

Naturalmente, como uma breve retomada histórica permite enxergar sem dificuldades, foi a partir de vias com baixo custo para a comunicação e a segmentação da produção em unidades fabris menores e mais independentes que o papel do usuário no processo inovador ganhou força. Com a aceleração dessa tendência, então, é esperada uma crescente racionalização destes procedimentos. É justamente neste ponto em que os sistemas abertos de colaboração entram em cena, aproximando, como nunca antes, a experiência de vários indivíduos mundo afora e permitindo interações verdadeiramente criativas.

Sem dúvidas, o exemplo de maior notoriedade recente se encontra na indústria dos softwares de código aberto (open source software). Inicialmente vistos com certo ceticismo, os desenvolvedores adeptos dessa filosofia desafiaram teorias econômicas de séculos, ao transformarem o produto final de seus esforços em um bem público (não-rival e não-excludente), livre para utilização e modificação de qualquer usuário. Naquele momento, rompia-se sistematicamente a tênue fronteira entre o desenvolvedor/produtor e o usuário/consumidor.

Nos últimos anos, superados os questionamentos iniciais: o Linux (especialmente com distribuições cada vez mais amigáveis para o usuário médio, como Ubuntu e Linux Mint) se mostra uma alternativa viável aos sistemas operacionais proprietários de empresas como Microsoft e Apple; o navegador Mozilla Firefox deu início a uma revolução que, em conjunto com o Google Chrome (elaborado a partir do código do projeto open source Chromium), permitiu superar a fatia de mercado do proprietário Internet Explorer; e o sistema aberto Android, elaborado pela Google para uso em plataformas móveis, fechou o ano de 2017 com a presença em impressionantes 87% dos smartphones habilitados no mundo.

É importante reforçar que esse não é um fenômeno exclusivo ou original de nossos tempos. Conforme análise de von Hippel, abrir mão voluntariamente dos direitos de propriedade intelectual sobre a elaboração de um produto, em nome de uma abertura de informações que leva a colaborações e ciclos de melhoria acelerados, é uma escola muito observada em décadas passadas. Mercados como o de equipamentos esportivos, aparelhos médicos e alta tecnologia em hardware colhiam, muitos anos antes da indústria de softwares, os benefícios privados de mais ampla abertura.

Esse modelo, contudo, mesmo com tantos benefícios, apresenta limitações que dependem de uma forma peculiar de trabalho para que não interfiram negativamente nos mecanismos e incentivos de colaboração. Um requisito básico, citado anteriormente, é a modularização. Essa característica permite que empresas ou usuários dividam em “blocos” as etapas de produção de determinado bem ou serviço, compartilhando informações dos módulos nos quais a colaboração é desejável e restringindo dados — por meio de garantias ligadas à propriedade intelectual — nos pontos em que a concorrência obriga-os a tratar de certos temas apenas internamente.

A modularização é igualmente importante ao se optar pela colaboração, por permitir os ganhos de especialização. Produtos complexos, como sistemas operacionais ou engines abertas para jogos, conseguem ser elaborados conjuntamente pois cada usuário-desenvolvedor pode se focar numa parte exclusiva do processo (núcleo, interface, plugins, etc) sem prejuízo ao resultado final.

Curiosamente, enquanto alguns poderiam esperar a saturação e o declínio das plataformas abertas de inovação, uma nova cultura abraçando esta filosofia desponta, não por acaso, em uma economia emergente. Nela, a inovação pode ser entendida como o casamento entre a oportunidade e a necessidade.

FILOSOFIA

Vindo da Filosofia, um importante debate pode ser resgatado, a fim de introduzir o recente questionamento acerca das inovações: estariam elas condicionadas ao que é ofertado pelas mentes brilhantes dos empreendedores-heróis desta geração ou poderiam surgir cotidianamente, a partir da interação de pessoas comuns?

As reflexões sobre o uso rotineiro das palavras, como forma dos indivíduos verbalizarem desejos, ajudam a abrir caminho para uma resposta coerente. Neste campo, destaca-se o trabalho do filósofo Ludwig Wittgenstein. Em sua obra Investigações Filosóficas (1953), o pensador austríaco desenvolve dois argumentos de grande impacto nas discussões que o seguiram. Primeiramente, a linguagem é apresentada como uma forma de vida, cujo caráter orgânico advém da dinâmica presente nas relações sociais, tal que o significado das palavras emerge das ações que as exprimem e não da subjetividade isolada dos indivíduos que as proferem. Disto, decorre o segundo argumento: estando o sentido da comunicação condicionado ao uso das palavras e à intersubjetividade formada pelos sujeitos em questão ao entrarem num “acordo semântico”, e não à (supostamente) íntima relação sujeito-objeto, é impossível assumir com coerência lógica a existência de uma linguagem privada; capaz de associar a um indivíduo, com exclusividade, o poder de expressar sentimentos ou percepções estritamente particulares.

São duas as potenciais respostas à pergunta anterior.

  1. Se os consumidores dos mais diversos bens e serviços não detêm, individualmente, o poder de clamar verbalmente por demandas exclusivas, observar a maneira como as ações destes revelam os desejos dos próprios se torna instrumento eficaz para identificar novas oportunidades de negócio. Trata-se, pois, de um ponto favorável à visão de que é papel do empreendedor, com as eventuais vantagens que lhe cabem, dar os passos que corretamente levam à inovação.
  2. Entretanto, se, conforme argumentado, o sentido das coisas é intrínseco nas relações (i.e. — um fenômeno social), sendo amplificado por elas, o fio condutor de um processo inovador é mais relevante e eficaz quanto maior for o número de agentes que o corroboram por meio da interação direta com ele.

REFERÊNCIAS

Gabriel Aleixo é pesquisador do ITS Rio

Baldwin, C. Y., & von Hippel, E. A. (2009). Modeling a Paradigm Shift: From Producer Innovation to User and Open Collaborative Innovation. Working Paper, Cambridge, Massachusetts: MIT Sloan School of Management. – Markides, C. (2012). How Disruptive Will Innovations From Emerging Markets Be. Disponível em: http://sloanreview.mit.edu/the-magazine/2012-fall/54120/how-disruptive-will-innovations-from-emerging-markets-be/ Strathern, P. (2012) Wittgenstein. HarperPress. – Wittgenstein, L. (1953/2001). Philosophical Investigations. Blackwell Publishing. – http://cluetrain.com – http://shanzhaier.wordpress.com – https://www.statista.com – http://techcrunch.com – http://wikipedia.com

Crédito:Gabriel Aleixo/Feed.ITSRio.- disponível na internet 30/05/2020

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