Caçadas com cachorros
No Facebook, um grupo fechado criado em julho de 2019 e chamado “Caçadores de paca” conta com 74 mil membros de todas as regiões do Brasil.
A BBC News Brasil ingressou no grupo, onde são compartilhadas centenas de fotos de animais abatidos. Em vários casos, os caçadores aparecem com os rostos à mostra exibindo os bichos.
Há também vídeos de caçadas, gravados com celulares ou câmeras acopladas às armas. Boa parte dos usuários caça com o auxílio de cachorros, que encurralam os animais antes do abate.
Outros vídeos exibem cenas da chamada caça de espera. Adeptos dessa modalidade costumam espalhar alimentos na mata — ou “fazer a ceva”, no jargão caçador — para atrair os animais. Eles então montam redes ou estruturas elevadas para aguardar a chegada dos bichos e alvejá-los por cima.
Outros usam o espaço para trocar informações sobre armas — algumas delas sofisticadas, vendidas por alguns milhares de reais em lojas especializadas.
Alguns compartilham infortúnios no grupo. Um usuário publicou a foto de um cachorro morto por uma picada de cobra durante uma caçada, e outro exibiu um cão com os olhos feridos após a perseguição de um animal.
“Espreme limão que limpa. No outro dia está bom, já curei muitos assim”, comentou um participante.
‘Criminoso desde criança’
Caçadores de animais silvestres também têm formado comunidades no YouTube, como os canais “FAL CAÇADOR”, “só do mato caçador”, “Caçadores Anônimos” e “Pedrinho caçador sniper” — todos eles criados nos últimos dois anos.
Com 40 mil inscritos, o canal “Alemão CAÇADOR!” exibe dezenas de vídeos com dicas sobre a caça de animais como pacas, jabutis e macucos, uma ave nativa da América do Sul.
O responsável pelo canal, que se identifica como Alemão e não mostra o rosto nos vídeos, defende em várias gravações a legalização da caça de animais silvestres.
“Aqui podia ser regulamentado caçar com responsabilidade, mas não é”, ele diz num vídeo com 160 mil visualizações em que descreve a caça de um veado mateiro.
“Sou criminoso desde criança, porque eu caço desde pequeno mais (com) meu pai. Nós ‘caçava’ de cachorro, fazia arapuca. Então, para mim, era meio de vida, era sobrevivência. E hoje eu caço porque eu gosto, eu gosto demais disso aqui”, conta.
Ao final da gravação, o YouTuber exibe o veado alvejado, amarrado a um galho pelo pescoço. Há mais de 600 comentários no vídeo, a maioria elogiosos.
“Não tem coisa melhor no mundo do que estar numa rede e escutar o bicho chegando na espera. Para quem gosta… Você esquece todos os problemas”, comenta um usuário identificado como Marcelo Chumbão.
“Faço das suas as minhas palavras, cresci vendo meu pai caçando e pescando para sobreviver… Caçar com responsabilidade é o que precisamos”, escreve outro usuário.
Ética caçadora
Em vários grupos virtuais de caçadores, são comuns as mensagens que pregam moderação ou condenam o abate de determinadas espécies.
No grupo do Facebook “Caçadores de paca”, um participante fez ressalvas ao comentar uma foto publicada em 20 de maio por um caçador que matou duas pacas e uma onça parda.
“Pena ter matado o gatinho. Vamos ser conscientes, amigos. As pacas, show de bola, parabéns”, escreveu.
Já um vídeo em que um caçador decide deixar uma anta e seu filhote passarem pela mira sem apertar o gatilho recebeu vários elogios.
“Essa tem passagem livre pra nós”, comentou um usuário, posição compartilhada por outros que disseram poupar antas por considerá-las muito dóceis ou por rejeitar o sabor de sua carne.
Alguns participantes, porém, se gabam de caçadas fartas, que resultam na morte de vários animais. Uma foto de 18 de maio que exibia três pacas e dois tatus abatidos gerou reações divergentes.
“Rapaz, você lavou a égua”, festejou um usuário.
Outro rebateu: “Destruição total dos bichos. Futuramente, não teremos nem mais sombras dessas maravilhas.”
Caça de javalis
Especialista em manejo e conservação, o biólogo Gustavo Figueirôa diz à BBC News Brasil que a regulamentação da caça do javali pode ter impulsionado o abate de animais silvestres no país.
Nativo da África, Ásia e Europa, o javali foi trazido ao Brasil para ser criado em fazendas, mas escapou, tornando-se um problema para o equilíbrio ambiental e atividades agrícolas. Desde 2013, o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) autoriza a caça da espécie.
Embora avalie que o controle é necessário, Figueirôa afirma que muitos caçadores habilitados a matar javalis também acabam abatendo outros animais silvestres que encontram nas caçadas.
O biólogo diz ainda que a facilitação do acesso legal a armas no governo Bolsonaro enfraqueceu um dos principas fatores que dissuadem caçadores de animais silvestres: a possibilidade de serem presos por porte ilegal de armas.
“Naturalmente, se você permite que mais pessoas tenham armas legalmente e saiam a campo para caçar legalmente (javalis), você aumenta a chance de mais animais silvestres serem caçados”, afirma Figueirôa.
Em 2019, Bolsonaro publicou uma série de decretos que facilitaram o acesso de caçadores, atiradores esportivos e colecionadores (CACs) a armamentos e munições.
Para caçadores, antes sujeitos ao limite de 12 armas, 6 mil munições e 2 kg de pólvora por pessoa, as mudanças passaram a permitir a posse de até 30 armas, 90 mil munições e 20 kg de pólvora.
No mesmo ano, segundo o Instituto Sou da Paz, o número de registros ativos de CACs chegou a 396.955 — um aumento de 50% em relação a 2018.
Impactos em toda a cadeia alimentar
O biólogo Gustavo Figueirôa questiona os critérios citados nos grupos de caçadores sobre animais silvestres que poderiam ou não ser abatidos. Segundo ele, espécies com populações numerosas em algumas regiões do país podem estar ameaçadas em outras.
É o caso, por exemplo, da paca, espécie normalmente considerada abundante por caçadores, mas que se tornou rara em alguns biomas nacionais, como a Mata Atlântica.
Alguns caçadores indicam ter noção da escassez do animal. No grupo “Caçadores de paca”, um usuário exibiu em 19 de maio duas pacas abatidas no Rio de Janeiro, destacando que o Estado “ainda tem” membros da espécie.
Figueiroa afirma ainda que, mesmo que um animal abatido não esteja sob ameaça em determinada área, sua morte gera consequências negativas no local.
A cutia, por exemplo, também bastante visada por caçadores, é dispersora de sementes e ajuda a manter a biodiversidade da floresta — além de ser presa de onças, que passam a dispor de menos alimento quando o animal é caçado por humanos.
“Quando você mata um animal que é presa de outros, você tira um elemento da cadeia que desequilibra todo o resto”, afirma.
Figueirôa diz que já denunciou ao YouTube e Facebook vários grupos que promovem a caça de animais silvestres, mas que as plataformas não tiraram os canais do ar e sugeriram que ele simplesmente deixasse de segui-los.
Comunicado pela BBC News Brasil sobre a reportagem, o Facebook excluiu o grupo “Caçadores de paca”. “O grupo foi removido por violar os Padrões da Comunidade do Facebook, que claramente vedam posts que retratem ou promovam violência física contra animais”, disse a empresa, em nota.
Outros grupos na plataforma, porém, ainda exibem vídeos da caça de animais silvestres — como o “Caça e Pesca Brasil” e “cães de caça Brasília df”.
Já o YouTube, que mantém no ar todos os canais de caçadores apontados pela BBC News Brasil, disse em nota que é “uma plataforma de vídeo aberta, e qualquer pessoa pode compartilhar conteúdo, que está sujeito a revisão de acordo com as nossas diretrizes da comunidade”.
“Qualquer usuário que acredite ter encontrado uma violação dessas regras pode fazer uma denúncia e nossa equipe fará a análise do vídeo. Quando não há violação à política de uso do produto, a decisão final sobre a necessidade de remoção do conteúdo cabe ao Poder Judiciário, de acordo com o que estabelece o Marco Civil da Internet”, diz a empresa.
Principal órgão federal responsável por combater crimes ambientais, o Ibama disse à BBC News Brasil “que a exposição de conteúdos relacionados à caça de animais silvestres no YouTube e Facebook tem forte impacto negativo para a preservação ambiental, pois estimula a caça ilegal”.
“Cotidianamente, o órgão acompanha as denúncias presentes nas redes sociais e atua com base nelas, investigando os responsáveis”, completou o órgão.